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Opinião

Edição 157 > A Questão Identidade: Desafios para o Marxismo-Notas

A Questão Identidade: Desafios para o Marxismo-Notas

Mary Garcia Castro
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Advertências. Este texto-ensaio reflete dúvidas, questões em pesquisa e pretende ser um pontapé para debates que mais aprofundem o que pretendo vir a desenvolver sobre políticas de identidade x identidades históricas e coletivas na política. Desafios para o Marxismo. 
 
Agradeço à Escola Loreta Valadares, ao núcleo de Formação e Propaganda, à Fundação Maurício Grabois Bahia pelo estímulo a esta escrita, com convite para uma palestra sobre o tema. 

Assumam como rascunho as provocações que lhes jogo, já que, como nos adverte Engels, o critério da verdade é a história, e as ideias sem carne, militâncias e conhecimentos empíricos não necessariamente colaboram para a história das ideias, mas para idealizações. E neste estágio ainda falta tal chão, práxis que dialogue com as reflexões seguintes.

1. Algo sobre o Conceito de Identidade

Identidade é entendida como uma construção social, baseada em relações em que individual ou coletivamente se demarca quem somos, quem são eles, quem são nossos iguais, quem são os diferentes e qual a natureza de tal diferença; ou seja, relacionada à diversidade, ou a desigualdades, a conflitos, negociáveis ou não, ou a antagonismos. Identidade, diferença e alteridade se retroalimentam.

Segundo Silva (2000), etimologicamente o termo identidade deriva do latim identitas, que se refere a idêntico, ou seja, um antônimo geral de diferente. Analisando o significado das duas palavras, no entanto, e sem deixar de lado um contexto específico, percebe-se que a identidade é, antes de tudo, construída a partir da diferença. Isto é, não existe identidade sem diferença. A afirmação de uma determinada identidade só é necessária, e de certa forma possível, pois existe a necessidade de diferenciá-la de outras identidades. 

Ou seja, identidades não podem ser concebidas fora das relações sociais, pois desta forma perdem significado. Por outro lado, envolve narrativas em disputa, projetos singulares.

Ligada a entidades histórico-sociais, a identidade é uma categoria relacional, intersubjetiva e histórica. É uma parte e um modo das relações que na história se estabelecem, se modificam ou se cancelam, entre as diversas formas organizadas de existência social. (QUIJANO: 1992, p. 4) (1).

Já Bauman afirma:
A identidade é um grito de guerra usado em uma luta defensiva: [...] um grupo menor (e por isso mais fraco) contra uma totalidade maior e dotada de mais recursos (e por isso ameaçadora). [...] A identidade é uma luta simultânea contra a dissolução e a fragmentação; uma intenção de devorar e ao mesmo tempo uma recusa resoluta a ser devorado. (2005, p. 83-84) (2).

Castro (2000) ponderava:

“No campo do pensamento social, ‘em período moderno’, a difusão o conceito de identidade, mas se prenderia, para muitos autores, como Bauman, à ascensão do individualismo, tendo referências sistemáticas em textos de John Locke e David Hume [...]. Segundo Plummer, o conceito se torna popular no século XX, em especial nos EEUU, nos anos 50. Sendo obras de referência, nesse sentido, o livro The Lonely Crowd de Riesman et al (1950) e Identity and Anxiety de Stein et al (1960). Tais autores, como outros do período, enfatizariam a ‘crescente perda de significados na sociedade de massa’. Nos EEUU nos anos 60, a questão da identidade torna-se referência de muitos trabalhos (Castro 2000)” (3).

