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Cidades

Edição 158 > Estado, capital e a gênese do urbanismo: o plano Agache para o Rio de Janeiro*

Estado, capital e a gênese do urbanismo: o plano Agache para o Rio de Janeiro*

Renato Soares Bastos
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A partir da segunda década do século XX, assiste-se a uma mudança no discurso e na prática da intervenção urbanística. O pensamento higienista cede lugar à  ciência do urbanismo. Sua gênese, no Brasil, dá-se com a elaboração do Plano Alfred Donat Agache

No momento em que vinham ao chão as paredes do Cabeça de Porco, o maior cortiço da cidade do Rio de Janeiro, para dar lugar às obras do túnel que ligaria a região portuária à Central do Brasil, os cariocas que assistiram ao espetáculo1  da demolição, em fins do século XIX, não imaginavam o que os aguardaria no decorrer do século XX. Encabeçada pela empresa Melhoramentos do Brasil, de propriedade dos empresários Carlos Sampaio e Vieira Souto, a destruição foi dirigida pelo próprio prefeito da Capital Federal, Sr. Barata Ribeiro, e abriu um longo processo de transformações do espaço urbano.

O termo mais comum à época, utilizado para definir o fenômeno, era a palavra “melhoramentos”. As cidades brasileiras ainda guardavam inúmeros resquícios da conformação do período colonial, sem zelo, nem plano, como nos ensina Sérgio Buarque de Holanda, em o semeador e o ladrilhador (HOLANDA, 1976) sobre o fazer cidades da colonização portuguesa, acumulando problemas. Sob a ótica higienista, realizar os melhoramentos era prover a cidade de espaços mais amplos, arejá-la e embelezá-la, segundo os padrões da Europa. Aproveitava-se para realizar, também, outro tipo de limpeza: a social, retirando dos centros urbanos as camadas populares, que faziam moradia nos indesejáveis cortiços.

Os projetos eram elaborados de forma pontual e as relações entre as empresas de melhoramentos, além das empresas de serviços urbanos, e os governantes eram marcados pela impessoalidade, própria de um Estado patrimonialista, como era na chamada República Velha. A infraestrutura pública direcionava-se, sem disfarces, em benefício dos empreendimentos dos particulares que gozavam de ascendência sobre o gestor do momento.

A partir da segunda década do século XX, assiste-se a uma mudança no discurso e na prática da intervenção urbanística. O pensamento higienista cede lugar à ciência do urbanismo. Sua gênese, no Brasil, dá-se com a elaboração do Plano Alfred Donat Agache (Rio de Janeiro: Extensão – Remodelação – Embelezamento). Tal plano abre a porta para a modernidade planificadora em nossas terras. O discurso racional do planejamento urbano entrará em conflito com os interesses particulares, em especial, do capital imobiliário. Não será um conflito aberto, e, sim, um conflito nuançado entre a contribuição para a valorização do lote e a limitação da extração da mais-valia urbana.

Com efeito, as relações entre o Estado e o capital privado na conformação urbana ganham acentuado relevo no início do século XX. A ciência do urbanismo que surge tem como objeto as problemáticas geradas pela Revolução Industrial, mas vai encaminhando-se para servir de instrumento e modelar as cidades segundo a lógica da valorização do capital. Portanto, mais do que uma resposta às necessidades da sociedade industrial, eminentemente urbana, assiste-se, no período, à transformação da cidade em mercadoria, processo este mediado pelo Estado.

Agache e o urbanismo

A contratação de Agache para a elaboração do plano de remodelação da cidade do Rio de Janeiro é muito representativa das mudanças em curso do tratamento dado às cidades. Em primeiro lugar, pela própria figura em questão. Agache é considerado o responsável por cunhar os termos “urbanismo” e “urbanista”, referindo-se à ciência que tem a cidade como objeto e ao profissional responsável por dar cabo à tarefa de organizar as cidades. De fato, o autor impulsionou o movimento dos urbanistas na França, ao fundar, em 1912, a Sociedade Francesa de Urbanistas, da qual era Secretário Geral, nascida da seção de Higiene Urbana e Rural do Museu Social de Paris, e foi um dos grandes divulgadores do urbanismo pelo mundo (BRUNT, 1996).

Ademais, o plano Cidade do Rio de Janeiro – Extensão, Remodelação e Embelezamento – é considerado a principal obra teórica do autor, na qual ele propõe uma metodologia do urbanismo. Publicada em 1930, no Brasil, ganhará uma edição francesa, com título mais amplo, pelas mãos do autor: Remodelação de uma capital – Planejamento, Expansão e Embelezamento (BRUNT, 1996, p. 182).

A sua visão do que é o urbanismo é explicitada no início da coletânea de textos que compõem a obra. Para ele,

O Urbanismo é uma Sciencia e uma Arte, e sobretudo uma Philosofia social. Entende-se por Urbanismo o conjuncto de regras aplicadas ao melhoramento da edificação, do arruamento, da circulação e do descongestionamento das artérias públicas. É a remodelação, a extensão e o embellezamento de uma cidade levados a effeito mediante um estudo methodico da geografia humana e da topografia urbana sem descurar das soluções financeiras. (AGACHE, 1930, p. 4)

Sua proposta metodológica é avançada para a época, considerando que o autor propõe uma abordagem multidisciplinar em relação ao espaço urbano. Utiliza-se de recursos da Arquitetura, Engenharia, História, Economia e das Ciências Sociais, abordando a cidade a partir da interação entre o homem, leia-se sociedade, e o meio. A sociedade é compreendida em sua divisão social e a organização da cidade, segundo a filosófica social esculpida no texto, deve corresponder a tal divisão.

Outro fator de relevo é que o pensamento de Agache enquadra-se na ideologia funcionalista.  O autor recorre às metáforas do organismo vivo para estabelecer as funções básicas que devem orientar o planejamento das cidades, qual seja, a circulação, digestão, respiração e a atuação do sistema nervoso; e do médico, para o tipo de tratamento a ser dispensado pelo urbanista para curar as moléstias existentes na cidade a ser alvo do tratamento.

