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Edição 157 > Contribuição da Fundação João Magabeira - As ameaças à democracia no governo atual – e por que precisamos defendê-la
Contribuição da Fundação João Magabeira - As ameaças à democracia no governo atual – e por que precisamos defendê-la
“É preciso estar atento e forte. Não temos tempo de temer a morte.” [Caetano Veloso e Gilberto Gil. Divino Maravilhoso.1968]

A campanha presidencial de 2018 representou o fim de um ciclo de consolidação e expansão dos direitos e dos anseios democráticos defendidos na Constituição Federal de 1988. Se, com a assinatura da Carta, consolidamos o papel do Estado na defesa e garantia de direitos sociais, bem como do funcionamento das instituições públicas em prol do Estado democrático de Direito, a eleição de Jair Bolsonaro, do Partido Social Liberal (PSL), desde sua campanha, se apresenta em polo inverso: prega-se a redução do papel do Estado, a flexibilização dos direitos trabalhistas, o corte de programas sociais, a intervenção da Igreja e Estado nos ambientes escolares, numa tentativa de barrar “doutrinações ideológicas” ligadas a um suposto “marxismo”, oposição aos direitos humanos, além de apologias claras à tortura, ditadura, preconceito e disseminação de cultura de ódio às minorias sociais e aos opositores de sua agenda de governo. Todo este caldo foi reproduzido ostensivamente por meio da proliferação de informações e notícias falsas em redes sociais.
Apesar de representar um imenso retrocesso às garantias democráticas que evoluíram de forma tão conturbada na história da política brasileira, este foi o projeto político escolhido nas urnas. Dessa forma, é preciso mapear os desafios que o campo de oposição terá pela frente, nos próximos quatro anos, e reafirmar as posições de defesa da democracia, da justiça social e dos direitos humanos pelo campo progressista brasileiro. Os partidos políticos e fundações partidárias têm gigantes desafios: para além de liderarem a agenda de combate aos retrocessos anunciados, é fundamental a discussão sobre a reconstrução de seu papel como agregador de preferências e ideologias presentes na sociedade. A crise de representação política, um dos fatores chaves da eleição de Bolsonaro, que se colocou como candidato antissistema, atinge todos os espectros políticos, e deve levar a um profundo debate sobre as estruturas de representação social e da própria democracia em que vivemos.
Contudo, mais que o debate acerca do que significou a eleição de Bolsonaro em termos de crise de representação política, é indispensável construir um discurso de defesa da democracia. O objetivo deste documento é identificar as ameaças à democracia no governo Bolsonaro, apresentar a defesa da democracia enquanto regime de governo, e traçar linhas possíveis de atuação da oposição, neste cenário.
A democracia é o cerne do sistema político em que o ser humano é defendido e acolhido em todas as suas manifestações: sociais, sexuais, religiosas, culturais. É por meio da criação de um ambiente de tolerância com as diferenças, com respeito às diferentes manifestações de cada cidadão, que conseguimos progredir enquanto sociedade. Nos unirmos em sociedade não significa oprimir os pensamentos distintos ao dos governantes, mas construir pontes de diálogo entre os diferentes. É somente por meio da democracia que se garante o direito à manifestação e a alternância de governantes, seguindo as regras e ritos instituídos na Constituição Federal. Não significa “ganhar no grito”, mas respeitar as regras do jogo, em um ambiente claro e seguro para todos os participantes.