2. A crítica marxista

2.1. A crítica vulgar

Identidade não é um tema novo no âmbito dos debates políticos e das ciências sociais, mas vem adquirindo destaque hoje, em especial por sua relação com  movimentos por direitos e reconhecimento da humanidade dos negros, das mulheres, das pessoas GBTQI — quando se rotula, equivocadamente, como “esquerda identitária”, que, segundo alguns, seria perspectiva antagônica à da luta de classes, que levaria a fragmentações e abandono de elaborações caras ao marxismo, como as da unidade dos contrários, a centralidade do trabalho nas contradições entre capital e trabalho, e à economia como instância básica da luta de classes, e a ênfase no processo de produção, de acordo com o modo e a apropriação dos meios de produção.  
A leitura simplificada do marxismo, sem relacionar teoria a momentos históricos, assim como a desqualificação da produção de esquerda dos tidos como poderes/saberes menores, como o feminismo – e nesse destaco o feminismo negro –, do acervo sobre história do povo negro, desconhecendo a importância da escravidão para a formação contemporânea da nação, e a complexidade dos debates sobre etnicidade, leva muitos “capas” da esquerda no Brasil, em nome de salvaguardar a pureza do marxismo, a repetir acriticamente escritos sobre a chamada “política de identidades”.

O que se convencionou chamar de políticas de identidades, a questão dos direitos dos negros, das mulheres, dos homossexuais, por exemplo, de fato nos EUA é visibilizado por uma corrente de orientação liberal, individualista, fragmentária,  “guetoizante”. Mas não necessariamente é o debate sobre identidades, assim como sobre “não identidades” e “desidentificações” na política, expressões do autor marxista Terry Eagleton (4), propriedade de uma corrente de conhecimento, e ter acento exclusivo no “eu”, ao contrário, o que mais discuto neste texto.  

Exemplo de equívocos à esquerda: No blog Oriente, Mídia, Cultura de Resistência, em 19 de agosto de 2017 foi publicada uma matéria intitulada Gilad Atzmon: Charlottesville e o Problema da Política Identitária de Direita e de Esquerda nos EUA, divulgada no Brasil por Aldo Rebelo.

O autor da matéria chega ao absurdo de declarar que:

No meu recente livro Being in Time – a Post Political Manifesto, ressaltei que o Ocidente e especialmente os EUA têm sido levados na direção de um duelo identitário. Nesta semana no estado da Virgínia (Charlottesville) vimos uma amostra disso. [Referência à maior marcha dos supremacistas brancos nos últimos anos nos EUA que levou a confrontos com manifestantes contrários aos racistas e deixou três mortos].

No livro argumento que a transição política da esquerda tradicional para a neoesquerda (New Left) pode ser entendida como a defesa feroz de ideologias desagregadoras e sectárias. Enquanto a antiga esquerda esforçou-se para aglutinar todos: gays, negros, judeus ou brancos em uma luta política contra o capital, a neoesquerda tem conseguido nos dividir em segmentos identitários. Somos adestrados a falar ‘como um…’; ‘como um judeu’; ‘como um negro’; ‘como uma lésbica.’ A neoesquerda ensinou a nos identificarmos com nossa biologia, com nosso gênero, orientação sexual e cor da pele, desde que não seja ‘branca’, naturalmente.

O que o autor omite é que ser negro, ser judeu, ser mulher nos EUA, e em muitas outras partes do mundo, não se resume a ter uma característica biológica, mas a estar “vulnerabilizado” por preconceitos e discriminações e inclusive por violências institucionalizadas.

3. A Crítica Marxista Informada

Como bem sugere Júlio Vellozo no prefácio do livro de José Carlos Ruy, Biografia da Nação: História e Luta de Classes, “a única ortodoxia que os marxistas devem aceitar é a do método” (5). Ora o materialismo dialético pede que se decole de tempos, situações vividas, análise de conjunturas, dos antagonismos, das correlações de forças e o cuidado com determinismos. No mesmo prefácio, acrescenta Vellozo: “toda história parte de uma interpretação comprometida com uma visão de mundo” (RUY, 2018:p. 7). Cabe, portanto, desvendar distintos usos do debate sobre identidades, hoje, e disputar narrativas de acordo com projetos.

Há marxistas que se voltam para melhor compreender períodos atuais, considerando que cultura condiciona e distorce interpretações sobre modos de produção de bens e ideias, e que as relações sociais entrelaçam vários processos conflitivos, mas não necessariamente antagônicos. 

Vários autores marxistas apostam na disputa teórico/pratica militante, negando determinismos individualistas de um termo identidade – que tem o eu, o corpo, a minha vivência como porto de decolagem, “lugar de fala” – que, por um lado, pode de fato contribuir para guetos, para lutas moleculares, restritas a micropolíticas, que tanto encantam pós-estruturalistas e pós-modernos, mas, por outro, pode potencializar nexos entre macro e micropolítica. 