De acordo com essa concepção vitalista das cidades, o Urbanista deve representar o médico que trata do seu estado mórbido. Ele irá empregar os procedimentos do terapeuta: em primeiro lugar estabelecer um diagnóstico e, para tal, analisar o passado e o presente da cidade, determinar o seu funcionamento, investigar e explicar seus vícios; só assim ele será “capaz de orientar o seu crescimento”. (BRUNT, 1996, p. 174)

No projeto para o Rio de Janeiro, é apresentado também um esboço de zoneamento, com a especialização de áreas da cidade, de acordo com a função socioeconômica a ser desempenhada. Tudo isto será objeto de análise detida. Por ora, basta enumerar a relevância da obra do autor.

Por fim, o próprio momento vivido pela cidade do Rio de Janeiro, no ato da contratação do urbanista francês, faz com o que o período escolhido tenha enorme relevância para a compreensão deste período de transformação no tratamento dispensado às cidades. A então capital do Brasil vivia um rico processo de ebulição, que fazia o urbanismo estar na ordem do dia.

Uma Era de Reformas

Desde fins do século XIX, como já fora dito, eram pensadas intervenções a serem realizadas na cidade do Rio de Janeiro. O dinamismo econômico da capital do país, puxado pela economia cafeeira, parecia contrastar com a cidade colonial, espremida entre os Morros do Castelo, de São Bento, de Santo Antônio e da Conceição. Os problemas urbanos se avolumavam e ganhava espaço o discurso higienista que reclamava uma solução para os cortiços e a ventilação da cidade.

Em 1874, aparece uma primeira tentativa de se intervir de modo organizado na cidade. Fora criada a Comissão de Melhoramentos do Rio de Janeiro, que publicou o seu relatório em 1875, sugerindo o

alargamento e retificação de várias ruas e abertura do novas praças e ruas com o fim de melhorar suas condições e facilitar a circulação entre seus diversos pontos dando, ao mesmo tempo, mais beleza e harmonia às suas construções (devendo as ruas e praças ficar) dispostas de modo que a ventilação das casas e o escoamento das águas pluviais sejam feitos com facilidade. (REIS, 1977 apud ABREU, 2003, p. 49)

A não implementação desse primeiro plano deve-se, sobretudo, à consciência do alto custo dos investimentos para sua realização, de tal modo que o relatório aponta como alternativa “o envolvimento de uma empresa privada no processo de urbanização do Rio (STUCKENBRUCK, 1996, p. 18)”. Como a participação do capital privado não estava no horizonte no momento, as recomendações da Comissão encontram abrigo nos arquivos públicos.

Contudo, anos depois, assume a gestão da cidade o engenheiro Pereira Passos, que, inclusive, teve participação na Comissão de 1874, e iniciará a primeira onda de transformações no espaço urbano visando sua adequação aos anseios da elite brasileira e carioca. Nos 4 anos de governo (1902-1904), são realizadas um grande número de intervenções, tais como: calçamento asfáltico, construção da Avenida Beira Mar, ações de embelezamento, abertura do Túnel do Leme, canalização do rio Carioca e ampliação e abertura de diversas ruas, somadas ao esplendoroso esforço da União na construção do novo porto e na construção da Avenida Central – que se inicia na entrada do Porto e termina na Cinelândia.

Para Maurício de Almeida Abreu,

a Reforma Passos representa um momento de corte fundamental na relação entre Estado e Urbano. Até então, essa relação havia sido indireta, limitando-se o Estado a regular, controlar, estimular ou proibir iniciativas que partiam exclusivamente da esfera privada, que se constituía assim na mola mestra de crescimento da cidade. A intervenção direta do Estado sobre o urbano – caracterizada pela Reforma Passos – não só modificou definitivamente essa relação, como alterou substancialmente o que seria seguido pela cidade no Século XX. (ABREU, 2003, p. 73)

Também, para o autor, o período de intervenções de Passos é importante por ser demonstrativo de como novos momentos de organização social determinam novas funções à cidade, pelo fato da nova organização espacial comportar fortes bases econômicas e ideológicas – “que não mais condiziam com a presença de pobres na área mais valorizada da cidade” – e, por fim, pelo fato do tipo de intervenção que foi realizado ter criado a ocupação das áreas altas da cidade e iniciado o processo de constituição das favelas (ABREU, 2003, pp. 63-66).

De fato, o período popularmente conhecido como o “bota abaixo”, de Passos, foi relevante para o desenvolvimento do Rio de Janeiro. No entanto, acredita-se que este momento ainda não é o divisor de águas na relação entre Estado e urbano. Isto pelo fato de as intervenções terem sido casuísticas e motivadas pelos anseios de modernização – leia-se europeização – da elite brasileira, tendo como suporte a ideologia higienista. A guerra aos cortiços e a abertura de avenidas são a marca do período. Na virada do século XX, ainda não havia o diálogo da gestão pública com uma ciência da cidade, como se verá no período Agache.

Entretanto, entre os dois momentos, há uma fase intermediária de intervenções na cidade, que se dão na gestão de Carlos Sampaio (1920-1922). Embalado pelas comemorações do 1º centenário da independência, o prefeito terá como meta embelezar e preparar a capital para as comemorações. Com isso, decide-se dar sequência às intervenções de vulto do período Passos. O alvo principal foi o Morro do Castelo, berço da cidade colonial, que atrapalhava a ventilação da cidade, era povoado pelas classes baixas e estava próximo à recém-inaugurada e valorizada Avenida Central (Rio Branco).

Uma ótima oportunidade para a reprodução do capital que não foi desperdiçada pelo prefeito:

Tenho por lema em administração pública que as nações novas devem sempre procurar capital para bem empregá-lo em obras reproductivas; e convicto, sem a mínima dúvida, de que se tratava de uma iniciativa dessa natureza e urgente para o desenvolvimento de nossa City, isto é, do coração da cidade que se achava asfixiado entre o mar e um morro tão fácil de derrubar, sob o ponto de vista technico, com os aperfeiçoamentos hodiernos, não hesitei em lançar mão do crédito [...] para o fim de realizar a obra no mínimo espaço de tempo possível. (SAMPAIO, 1924 apud ABREU, 2003, p. 76)

Importante se notar que o prefeito era engenheiro de formação e empresário, havendo constituído uma empresa denominada Cia. do Arrasamento do Morro do Castello, em 1891. De modo algum é coincidência o fato do desmonte do morro ter se tornado a sua principal bandeira de gestão. Sampaio tinha fortes ligações com o mercado imobiliário carioca e estar à frente da prefeitura foi uma boa oportunidade de fazer negócio. Denise Cabral Stuckenbruck aponta que, por diversas vezes, a oposição o acusava de corrupção por esta ligação, mas, a partir da decretação do Estado de Sítio pelo Governo Federal frente às instabilidades geradas pelo Tenentismo, pouco se podia fazer no âmbito local (STUCKENBRUCK, 1996, p. 57)2.