A democracia, em nosso país, é bastante recente. Jair Bolsonaro é somente o quinto presidente eleito por voto popular após a redemocratização do Estado brasileiro. A atual geração é a primeira que nasceu, cresceu e vive em um regime democrático. Apesar da possibilidade de votar e ser votado e de termos eleições recorrentes desde então, pode-se dizer que a nossa democracia, além de recente, é bastante frágil. Por exemplo, é bastante difícil obter informações claras e precisas sobre todos os candidatos, seus feitos, como governaram ou quais são seus históricos. Essa assimetria de informação extrema sobre as ações de governo e governantes é prejudicial ao exercício da democracia, pois não permite que a decisão do voto seja tomada de maneira totalmente informada. Além disso, os custos de concorrer a um cargo eletivo são altos, o que impede que a maior parte das pessoas possam se candidatar, ainda que tenham esse anseio. As práticas de acompanhamento de mandatos são poucas, no sentido de cobrar dos eleitos que exerçam seus programas de governo, principalmente no Legislativo. Nosso sistema político, extremamente complexo, também dificulta o entendimento de seu funcionamento pela maior parte da população. Ou seja, temos uma situação de regularidade democrática institucional, mas a democracia ainda não se encontra enraizada na sociedade.
Podemos afirmar que o ambiente de segurança democrática, ou seja, de garantia que os ritos de troca de governantes e de obediência aos processos legais conhecidos por todos, foi posto a prova durante o impeachment da presidente Dilma. A intensa discussão em torno da legalidade dos procedimentos quando contrárias ao impeachment, decorrentes de um processo iniciado com as manifestações de junho de 2013, acentuaram e aceleraram a crise de representação política e de descontentamento com nosso regime democrático. Denúncias de corrupção de políticos e ocupantes de cargos públicos e setores empresariais se tornam cada vez mais presentes nos noticiários, fones de ouvido, nos sites de notícias, aumentando a sensação de que algo estava muito errado.
A candidatura de Jair Bolsonaro emerge neste cenário de descontentamento geral com a política e as instituições. Um de seus principais bordões, “tem que mudar tudo isso que está aí”, encontrou ouvidos atentos para o candidato que se colocou, em todos os momentos, como diferente da casta política que esteve no poder na última década e meia, em especial, nos governos do Partido dos Trabalhadores (PT).
“Tudo isso que está aí”, como demonstram sua campanha e suas ações como presidente, até o momento, incluem a negação da demarcação de terras indígenas e reconhecimento de áreas quilombolas, da reforma agrária, dos direitos humanos, das políticas de segurança alimentar, da defesa do Sistema Único de Saúde – SUS e da educação pública de qualidade, elementos fundantes do pacto social expresso na Constituição de 1988, partes integrantes do nosso Estado democrático de Direito. Até mesmo o combate à corrupção, uma de suas principais bandeiras de campanha, já dá sinais de estar longe de ser uma prioridade fática. A nomeação de Onyx Lorenzoni para Ministro da Casa Civil, que admitiu publicamente receber recursos de “Caixa 2” nas eleições de 2014, é só um dos exemplos da incompatibilidade entre o discurso de reforma ética da campanha e as ações do novo presidente. Em menos de 20 dias de governo, uma série de divergências entre Ministérios e Presidência, mudanças de posições em temas polêmicos e denúncias de corrupção envolvendo nada menos que seu filho, o senador eleito pelo Rio de Janeiro Flávio Bolsonaro, mostram que a fachada de “salvador de Pátria” do Presidente não se sustentará facilmente.
Dois outros pontos são preocupantes na garantia da democracia nos próximos quatro anos. Bolsonaro e seu vice sempre se mostraram simpatizantes às práticas ditatoriais, inclusive de utilização de tortura. Há 32 militares nomeados em cargos até o terceiro escalão nos Ministérios1, o que reforça a postura de comando e controle do presidente. Em que pese a relevância e importância das Forças Armadas na manutenção do Estado, em uma democracia, temas como Ciência e Tecnologia, Educação e Infraestrutura precisam de diálogo e construção com a sociedade civil. A lotação dos gabinetes com figuras do meio militar reforça o caráter autoritário de seu governo, e deixa a desejar na composição de equipes técnicas e com trânsito em outros setores sociais.