E a micropolítica hoje, o cotidiano, vivências, desejo, afetos são estruturantes quer de acomodações quer de formas de resistir, como bem reflete a psicanalista e feminista à esquerda Suely Rolnik em Esferas da Insurreição. Notas para uma vida não cafetinada (2019) (6), quando analisa o estado da nação, hoje dominado por “consciências colonizadas”, um “inconsciente colonial-capitalístico” (p. 13). A micropolítica se refere à reprodução da vida, instâncias em que a afirmação de “eus” coletivos podem ou não decolar.

A questão identitária historicamente muito contribuiu para a crítica ao colonialismo e ao pós-colonialismo na África e nas Américas, para a resistência de grupos étnicos, para a ênfase em uma identidade nacional avessa ao imperialismo; esse o outro a ser combatido, o diferente, aquele com quem temos de nos desidentificar, por rupturas, saindo de identificações e por nexos entre micro e macropolítica. 

Tal perspectiva colabora para discutir fontes estruturantes de violências, como racismo/colonialismo, e patriarcado e tantos outros processos que se não se confundem, se fundem na manutenção do capitalismo. 

Vários autores marxistas contemporâneos não renegam a potencialidade crítica do debate sobre identidade, mas nem todos concordam entre si. Há marxistas, como Stanley Aronowitz, que em seu livro Politics of Identity (apud Castro, 2000) enfatizou, já nos anos 1990, a importância de uma identidade operária que nos EUA se livrasse de corporativismos, da exclusiva defesa de operários especializados e considerasse a diversidade dos constituintes. Ele também alertou para o risco de uma perspectiva de identidade mais afim “`as classes médias, sem o componente de classe”, mas esse autor defendeu a importância de “movimentos de lutas contra as violências contra os negros e contra as mulheres, por exemplo” e insistiu sobre a criação de um “novo sindicalismo”, ou de um “sindicalismo social” em que se combinaria práticas de movimentos sociais e do sindicalismo, agência de luta dos direitos dos trabalhadores.

Outros como Hobsbawm, que também escreveu sobre identidade nos anos 1990, diferentemente de Aronowitz, seriam céticos sobre o sindicato e o partido virem a absolver frentes de luta que se formam considerando outras contradições, como a instalada nas relações raciais e de gênero. Hobsbawm, em artigo com o título A Política de Identidade e a Esquerda (1996), relaciona a expansão nos EUA do debate sobre identidades nos anos 1970 à expansão da ética individualista. Hobsbawm defende que “o projeto político da esquerda é universalista, é para todos os seres humanos”, sendo a favor de reivindicações específicas no plano de direitos humanos e sensíveis a realidades específicas, mas não como políticas autorreferidas.

Para melhor compreender esses dois autores clássicos do marxismo contemporâneo, apresento trechos de texto elaborado em 2000 e publicado em Cadernos do CRH que, com Eneida Cunha, da área de Letras, organizamos sobre Identidades, Alteridades, Latinidades. O título do meu artigo já identifica a mensagem: Palavras em Busca de Corpos e Terras. Identidade, Identificação, Políticas de Identidade – Leituras de Esquerdas (7).

Destaco, de Hobsbawm (1996, p. 86-92, apud CASTRO, 2000, p. 65-66):

El surgimiento de la política de la identidad es una consecuencia de los levantamientos y transformaciones extraordinariamente rápidos y profundos de la sociedad humana en el tercer cuarto de este siglo [...]. Esta no es sólo mi opinión. El sociólogo estadunidense Daniel Bell, por ejemplo, en 1973 argumentaba que ‘la desintegración de las estructuras tradicionales de la autoridad y de las unidades sociales afectivas previas – históricamente, nación y clase – daban mayor realce al vínculo étnico’.

En realidad, nosotros sabemos que tanto la nación-estado como los antiguos partidos políticos y movimientos basados en la clase se han debilitado a consecuencia de esas transformaciones. Es más, hemos vivido – y vivimos – una ‘revolución cultural’ gigantesca […] Hombres y mujeres buscan grupos a los que pertenecer, en el qué nada és más seguro. Y lo encuentran en grupos de identidad […].