Reconstituir as relações entre o Estado, as empresas e os ganhos de capital gerados pelas intervenções de Sampaio seria interessante para se pensar e caracterizar um momento em que este tipo de relação era muito menos mediada que nos tempos atuais, que necessitam de forma jurídica mais elaborada. Contudo, este assunto não cabe ao escopo deste artigo. Pode-se, sim, afirmar que as intervenções de Sampaio têm o seu centro nas obras da esplanada do Castelo, mas espraiam-se por outras regiões da cidade e movimentam o mercado imobiliário e da construção civil. Ao fim e ao cabo, o arrasamento do morro fica inconcluso e as finanças públicas dilapidadas pelos esforços modernizantes e, ainda, higienistas, de acumulação de capital, capitaneados pelo prefeito.

O seu sucessor – Alaor Prata (1922-1926) – pouco fará em termos de intervenção urbana, estando mais preocupado com a recuperação das finanças públicas. Será o último prefeito da República Velha a comandar a cidade maravilhosa, que reabrirá o debate sobre as transformações urbanas. Prado Junior (1926-1930) era paulista e foi indicado pelo também paulista, ao menos politicamente, Washington Luís para comandar o Rio3.

Sua gestão, sob o ponto de vista do espaço urbano, terá como marca a contratação e formulação do Plano Agache, que discutiremos a seguir. Cabe, agora, indagar os motivos para uma nova retomada do debate urbanístico. Por certo, as obras inconclusas do Castelo seriam um motivo, mas não suficiente para alcançar o nível de atenção que obteve o tema da reforma do espaço urbano. Quais seriam as demais razões?

Robert Pechman chega a afirmar, em querela, sobre a necessidade ou não de um plano urbanístico:

Quem precisava de urbanismo? Os urbanistas!

A oligarquia agro-exportadora no poder já tivera sua dose de urbanismo com a reforma Passos e dava-se por satisfeita com melhoramentos e o embelezamento do cen­tro da cidade.

Os industriais ou produziam seu próprio urbano (o caso das grandes fábricas instaladas na periferia e que tinham sua própria vila operária, com escola, armazém, capela, etc.) ou não tinham ainda uma escala em que os equipamentos e infra-estrutura existentes fossem insuficientes a tal ponto que inviabilizassem a produção.

O capital mercantil vivera, com as obras de Passos, principalmente a construção do porto, seus dias de glória e não parecia demandar grandes transformações no espaço.

Para os trabalhadores, muito menos interessava o urbanismo, já que a intervenção levaria à desarticulação – a derrubada do Morro do Castelo expulsou milhares de famílias da área central, coibindo sua sobrevivência, que se apoiava na localização espacial – da tradicional rede de solidariedade e viração, que sobrevivia graças à “desorganização” espacial.

Quem precisava de urbanismo eram, portanto, os urbanistas! (PECHMAN, 1996, p. 359)

A leitura de Pechman parece desconsiderar intencionalmente certos elementos ao atribuir aos grupos de pressão de urbanistas lato sensu a necessidade de criação de um plano geral para guiar o futuro da cidade e buscar solução para os seus problemas. Estes grupos de profissionais têm importância, como veremos, mas o autor não leva em conta, em primeiro lugar, que o Rio de Janeiro, em finais dos anos 20, ainda vivia em perfeito caos (se não é que vive até o presente momento).

Esta é, por exemplo, a opinião de Stuckenbruck. Para ela:

Quando falamos em consenso sobre a remodelação da Cidade, referimo-nos, primeiramente, a uma convergência de opiniões sobre o caos que reinava no Rio.
Os jornais, melhor fonte para acompanhar o dia-a-dia de uma metrópole, não deixavam de anunciar os quebra-quebras nos trens da Central, as brigas de rua, a ausência de calçamento, água, luz e esgoto nos subúrbios, enfim, a desordem que parecia tomar conta da vida dos cariocas. (STUCKENBRUCK, 1996, p. 83)

Outra questão a se considerar, sobre a necessidade de um plano, é a ideologia de modernização e adequação da capital do país aos padrões ditos civilizados. Embelezar, mostrar força e salubridade, criar espaços de convivência como os existentes na Europa, e mesmo como os que conferiam status às cidades platinas, como Buenos Aires e Montevidéu, foram metas perseguidas pela elite brasileira, desde o início da República. A capital parecia simbolizar, ao menos, ser a vitrine do novo regime. Segundo Abreu, desde Passos, a questão era transformar o Rio num verdadeiro símbolo do “novo Brasil” (ABREU, 2003, p. 60) e conforme Stuckenbruck, – para ficarmos em dois exemplos –, a Capital Federal, na preparação das comemorações do centenário da independência, precisava “mostrar todo o potencial de um país que se quer moderno, de braços abertos para o progresso do século XX.” (STUCKENBRUCK, 1996, p. 51)

Ora, este influxo de modernização e simbolismo, atribuído à cidade do Rio de Janeiro, não cessa após a reforma Passos e as comemorações de 1922. A cidade é o símbolo e vitrine do país, permanecendo assim até mesmo depois de deixar de ser a capital, nos anos sessenta. Ademais, as obras de modernização da gestão Sampaio estavam inconclusas e, portanto, incompleto estava o projeto das elites, incluso os representantes do capital mercantil e industrial. Mesmo os trabalhadores reclamavam por intervenções na cidade e disputaram a atenção na ocasião da elaboração do plano.