Além das aproximações com as Forças Armadas, Bolsonaro investiu na aproximação com setores religiosos, em especial o evangélico. A Ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, Damares Alves, pastora da Igreja Batista, já expressou opiniões polêmicas sobre o papel da Igreja na educação, orientação sexual e aborto. São pautas que avançaram de forma tímida nas últimas décadas no Brasil, e o que se vislumbra no momento é o total retrocesso de direitos reprodutivos, da população LGBT+, de grupos religiosos além dos evangélicos, como as religiões de matriz africana. São pontos conectados diretamente com a defesa da democracia, pois dizem respeito à tolerância com o próximo e ao direito de livre expressão.
O cenário é complexo tanto no campo institucional, com um governo autoritário e que irá retroceder em direitos e garantias básicas, quanto no social: a crise política não encontrará seu salvador no presidente eleito. O papel da organização partidária é fundamental para a composição dos interesses da sociedade, denúncia dos retrocessos que impactarão a vida de todos os brasileiros, e defesa do Estado democrático de Direito. É importante combater o discurso de criminalização da política, pois é somente através da mobilização, do diálogo e da compreensão que fortaleceremos a democracia brasileira.
A pauta apresentada pela candidatura oposta a vencedora, no segundo turno, representada pelo candidato Fernando Haddad (PT), congregou as forças democráticas do campo progressista. Foi neste sentido que o PSB se posicionou: na defesa de um projeto nacional de aprofundamento da democracia e do desenvolvimento humano. Neste contexto, é importante retomar os pontos elementares do PSB para seu projeto de país, orquestrando interesses econômicos e sociais. É preciso priorizar as políticas de segurança pública; retomar o papel de planejamento do Estado, de forma estratégica; investir massivamente em ciência, tecnologia e inovação; recuperar e ampliar a infraestrutura; defender as políticas sociais de estado; universalizar a educação básica; ampliar a economia criativa e fortalecer a pequena e microempresa; aproveitar o potencial energético do país; reorganizar o federalismo brasileiro; garantira pluralidade e diversidade de opiniões. Estas são agendas que permitem a emancipação da sociedade e o aprofundamento da democracia. É essencial que o campo progressista se organize e construa uma agenda propositiva ao Brasil, em contraponto à agenda de retrocessos oferecida pelo governo atual.
O papel da oposição, então, não é torcer pela inviabilização do governo ou querer que a população sofra com os ajustes e medidas tomados, e sim, garantir que haverá luta contra todo ataque aos direitos garantidos na Constituição, bem como os avanços no reconhecimento dos direitos humanos das últimas décadas. É preciso, como diz a canção de Caetano e Gil, estar atento e forte: atento para qualquer retrocesso que possa prejudicar a população brasileira, e forte para combatê-los.
O Observatório da Democracia, criação conjunta das Fundações Partidárias ligadas ao campo progressista2, será o centro de monitoramento, análise e defesa das políticas públicas e direitos sociais, frente ao cenário colocado pelo governo eleito. Esta articulação é fundamental para impedir retrocessos, além de colocar estes espaços na interlocução constante com a sociedade afetada por todas as medidas governamentais.
É preciso defender a democracia enquanto único instrumento capaz de emancipar a sociedade, de produzir coesão social e permitir o desenvolvimento humano em todos os sentidos. Pender ao autoritarismo, a tendência que se vislumbra no governo Bolsonaro, é eliminar as décadas de avanços na construção de uma sociedade mais justa. O caminho da democracia é árduo, pois exige debate, respeito ao diferente e tempo para que as ideias e decisões sejam maturadas. Pensar que é possível, por uma via “de acesso rápido”, acabar com os problemas de gestão pública e corrupção no país, por meio da repressão e do autoritarismo, é desistir da construção de um país para todos e todas, sem distinção.
NOTAS
1 “Divergências afetam frente de apoio a Bolsonaro”. 20.01.2019. Em: .
2 O grupo formado pelas fundações: João Mangabeira (PSB), Lauro Campos (PSOL), Leonel Brizola – Alberto Pasqualini (PDT), Maurício Grabois (PCdoB), da Ordem Social (PROS) e Perseu Abramo (PT).