[…] Los grupos de identidad no eran ciertamente centrales para la izquierda, los movimientos políticos y sociales de masas de la izquierda, es decir, inspirados  en las revoluciones estadounidense y francesa y en el socialismo, eran en realidad coaliciones o alianzas de grupos, pero no se mantenían unidas por metas que fueron especificas al grupo, sino por causas grandes y universales a través de las cuales  cada grupo creía que sus metas particulares se podían realizar: la democracia, la república, el socialismo, el comunismo, lo que fuera. Nuestro propio Partido Laborista en sus grandes momentos fue tanto el partido de una clase como, entre otras cosas, de las naciones minoritarias y de las comunidades inmigrantes de los británicos continentales. Era todo esto porque era un partido de la igualdad y la justicia. (Meu destaque).

Destaco, de Aronowitz (1992, in CASTRO, 2000: p. 67-70):

O que vem acontecendo, no último quarto do século [nos EE.UU.], é que assumindo-se que a classe trabalhadora  comparte uma cultura material  comum a várias classes, remove-se o debate sobre classe, tanto política como ideologicamente dos estudos sobre modernidade e subalternidade – pelo menos nas sociedades capitalistas – e assim se substitui classe por novas identidades ou por concepções mais afins a padrões de uma classe média que emerge como lugar de agentes políticos novos, mas a seu favor.

Comentava então (CASTRO, 2000: p.68): “Mas Aeronowitz defende a importância de políticas de identidade como ‘movimentos de lutas contra as violências contra os negros e contra as mulheres, por exemplo’, mas não comparte postura que defenda novas agências, substitutas das classes sociais. Insiste na importância de um ‘novo sindicalismo’ ou um ‘sindicalismo social’ na fusão entre práticas de movimentos sociais e sindicalismo [...]. Insinua, resgatando Gramsci (1966), a importância de frentes contra-hegemônicas compostas por vários movimentos, mas destacando a classe. Entretanto, a classe operária, como uma classe não mais homogênea, nem necessariamente localizada em setores da vanguarda econômica, diversa quanto a lugares e não lugares na produção de bens e riquezas. O que ‘mais se destacaria’ seria quanto à possibilidade de enfrentamento da ‘outra’ classe, aquela em situação de dominação, por uma identidade construída em tal enfrentamento (entre as classes)” (Eu destaquei).

Frédéric Jameson (1996) é outro autor marxista a advertir sobre a importância de estudos culturais com tônica marxista para entender por que se fala tanto em identidade, políticas e movimentos identitários no “capitalismo tardio”.

Madalena Guasco Peixoto, em A Condição Política na Pós-modernidade. A questão da democracia (1998) (8), em capítulo intitulado A Pós-Modernidade e as Relações entre Identidade e Classes e Universal e Local, frisa que para Jameson a luta política hoje se trava no campo ideológico, tendo neste o mercado atuando como mistificador de filosofias políticas e da própria ideologia, vendendo o valor liberdade como igualdade e, ainda segundo Madalena Guasco Peixoto, ao “mistificar o político, restringe ao máximo a possibilidade da democracia” (1998: p.205). Recorre a autora a Boaventura de Souza Santos, para quem “novos movimentos sociais” seriam gerados no encontro ou desencontro entre globalização e localização, podendo induzir “subjetividades sem cidadania”, como “o alargamento da política além do marco liberal  da distinção entre Estado e sociedade civil” (p. 211). A autora, por uma fina analise de vários autores, e por perspectiva marxista, considera importantes os chamados novos movimentos sociais e reafirma a centralidade da classe operária para a sustentabilidade e queda do capitalismo, mesmo nestes tempos de mudanças na esfera da produção, e assim conclui o capítulo (p.266) ao qual aqui me estou reportando:

[...] concordando com Jameson (1994 e 1996), Harvey (1994) e Santos (1996), estamos numa época pós-moderna e diante da universalização do capitalismo. Cai por terra a capacidade de reformulá-lo no sentido de convertê-lo num sistema mais igualitário, menos excludente e democrático.
Esse é um período de novas características que devem ser estudadas e aprendidas em profundidade, mas com o intuito de compreender as possibilidades de superação do estado atual das coisas, de superação histórica do capitalismo. (Eu sublinho).