Por fim, há que se registrar que o capital imobiliário e financeiro, principalmente o forâneo, se fazia presente no debate. As transformações urbanas haviam movimentado vultuosas quantias e, certamente, esses empresários e investidores tinham interesse em não parar a máquina de transformação. Ilustrativa é, no momento de ajuste fiscal da gestão Alaor Prata, a proposta de parceria público-privada de um grupo de banqueiros americanos, que fizeram o empréstimo de US$ 13.000.000,00 para a gestão anterior: 

Blair e Cia., por si ou intermediário de uma sociedade ou companhia brasileira que será incorporada para esse fim:
1- Reembolsarão a Prefeitura de todas as despesas feitas até hoje nas obras do Morro do Castelo e do Morro da Viúva [...].
2- Tomarão a responsabilidade financeira da continuação das obras do Morro do Castelo e desapropriações a se fazer.
3- A Prefeitura cederá aos ditos banqueiros ou a sociedade a organizar todos os terrenos conquistados, excetuando aquelles já vendidos ou dados em troca de desapropriações até hoje realizadas e aquelles que forem necessários às vias públicas [...] inclusive os terrenos e propriedades no [...] Morro da Viúva, sendo a respectiva importância paga pelos banqueiros ou sociedade a organizar, à proporção que forem sendo entregues os ditos terrenos [...].
4- A Prefeitura terá uma participação de certa percentagem a estipular nos lucros dos banqueiros ou sociedade a organizar, na revenda dos ditos terrenos [...].
5- Os banqueiros ou sociedade a organizar executarão igualmente, por conta da Prefeitura, todas as obras de preparação dos terrenos e seu respectivo arruamento [...].
6- A Prefeitura obriga-se a solicitar e obter do Conselho Municipal a autorização necessária para efetuar esta operação. (SAMPAIO, 1924 apud ABREU, 2003, p. 79)

A julgar pela seriedade da proposta, ela demonstra a importância dada ao espaço urbano como locus de reprodução do capital. Por estes argumentos, parece não ser só uma questão de urbanistas a causa do debate intenso sobre um plano de remodelação da cidade. O fato é que Agache será contratado e o plano apresentado, mantendo o debate aceso sobre os rumos da cidade.

Agache e a produção do espaço

Foram três anos de trabalho para que Agache apresentasse o seu plano4  (SILVIA, 1996, p. 405). Não cabe aqui, nem ter-se-ia condições para tanto, uma análise detalhada, sob o ponto de vista técnico, das soluções urbanísticas encontradas pelo autor para resolver as patologias identificadas em seu estudo. O interesse, aqui, é uma compreensão geral dos aspectos políticos e ideológicos do plano e seus reflexos na organização espacial, na relação entre Estado e capital e nos mecanismos que impactam a reprodução do capital.

A primeira consideração a ser feita é que o projeto apresentado se enquadra perfeitamente no espírito que Vera Rezende define como sendo um plano diretor, no qual “sua utopia é evidenciada na proposta de desenho físico como capaz de ordenar padrões de relações sociais e até de subverter a estrutura de classes ou, ainda, como modelo de sociedade sem classes” (REZENDE, 1982, p. 31). Além desta preocupação com a distribuição espacial das classes sociais, o plano, dentro da perspectiva funcionalista, e segundo a mesma autora, “apresenta para a cidade do Rio de Janeiro duas funções, que considera primordiais: função político-administrativa como capital, e função econômica como porto e mercado comercial e industrial” (REZENDE, 1982, p. 43).

Estes dois aspectos irão nortear as soluções apresentadas. As questões de zoneamento espacial merecem ser analisadas de início. A proposta é realizar uma divisão da cidade em áreas que irão se especializar de acordo com a função mais adequada, segundo o entendimento do autor. Nas palavras do próprio:

É, pois, natural que esses diferentes tipos de construções correspondentes às necessidades que reclamam condições particulares de viação, de loteamentos, de orientação do alinhamento, densidade, etc., para o conforto, a higiene e o respeito da sua feição própria, não se misturem entre si ao capricho do acaso, mas seja cada qual imposto onde corresponde às necessidades, predominando o tipo adequado, com exclusão de alguns, aos quais deve ser reservado o território mais favorável à sua edificação normal, criando-se, desta forma, uma ordem e uma harmonia desejáveis sob todos os pontos de vistas. É este o princípio e fim visados pelo “zoning”, que exige, além disso e pelas mesmas razões, uma separação muito distinta entre os bairros de residência e os bairros do comércio e indústria. (AGACHE, 1930, p. 128)

Para o Rio de Janeiro, foi definido que:

Os elementos funcionais da cidade podem ser agrupados sob vários títulos: Posto de comando, que compreende o centro legislativo e o centro administrativo da cidade. – Bairros de intercâmbio, isto é, o centro dos grandes negócios, com o agrupamento dos bancos e os diferentes centros de intercâmbios instalados nas imediações do porto e das gares. – Bairros do abastecimento, que compreendem os centros do comércio médio e do abastecimento; residências particulares e coletivas. – Bairros de produção, ou centros industriais, rurais ou agrícolas. – Bairros residenciais, repartidos em residências de luxo, residências burguesas e residências operárias, algumas das quais são representadas por imóveis possuindo vários pavimentos, e outras por casas individuais. – Bairro universitário, que agrupa as Faculdades, as grandes escolas e o centro de estudantes. – Centros recreativos, nos quais são compreendidos os recreios físicos (campo de esportes, de jogos, etc.), os recreios intelectuais (museus, teatros, cinemas, etc.), e os parques de diversões populares. (AGACHE, 1930, p. 158)

Ademais, uma possível crítica urbanística ao zoneamento proposto, em sua lógica interna, é que se tem, a pretexto de um melhor funcionamento, a cidade espacialmente dividida entre as classes sociais. E isso causa impacto na valorização dos terrenos e garantiria o retorno dos investimentos do capital imobiliário.
 
Em primeiro lugar, tem-se o vetor da valorização da divisão entre bairros burgueses - alta sociedade e classes médias – de um lado, e, do outro, os bairros proletários. A elite do Rio de Janeiro ficaria com o melhor quinhão da cidade: iniciam na região do Andaraí e Vila Isabel, contornam e atravessam a Floresta da Tijuca, por Santa Teresa, Catete, Laranjeiras, Flamengo, Botafogo, e desaguam na região mais valorizada, e em crescimento, que era Copacabana, Ipanema, Lagoa e Leblon.

Aos operários, o plano resguarda – muito zelosamente – as regiões que margeiam as linhas férreas e a rodovia Rio-SP. A preocupação com o transporte de massas é evidente para levar a mão de obra para o trabalho e, principalmente, trazê-la de volta aos subúrbios. Iniciam em São Cristovão, Engenho Novo e Bom Sucesso e terminam em Vigário Geral, Madureira e na Baixada Flunimense (AGACHE, 1930, pp. 188-194).