Estes são tempos de desencantos com projetos de mudanças sociais transformativas, mas também, contraditoriamente – viva a dialética –, são tempos de ampliação de consciência social sobre desigualdades daqueles que por terem várias identidades subalternizadas estariam assumindo que de fato historicamente vêm sendo marginalizados e vêm buscando emancipação política que, como bem nos lembra a camarada Madalena Guasco Peixoto, e em outros escritos Loreta Valadares, emancipação importante, mas que será sempre limitada no horizonte do capitalismo. 

Com que visão de mundo se discute sobre lutas identitárias, com que nível de referência, à macro ou à micropolítica?

Quando Marx elogia Lincoln por seus esforços abolicionistas se refere à micro e à macropolítica, posicionando-se pela humanidade dos escravizados e alertando o entrelace entre escravagismo e a formação capitalista nos EUA. 

Na Questão Judaica, a identidade religiosa dos judeus como fonte de sua perseguição pelo Estado, tese de Bauer, é abordada por Marx, considerando fontes sociais. No artigo “A Questão Judaica” e a crítica de Marx à ideologia dos direitos do homem e do cidadão, Márcio Morena Pinto (9) (2006, p. 12) adverte:

O jovem Marx, por sua vez, dirige sua crítica contra o idealismo de Bauer e se mostra comprometido com a profunda mudança da dialética hegeliana, de modo que o problema judeu possui, para ele, um fundo social que é a verdadeira razão de sua existência, sendo que, para se tratar da emancipação dos judeus, deve-se antes interrogar-se a respeito da natureza da emancipação à qual se almeja. 

Se Bauer se orientava para a emancipação política, os direitos do povo judeu à sua religião, Marx era cético sobre tal possibilidade, mas a defendia e a combinava com o projeto de emancipação humana, e por aí a crítica ao Estado e razões desse para reprodução da questão judaica.

Em Domenico Losurdo, A luta de classes. Uma história política e filosófica (2015) (10), leio a tese de que as reivindicações identitárias podem vir a ampliar e fortalecer a luta de classes hoje. Mas insisto: se discutidas em contexto de análise estrutural materialista. Do autor algumas reflexões que, claro, por limitações de espaço, tendem aqui à descontextualização e à simplificação. Segundo o autor, no Manifesto Comunista a tese-eixo é que “A história de todas as sociedades até hoje existentes é a história das lutas de classes”. Questiona Losurdo: “A passagem do singular ao plural deixa claramente entender que aquela entre proletariado e burguesia é apenas uma das lutas de classes”, e mais: se refere ao Manifesto, onde se lê: “A história de toda a sociedade até nossos dias moveu-se em antagonismos de classes, antagonismos que se têm revestido de formas diferentes nas diferentes épocas” (op. cit., p. 15). O autor discute em vários capítulos a importância de lutas por identidade nacional, como o caso da Irlanda e da Polônia, que em carta de Marx de abril de 1870 seriam elogiadas por seu enfrentamento a “aristocratas e capitalistas”.

Em capítulo intitulado A condição da mulher e a “primeira opressão de classe”, Losurdo discute, resgatando Engels, os nexos entre “subjugação da mulher e opressão social”. Minha leitura: o debate sobre lutas ditas identitárias em perspectiva marxista pede que se considere que várias classes de sujeitos, como mulheres e negros, e de agências, como o padrão hetero-normativo, viriam colaborando em estruturar o capitalismo. 

O tema mais se complica, pois, adotar o debate sobre identidades no marxismo, pede para discutir o que se entende por lutas de classes hoje, quem são os sujeitos dessa luta que podem ameaçar o capital. Alerta para o resgate da esfera da reprodução, além da produção, para a formação das classes sociais. Pede para acessar autores, inclusive não marxistas, como Jessé de Souza (11), para quem raça seria estruturante ontem, via o escravagismo, hoje via o racismo, na formação das classes sociais no Brasil. Há que se discutir feministas marxistas, como Silvia Federici, que, em Calibã e a Bruxa. Mulheres, Corpo e Acumulação Primitiva (12), defende que o problema do marxismo  hoje é ficar preso ao debate da produção, e assim marginalizar sujeitos, como as mulheres, que via a reprodução, o trabalho doméstico, assim como o de produzir filhos e negociar cuidados e afetos, sempre desempenharam função na organização capitalista do trabalho. 