Tal divisão tem impacto direto na valorização dos terrenos e construções da área nobre. Expulsar os operários e demais indivíduos de baixa renda era assegurar o sucesso dos empreendimentos. O que Agache faz é cristalizar no plano algo que já vinha sendo feito há algum tempo. Abreu relata a tentativa, na primeira década do século XX, de se preservar a Zona Sul às classes de renda mais alta ao irem, paulatinamente, eliminando as fábricas e bairros operários que existiam na região. Por exemplo, foram fechadas a Companhia de Fiação e Tecidos Corcovado, localizada em pleno Jardim Botânico, e a Fiação Tecelagem e Tinturaria Aliança, com mais de 1.000 operários, nas Laranjeiras. (ABREU, 2003, p. 59)

A segunda vertente de valorização é que, ao reservar o centro da cidade para as atividades de comércio e serviços, afastando dali as residências, por motivos óbvios, tinha-se o intento de completar o processo iniciado por Passos, de limpeza da área central dos cortiços e moradias populares. Igualmente, higienizava-se o centro dos pobres e garantia-se os vultosos investimentos realizados para a criação de um centro comercial moderno, em lugar da outrora cidade colonial.

Para Rezende, “na proposta estrutural apresentada no plano, torna-se evidente a intenção de privilegiar partes da cidade. Promove-se, dessa forma, a divisão do espaço urbano e sua apropriação, tendo como referencial não-expresso o valor da terra” (REZENDE, 1982, p. 80). Talvez tal preocupação não esteja tão oculta. O autor, ao explicar a legislação anexa ao plano e a importância do zoning, expõe que o mesmo “protege a propriedade, mas ele tende, sobretudo, a impedir a desvalorização dos terrenos e estabilizar o seu valor” (AGACHE, 1930, Anexo, p. VII).

O privilégio da parte da cidade com vocação a vitrine é tão evidente que, apesar dos reclamos, os subúrbios foram ignorados no processo de elaboração do plano, sendo somente entendidos como lugar de fábricas e moradia da classe operária. Stuckenbruck aponta que, receosos do projeto a ser apresentado por Agache, parte dos moradores dos subúrbios organizaram-se em associações, tais como o Centro Pró-Melhoramentos de Irajá, o Conselho Pró-Melhoramentos de São Francisco Xavier, a Liga Católica de Jesus do Méier, a Liga Católica de Piedade, o Grêmio Beneficente Simples do Irajá e o Centro União de Quintino Bacayuva.

Vozes dos subúrbios aparecerão nos jornais para fazer a crítica ao plano, como a carta dos moradores de Bento Ribeiro, clamando por água, luz e energia elétrica e, aqui, vale a transcrição da carta ilustrativa de um cidadão comum:

O subúrbio aqui presente não quer perder a oportunidade de chamar a vossa esclarecida atenção para ele. Nos meus recônditos e desvão Sr. Agache, eu tenho belezas rivalizantes com as tijucas, leblons, as copacabanas e as larangeiras. Não se esqueça de mim. (STUCKENBRUCK, 1996, pp. 85 e 101)

Apesar dos apelos, o entendimento da função dessas regiões foi a exposta nas linhas anteriores.

Contudo, tal tendência reafirmada no plano de valorização do centro e zona sul pela estratificação da cidade geraria uma contradição para a acumulação do capital em geral, em detrimento dos benefícios à fração do capital imobiliário. Abreu, com precisão, explica que:

A evolução do espaço urbano carioca no período 1930-1964 é tão contraditória quanto o próprio período. Em 1930 a cidade já se encontrava bastante estratificada, isto é, classes altas predominantemente na “nova” Zona Sul; as classes médias na antiga Zona Sul e na Zona Norte; e a classes pobres nos subúrbios. Assim, o Plano Agache não faria mais que oficializar a posteriori o que o espaço já continha. O paradoxo, entretanto, é que tal forma espacial passa a ser contraditória com as necessidades de acumulação do capital. E grande parte dessa contradição é determinada pela natureza mesma do espaço.

O crescimento tentacular da cidade, em parte determinado por condicionantes físicos, havia resultado no aumento das distâncias entre local de trabalho e residência, exigindo deslocamentos cada vez maiores da força de trabalho. Tal crescimento não foi acompanhado, entretanto, da melhoria do transporte coletivo de massa, principalmente do ferroviário. E mesmo quando isso aconteceu, com a eletrificação da EFCB no final da década de 30, os subúrbios já estavam de tal modo ocupados (ou mantidos como reserva de valor), que a população pobre só poderia se radicar em áreas longínquas, para além da fronteira do Distrito Federal. A contradição aparecia, entretanto, na necessidade dessa população vir a se localizar em áreas mais próximas, para satisfazer à demanda crescente de força de trabalho por parte da indústria e dos serviços. (ABREU, 2003, p. 94)

Essa contradição se resolve com a cidade ilegal, que cresce com a ocupação das áreas altas, mangues, margens de rios e terrenos vazios, propositalmente como reserva de valor. A favela, que surge em finais do século XIX, cria raízes, cresce e espraia-se por toda a cidade, servindo de moradia para a classe trabalhadora e desvalidos. Agache se debruçará sobre o problema ao elaborar o seu estudo.

A análise sobre as favelas é outro ponto relevante da obra que merece ser pensado. A presença deste tipo de ocupação, em meio às áreas nobres da cidade, é encarada, naturalmente, como algo disfuncional ao propósito do plano. De nada adiantaria erradicar os cortiços e bairros operários se tal população se reinventasse nos morros e favelas. Isso atrapalha o processo de valorização e, segundo Rezende, “dentro de uma ação planejadora que implica embelezamento e remodelação, visando entre outros objetivos o preparo da cidade para o estrangeiro e o turista, a existência da favela é tratada como um desvio inadequado que afeta a harmonia urbana.” (REZENDE, 1982, p. 85)

O autor acredita que a resolução do “problema” é relativamente simples: construção de moradias populares nos bairros populares, transferência da população das favelas e, por fim, “não se pode pensar em sanear essas aglomerações sem concluir uma destruição total” (AGACHE, 1930, p. 190).  Evidente que a simplicidade da questão para o autor advém do fato de o mesmo ignorar qualquer papel de sujeito ativo a essas populações e de possuir uma visão extremamente paternalista e civilizadora.