Ainda no sentido de alertar que há muito mais que cavar para modelar debates sobre identidades coletivas em perspectiva marxista, considero que há que reacessar as referências de Lenin sobre categorias sociais e classes. Segundo Poulantzas, Lenin destacava a importância de categorias sociais, transversais às classes sociais, que colaboram na crítica militante ao capitalismo. Rompendo com a corrente Althusseriana, à qual se filiou a princípio, Poulantzas defende que a relação entre política, economia e ideologia seria estruturante das classes, considerando que haveria que se partir do debate de práticas sociais, e  leitura própria dos conflitos e antagonismos em relações sociais várias que dariam pistas sobre a flexibilização quanto à unidade da classe. Sobre a perspectiva de Poulantzas em Poder político e classes sociais, informa Andriei Gutierrez (13):

Procurando fugir da tese da existência de uma distinção entre estrutura (economia) e superestrutura (política e ideologia), fundamentada no primado do elemento econômico, como forma de entendimento das sociedades de classes, a chamada ‘corrente Althusseriana’ procurou retrabalhar a relação entre economia e sociedade de um modo novo: através do par conceitual ‘determinação em última instância’ e ‘instância dominante’. As sociedades de classes deixaram de ser um ‘epifenômeno’ direto da economia e o conceito de modo de produção passou a abarcar também as instâncias política e ideológica.

Assim, um modo de produção particular poderia ter uma instância dominante outra além da econômica, e a influência desta última se daria apenas em última instância (ALTHUSSER; BALIBAR, 1971; ALTHUSSER, 1974). Se Poulantzas tem uma forte influência da chamada ‘corrente Althusseriana’, há – de modo implícito – em ‘Poder político e classes sociais’ uma relocalização desta determinação em última instância de modo muito peculiar: existe um novo tratamento epistemológico no qual a determinação do econômico se localiza apenas na prática teórica, ou seja, na construção – não na aplicação – do conceito ‘modo de produção’.

3. Fechando, por enquanto

Em 2000 ponderava a partir do conceito de categorias sociais:

“Se outros sujeitos que não o clássico, aquele modelado por relações sociais na produção de bens e riquezas para o capital, são de fato transversais às posições  de classe, isto não significa que eles sejam necessariamente extraterrestres, ou que pairem desterritorializados do cenário da economia política, da realização de um sistema de classes, constituindo-se sem identificações quanto aos nortes da economia política, e,  neste caso, apenas autorreferenciados a seus traços constituintes, ou seja, restritos a políticas de identidade autocontidas. Por outro lado, nem todos os chamados ‘novos sujeitos’ desestabilizam ou questionam o capitalismo. Ao contrário, muitas políticas de identidade são facilmente incluídas nas agendas de estados neoliberais. Até quando e para quantos/as é uma questão em aberto” (CASTRO, 2000, p. 57).

Claro que o capitalismo como rei Midas desconstrói ou reconstrói sentidos com a tendência de afirmar identidades individuais e coletivas em um bem de consumo; seduz movimentos identitários com a ilusão de inclusão, por fama, uma coluna, uma capa de revista, a moda da roupa étnica – “Black is beautiful”. Enaltece as mulheres no poder, destaca como a cultura gay é performática, e vende. 

A tese é tão-somente a de que o que se chama de movimentos identitários – que eu renomeio como movimentos sociais de categorias sociais subalternizadas por processos de opressão, combinados entre o-capitalismo, o pós-colonialismo e o patriarcado – está a pedir mais estudos, debates e investimento se o projeto é compreender, e ampliar consciências, contra a colonização pelo consumismo ou pela tendência de reconhecimento e políticas por direitos específicos de sujeitos em subalternidades. De acordo com outro marxista, Goran Therbon (14), a identidade das esquerdas requer dinâmica movimentista e classista.