Vejamos,

À medida que as vila-jardins operárias serão edificadas em obediência aos dados do plano regulador, será conveniente reservar um certo número de habitações simples e econômicas, porém higiênicas e práticas, para a transferência dos habitantes da favela, primeira etapa de uma educação que os há de preparar a uma vida mais confortável e mais normal. (AGACHE, 1930, p. 190)

Até a destruição total, Agache propõe que o poder público impeça qualquer construção estável e definitiva nas favelas. O uso desses espaços urbanos, depois de devidamente saneados e urbanizados, no máximo seria permitido para a construção de moradias para pequenos funcionários e os pequenos empregados do comércio, em áreas próximas ao porto, como os morros da Conceição, Providência e do Pinto (AGACHE, 1930, p. 190).

Além das questões do zoneamento e das favelas, o plano se debruça sobre diversos outros problemas a serem enfrentados. Há toda uma parte dedicada ao sistema de saneamento e abastecimento de água da cidade e, como era de se imaginar, uma extensa abordagem sobre a questão do viário e transportes. Incluso sobre a preocupação com a abertura de vias para os automóveis, a estrutura de circulação é pensada de modo a integrar os diversos bairros oriundos do zoneamento.
 
Não é do interesse deste trabalho um detalhamento dessas partes do plano, mas cabe frisar que

as proposições do plano, ainda que tenham por objetivo solucionar a cidade em geral, tornam-se mais detalhadas quando se orientam para a área central da cidade, prevendo ligações e traçando ruas, especialmente nas áreas resultantes do desmonte dos morros do Castelo e Santo Antônio. A conexão de vias principais é dada pela construção de praças rótulas, configurando, além de uma solução técnica, uma solução estética. (REZENDE, 1982, p. 97)

Por fim, o autor apresenta a proposta de uma extensa legislação anexa ao plano. Destaca-se, aqui, o tema do financiamento para a implementação das intervenções previstas. O mecanismo básico previsto não difere muito das fórmulas encontradas pelas intervenções anteriores ocorridas na cidade: a prefeitura faria a desapropriação dos terrenos necessários e, depois de realizadas as obras necessárias, venderia os terrenos para apurar a diferença gerada pela valorização dos espaços.

A novidade é que Agache baseia-se em experiências de outras cidades para propor uma política de reserva territorial em que o Estado deveria deter a maior parte dos terrenos para poder viabilizar a execução do plano, pois, para ele, o grande óbice de qualquer reforma é o elevado preço da terra. Deste modo, pergunta-se:

Será possível que não exista um meio de obter terrenos a preços módicos? – A esta pergunta numerosas cidades responderam afirmativamente. Alguns urbanistas são de opinião que nenhuma reforma é viável se as municipalidades não possuírem a totalidade dos terrenos urbanos. A nosso ver isto é um exagero; mas, se a cidade possuir a maioria dos terrenos, poderá estabilizar o mercado territorial. (AGACHE, 1930, Anexo, p. XXXII)

Como estratégia adequada à realidade local, o anteprojeto de lei prevê uma série de mecanismos para a aquisição dos terrenos e para a captura da mais-valia urbana, de modo a possibilitar a realização do plano e garantir o retorno financeiro ao ente público.
 
Em síntese, pode-se resumir que: 1) dentro dos limites do plano, a autoridade municipal tem o direito de aquisição reservado por 10 anos, a contar da data de aprovação do plano, e de 20 anos, nas áreas limites exteriores às aglomerações projetadas; 2) a partir da data de aprovação, construções e reformas só com a autorização do município; 3) o valor das indenizações pela desapropriação será calculado por uma média do valor do terreno dos últimos três anos à data da expropriação; 4) o município cobrará uma taxa de valorização dos proprietários para a captura da mais-valia urbana gerada; 5) por fim, há todo um regramento para ordenar a recomposição territorial, a ser conduzido por intermédio de uma comissão de proprietários. (AGACHE, 1930, Anexo, p. XLIV)


Rezende vê na proposta um elemento de contradição. Para ela:

A importância dessa proposição no plano reside no fato de que o autor vê a reserva territorial como massa de manobras que controla o valor da terra, tornando-se um fator efetivo de estabilização do mercado imobiliário. Este é um dos momentos de contradição do plano. Pois, embora em seu desenvolvimento distribua o espaço urbano ao consumo coletivo, privilegiando áreas e gerando valor no solo urbano, nesse momento propõe a instituição de um mecanismo que viria refrear ações especulativas. Consideramos que a justificativa reside na importância que o aspecto implementação assume para o autor, em detrimento de quaisquer outros valores. (REZENDE, 1982, p. 104)

Ora, o que à primeira vista pode ser entendida como contradição, em realidade acaba por confirmar a tese do plano como veículo de valorização da terra e geração de mais-valia urbana. Por ter a exata noção de que o plano possibilita o início deste processo, o autor propõe a reserva territorial como antídoto. Mais do que isso, é a única maneira de garantir todo o processo. Uma valorização da terra antecipada, causada pela especulação imobiliária ao saber e influenciar o plano, colocaria em risco o próprio plano e, consequentemente, a valorização esperada com a sua correta e completa implementação.

Os entes estatais e o aproveitamento do Plano

Passando-se a outro aspecto, as relações entre os entes estatais e o aproveitamento do projeto jogam luz sobre a dicotomia Estado e urbano. Mais precisamente, evidenciam um novo padrão na relação entre estes e o capital privado. Na República Velha, liberal e patrimonialista, o jogo entre a intervenção estatal no espaço urbano e o capital era mais fluido. Com o cientificismo do urbanismo, apresenta-se uma tendência à maior rigidez na trama de relações. A suposta contradição analisada, há pouco, por exemplo, é prova de que o urbanista poderia limitar a especulação imobiliária e seus ganhos em prol da execução do plano.

Seria impensável, para o período anterior à Revolução de 30, que uma política pública se sobrepusesse ao interesse das frações dominantes do Estado para beneficiar a coletividade5. As intervenções eram mais pontuais e ao sabor dos interesses da elite política dominante da ocasião. Seja de modo mais estruturado, como foi a Reforma Passos, ou mais despudoradamente a serviço de interesses de grupos econômicos, como se deu no período de Sampaio.

Mesmo a contratação de Agache, por Antônio Padro Jr., pode servir como símbolo de como eram gestadas as políticas públicas. Enquanto vários grupos de pressão – Rotary Clube e Instituto Central dos Arquitetos (ICA) eram os mais destacados – debatiam por meio dos jornais e notas públicas sobre a necessidade de contratação de um urbanista estrangeiro ou delegar a tarefa a um profissional nacional, o prefeito decidiu-se pelo nome de Agache. O urbanista francês tinha sido um dos nomes citados pelos membros do Rotary Clube, adeptos da corrente que preconizava a vinda de alguém de fora da nação, mas não era uma das primeiras opções.

 O fato é que o prefeito acerta a contratação de Agache em janeiro de 1927, antes mesmo de qualquer consulta ao Conselho Municipal, dissimulando a empreitada como se fosse somente a vinda do urbanista para a realização de uma série de palestras sobre urbanismo. Enquanto todos já comentavam a contratação, só em agosto de 27 o prefeito, em sua mensagem, comunicará ao Conselho Municipal sua decisão e, em seguida, pedirá a concessão dos créditos necessários para o projeto. Em suma, pode-se dizer que a decisão por Agache passa ao largo das discussões travadas entre os grupos da sociedade civil e, mais ainda, dos membros do Conselho Municipal.

Com a Revolução de 30, o Brasil entrará em um novo padrão de acumulação do capital e em um novo tipo de Estado, mais interventor na economia e dirigente da sociedade. Em termos urbanísticos, num primeiro momento, a derrocada da oligarquia paulista será a derrocada do plano de remodelação proposto por Agache. O novo regime engaveta o projeto por estar vinculado ao antigo regime.

Contudo, Agache estava muito mais próximo a um modelo de Estado interventor do que ao modelo do Estado liberal. Suas críticas ao descaso do poder público com a questão urbanística são frequentes. Para Catherine Brunt, o autor indica que “os remédios para reparar os erros imputáveis, na maioria das vezes à ignorância dos poderes públicos, à sua incapacidade de previsão e ao laissez-faire, que permitiu que os interesses privados fossem de encontro ao interesse geral”. (BRUNT, 1996, p. 175)

Com a aproximação do francês com Salazar, de Portugal, que o convida para uma missão de análise de Lisboa, e com Vargas, a partir de 1939, a autora chega a pensar que o urbanista, e o urbanismo, só teriam lugar em regimes totalitários:

Isto significa que, junto às figuras de “pais benfeitores”, o urbanista poderia [...] ser reconhecido como uma espécie de “mediador” entre o Estado e a sociedade civil e desenvolver suas ambições? Ou, ainda que apenas pelo jogo democrático da República, as “reformas necessárias” não seriam realizadas? Desta conclusão compartilhavam, às vésperas da Segunda Guerra Mundial, um grande número de urbanistas franceses. (BRUNT, 1996, p. 194)

Isto posto, decantada a revolução, o plano será redescoberto pelo prefeito do Distrito Federal, indicado por Vargas, no período do Estado Novo. Henrique Dodsworth (1937-1945) retomará a reforma urbana da cidade para terminar as intervenções na área do Castelo e executará parte do plano proposto por Agache. Pode-se citar, como exemplos, a Praça Paris, na Glória; as galerias do Passeio sob os prédios da Avenida Nilo Peçanha, na região do Castelo; as melhorias nas estradas que ligavam o Rio a Petrópolis e a São Paulo; e, por fim, a concepção da Avenida Presidente Getúlio Vargas, construída entre 1940 e 1943 (STUCKENBRUCK, 1996, p. 112).

A Avenida que leva o nome do próprio Vargas merece destaque. Tem-se, com esta obra de grandes dimensões, a expectativa de uma nova onda de valorização fundiária na região central. Segundo Abreu,

concluída a obra e vendidos os lotes, era de se esperar que a nova artéria se tornasse um prolongamento (ainda que perpendicular) da Avenida Rio Branco, e que fosse enquadrada por grandes edifícios de escritórios e sedes de empresas. Isto, entretanto, só ocorreu nas proximidades da interseção dessas duas vias. A nova avenida ficaria, por longo tempo, vazia das construções monumentais que apareciam no seu projeto, e isto por vários motivos. (ABREU, 2003, p. 114)

O autor prossegue afirmando que as razões para o insucesso eram de três ordens. A primeira, é que a construção da avenida coincidiu com o boom de crescimento de Copacabana, que atraiu o interesse do capital imobiliário – principalmente em época de alta inflação. A mesma Copacabana, com seu crescimento, possibilitou a descentralização dos serviços e retirou força da área central. Por fim, a valorização da área central já existente reforçou ainda mais a atração de capital que investiu na remodelação do perímetro oriundo da primeira era de reformas.

Cabe ressaltar que, apesar do insucesso posterior à inauguração, a obra foi inovadora no modelo de financiamento. O Banco do Brasil concedeu o empréstimo para a construção e a prefeitura deu em garantia os lotes que margeavam a nova via, emitindo as Obrigações Urbanísticas da Cidade do Rio de Janeiro, tendo como valor nominal o mesmo pré-fixado para o lote a qual estava vinculada. A venda dos lotes em hasta pública pagaria o empréstimo concedido. A criação de uma letra hipotecária é a novidade que possibilitou o financiamento do empreendimento. (ABREU, 2003, p. 114)

Interessante notar que tal modelo de bancos públicos, Estado, títulos e capital privado retornará à cidade do Rio de Janeiro, nos tempos atuais, por meio do projeto Porto Maravilha, que também contará com a presença de tais elementos para o seu financiamento e, igualmente, a avenida Presidente Vargas dependerá do boom do mercado imobiliário para o seu sucesso e seu fracasso.

Conclusão

Em conclusão do período Agache, tem-se o mesmo como representativo desta mudança de paradigma das relações entre o Estado e o urbano. Para Stuckenbruck,

A incorporação do discurso técnico sobre a cidade pelo Poder Público transformou a abordagem do último sobre a primeira: ao invés de obras restritas, realizadas em diversos pontos da malha urbana carioca, era preciso conceber um plano único de remodelação, com objetivos capazes de apreender toda a cidade em sua multiplicidade, tanto física quanto social. [...]