Como bem nos adverte Engels, os conceitos são históricos e como tal ganham sentido em sua interação com tempos concretos. Por outro lado, em metodologia se reconhece que o que modela um conceito é sua relação com um quadro teórico, ou seja, não dá para impor sentidos fixos a um termo, como identidade, sem discutir suas possíveis apreensões cognitivas e seus projetos políticos.
Ainda que recorrendo a simplificações no resgate de um construto complexo que, de fato, em diferentes disciplinas, tempos, perspectivas e projetos políticos se metamorfoseiam, nesta peça, a intenção que não necessariamente se realizou em gesto seria:  

1. Indicar que de fato o conceito de identidade é central, em especial, hoje, para correntes teórico-políticas à esquerda, críticas ao marxismo, como a democracia radical de Laclau e Mouffe; a pós-estruturalista e a pós-moderna, ou seja, que não relacionam emancipação a um norte socialista. Mas não necessariamente os estudos culturais se afastam do marxismo; ao contrário, sua relação com o marxismo enriquece ambos os trabalhos. Aeronowitz, Stuart Hall, Frédéric Jameson e Silvia Federici, entre outros, bem ilustram tal interação. Não há restrições por direitos autorais que limitem o uso de tal debate conceitual a uma corrente política, ao contrário, o desafio marxista é a disputa epistemológica de um conceito caro para melhor compreender o quadro político ideológico atual.

2. Estimular estudos, evitando usos e abusos do conceito de identidade por diferentes autores e filiações políticas e equívocos entre o que seriam políticas de identidade e identidades histórico-coletivas na política. Se a primeira perspectiva se afasta dos conflitos de classe, da crítica ao capitalismo para considerar em modelação culturalista direitos de identidades por raça, gênero e sexualidade, tendendo a individualismos, por exemplo, cabe ao debate sobre identidades histórico-coletivas na política em perspectiva crítica investir na defesa de tais identidades como identidades históricas; ou seja, não necessariamente somente restrita a inscrições individuais ou grupais. Defesa, quer por orientação humanista do marxismo, quer pela relação entre teoria e prática, também tão importante no marxismo. 

Alinho-me à orientação das camaradas Magdalena Guasco Peixoto, Loreta Valadares e Manuela D’Ávila. 

Loreta Valadares em seus últimos artigos frisava a importância de mais discutir raça no entrelace entre feminismo e marxismo, e em vários trabalhos criticou a rotulação do marxismo de economicismo por algumas correntes feministas (15).

Manuela D’Ávila ampliou a agenda de sua campanha, orientando-se por defesa de direitos de vários grupos na subalternidade. Em entrevista ao Sul 21, reproduzida no site Vermelho, em 30 de janeiro de 2019, ela critica os setores da esquerda que passaram a tratar de modo pejorativo o que denominam de “esquerda identitária”, aquela que engloba as lutas feministas, LGBTQ+, e de outros setores sociais. Segundo Manuela D’ Ávila:

Acho essa crítica um absurdo. Não existe projeto de desenvolvimento no Brasil que não seja focado no combate à desigualdade. E a desigualdade no Brasil é estruturada a partir de gênero e raça. É óbvio que a questão de classe é central. Mas por que uma mulher trabalhadora, igual a um homem trabalhador, recebe 20% a menos? Por que uma mulher negra trabalhadora recebe em torno de 57% a menos de salário? Alguém de esquerda querer discutir desigualdade no Brasil sem discutir gênero e raça, sinceramente… Vai fazer outra coisa da vida.

Em outra parte da mesma entrevista Manuela D’Ávila declara:

Precisamos também compreender qual a dimensão do diálogo com as mulheres, com os trabalhadores negros, e os trabalhadores negros sobre um projeto de país. É óbvio que essas pautas estão relacionadas ao mundo do trabalho [...]. O tema da segurança, por exemplo, é igual para toda a sociedade? Não. Não é igual para mulheres e homens negros. O projeto de país que queremos construir deve dialogar com essa questão de gênero e raça.

Há potencialidade no conceito de identidade para estratégias políticas, se conjugado a análises baseadas no materialismo histórico e na dialética. Mas tal exercício epistemológico pede para mais complicarmos e darmos chão ao marxismo hoje quanto ao que se entende, insisto, por lutas de classes, relação entre macro e micropolíticas, entre o subjetivo e o objetivo e a importância da reprodução ideológica. Assim como da consideração da reprodução humana para a formação do capitalismo, tendo o corpo como território de vivências de coletividades em processos estruturantes de dominações como o capitalismo, o patriarcado e o colonialismo.

Mary Garcia Castro  é Ph.D. em Sociologia; professora colaboradora no Programa de Pós-Graduação em Relações Étnicas na Contemporaneidade, UESB/Campus de Jequié (Bolsa CAPES); pesquisadora na FLACSO-Brasil; membro do PCdoB-Bahia (Fundação Maurício Grabois).

 

Notas

(1) KANTORSKI, Leonardo Prado; FABRES, Ricardo Rojas; GARCIA, Bruno de Souza. A crítica marxista ao conceito de identidade perante a concepção pós-moderna. In: , consultado em 18 de janeiro de 2019. 
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(2) BAUMAN, Zygmunt. Identidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.  
(3) In: CASTRO, Mary Garcia. Identidades, Alteridades, Latinidades. CADERNO CRH, n. 32, jan./jun. 2000.
(4) EAGLETON, Terry. The Ideology of Aesthetic. Blackwell: Oxford, 1990.
(5) RUY, José Carlos. Biografia da Nação. História e Luta de Classe. São Paulo: Anita Garibaldi, 2018, p. 7.
(6) ROLNIK, Suely. Esferas da Insurreição. Notas para uma vida não cafetinada. São Paulo: N-1 Edições, 2018.
(7) In: CASTRO, Mary Garcia. Identidades, Alteridades, Latinidades. CADERNO CRH, n. 32, jan./jun. 2000.
(8) GUASCO PEIXOTO. Madalena. A Condição Política na Pós-modernidade. A questão da democracia. São Paulo: EDUC/FAPESP, 1998.
(9) MORENA PINTO, Márcio. A Questão Judaica e a crítica de Marx à ideologia dos direitos do homem e do cidadão. Controvérsia, vol. 2, n.1, jan./jun. 2006, p. 10-16.
(10) LOSURDO, Domenico. A luta de classes. Uma história política e filosófica. São Paulo: Boitempo, 2015.
(11) SOUZA, Jessé. A Elite do Atraso. Rio de Janeiro: ed LeYa, 2017.
(12) FEDERICI, Silvia. Calibã e a Bruxa. Mulheres, Corpo e Acumulação Primitiva.  São Paulo: Elefante, 2017.
(13) GUTIERREZ, Andriei. Sobre o conceito de classe social na problemática de Nicos Poulantzas: uma releitura de Poder político e classes sociais. In: . 
(14) THERBORN, Goran. Do marxismo ao pós-marxismo? São Paulo: Boitempo, 2012.
(15) Loreta Valadares observa: “E nada melhor do que Engels para responder à questão [a crítica de economicista], o que fez em 1890, em carta a Bloch, em longo e preciso esclarecimento: “(...) segundo a concepção materialista da história, o fator que em última instância, determina a história é a produção e a reprodução da vida real. Nem Marx nem eu afirmamos, uma vez sequer, algo mais que isso. Se alguém o modifica, afirmando que o fato econômico é o único fato determinante, converte aquela tese numa frase vazia, abstrata e absurda. A situação econômica é a base, mas os diferentes fatores da superestrutura que se levanta sobre ela – as formas políticas da luta de classes e seus resultados, as constituições que, uma vez vencida uma batalha, a classe triunfante redige, etc., as formas jurídicas e inclusive os reflexos de todas essas lutas reais no cérebro dos que nelas participam, as teorias políticas, jurídicas, filosóficas, as ideias religiosas e o desenvolvimento ulterior que as leva a converter-se num sistema de dogmas – também exercem sua influência sobre o curso das lutas históricas e, em muitos casos, determinam sua forma, como fator predominante” (grifos de Engels,). VALADARES, Loreta. A “Controvérsia” Feminismo X Marxismo. Princípios, n. 18. São Paulo: Anita Garibaldi, junho/julho/agosto, 1990, p. 44 (Eu destaquei).

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