A partir de então, o Estado assume definitivamente o controle sobre o desenvolvimento da forma urbana carioca, ditando rumos e regras, impondo modelos. (STUCKENBRUCK, 1996, pp. 124-125) 

O movimento planificador moderno, iniciado por Agache, somado ao Estado desenvolvimentista e intervencionista, não deixará de garantir a valorização de áreas específicas da cidade e de interesse dos agentes imobiliários, mas esta conjugação gerará um grau de autonomia relativa do Estado que poderá contrariar – por convicção dos planejadores ou por descontinuidades da gestão política – os interesses do capital imobiliário, realizando os seus desejos parcialmente.
 
O Plano Agache demonstrava incômodo com a sanha especulativa do capital imobiliário e pretendia, mesmo no seio de um Estado liberal, impor limites e realizar racionalmente o plano. Por exemplo, Agache parece irredutível em flexibilizar o zoneamento para ir contra às funcionalidades pensadas por ele para a cidade. Ainda no século XX, o Rio de Janeiro terá, na sequência do Plano Agache, dois outros planos de grande envergadura e um plano adstrito à questão dos transportes: o Plano Doxíades, elaborado por técnicos da prefeitura, e o plano elaborado pela companhia do metrô (REZENDE, 1982).

Frente a tal situação, o movimento do capital será retomar um maior controle das decisões e do futuro das cidades para garantir o retorno desejado de capital. Na virada do século XX para o XXI, sob a égide liberal, as alterações na forma de acumulação e no padrão dos investimentos do capital imobiliário requererão, além da mudança no tipo de planejamento, transformações na forma do Estado. Como é óbvio, esse processo se deu de forma ampla e atingiu os mais variados setores estatais, mas, como exemplo, pode-se citar os novos instrumentos de intervenção urbana, como as Operações Urbanas Consorciadas, que entregam a regulação e gestão de parte do território das cidades para a iniciativa privada.

Em relação ao Rio de Janeiro, há a tentativa de aplicação desses instrumentos e de conceituar o município como “cidade global”6, seja na zona oeste da cidade - Cidade da Música, atual Cidade das Artes, bem como a Cidade do Rock – seja na esteira dos megaeventos – Copa do Mundo de 2014 e Olímpiadas 2016 – ou no ousado projeto do Porto Maravilha, sediado no coração da cidade. Uma mudança de concepção que comporta boa dose de crítica e que não vem conseguindo demonstrar ser capaz de equacionar os problemas da cidade dita maravilhosa.

* O presente artigo originalmente faz parte da Tese de Láurea apresentada para conclusão do curso de Direito da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco da USP.

** Renato Soares Bastos é historiador, advogado e mestre em História Econômica 
pela USP.

Notas

1- Sidney Chalhoub produziu um vivo relato do ocorrido na abertura de sua obra (CHALHOUB, 1996).

2- Lúcia Silvia também aponta para a corrupção de Carlos Sampaio: “favoreceu a concorrência fraudulenta na instalação da telefonia em Copacabana, deu à Light o monopólio da energia, saneou e urbanizou a Lagoa e adjacências em conluio com os loteadores e, principalmente, levou muito dinheiro no arrasamento do Morro do Castelo.” (SILVIA, 1996, p. 399)

3- Cabe advertir que a cidade era o Distrito Federal e a nomeação do prefeito se dava por indicação do Presidente da República. Por isso, a soma de esforços entre o governo federal e o do Distrito Federal no período Passos e o fato de um figurão paulista, sem experiência política, assumir o comando da cidade.

4- As discussões sobre possível plágio encontram-se detalhadas em: SILVIA, Lúcia. A Trajetória de Alfred Donat Agache no Brasil. In: RIBEIRO, Luiz Cesar de Queiroz; PECHMAN, Robert. Cidade, povo e nação – Gênese do urbanismo moderno. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1996. p. 405.

5- Apesar de todas as possíveis críticas, o Plano Agache tem como meta a ordenação global da cidade.

6- Segundo Arantes, o conceito requer a mobilização de inúmeros fatores culturais, a presença de megaprojetos e/ou megaeventos e a fabricação de consensos, incluso o orgulho cívico dos habitantes da cidade, gerando a novidade desta fase de acumulação, que é a transformação da cidade em mercadoria a ser transacionada e consumida (ARANTES, 2013).

 

Referências

ABREU, Maurício de Almeida. Evolução Urbana do Rio de Janeiro. 4. ed., Rio de Janeiro: IPP – Instituto Pereira Passos, 2003.
AGACHE, Alfred Hubert Donat. Cidade do Rio de Janeiro: Extensão – Remodelação – Embelezamento. Paris: Foyer Brésilien, 1930.
ARANTES, Otília Beatriz Fiori. Uma estratégia fatal – A cultura nas novas gestões urbanas. In: ARANTES, Otília; VAINER Carlos; MARICATO, Ermínia. A Cidade do Pensamento Único: Desmanchando Consensos. 8. ed., Petrópolis, RJ: Vozes, 2013.
BRUNT, Catherine. Agache: urbanismo, uma sociologia aplicada. In: RIBEIRO, Luiz Cesar de Queiroz; PECHMAN, Robert. Cidade, povo e nação – Gênese do urbanismo moderno. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1996.
CHALHOUB, Sidney. Cidade Febril – Cortiços e epidemias na Corte Imperial. São Paulo: Companhia da Letras, 1996.
HOLANDA, Sérgio Buarque. Raízes do Brasil. 9. ed. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1976.
PECHMAN, Robert Moses. O Urbano fora do lugar? Transferências e Traduções das Ideias Urbanísticas nos anos 20. In: RIBEIRO, Luiz Cesar de Queiroz; PECHMAN, Robert. Cidade, povo e nação – Gênese do urbanismo moderno. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1996.
REZENDE, Vera. Planejamento Urbano e Ideologia. Quatro Planos para a Cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1982.
SILVIA, Lúcia. A Trajetória de Alfred Donat Agache no Brasil. In: RIBEIRO, Luiz Cesar de Queiroz; PECHMAN, Robert. Cidade, povo e nação – Gênese do urbanismo moderno. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1996.
STUCKENBRUCK, Denise Cabral. O Rio de Janeiro em questão: O Plano Agache e o Ideário Reformista dos Anos 20. Rio de Janeiro: Observatório de Políticas Urbanas: IPPUR: FASE, 1996. 


 

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