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Edição 157 > Divisão das classes dominantes e alguns traços do governo Bolsonaro

Divisão das classes dominantes e alguns traços do governo Bolsonaro

Júlio Vellozo
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Aqui, como no resto do mundo, a vitória eleitoral de um candidato como Bolsonaro só pode ser explicada pela adesão de uma parcela importante das elites econômicas do país à via da violência, da destruição da democracia e da remoção das garantias individuais e constitucionais para a implementação de suas políticas coloniais e ultraliberais

Três crises 

Dez anos após a grande crise de 2008, o mundo vive uma situação de aporia, estupefação e paralisia. As ilusões alimentadas pela elites internacionais e pela intelectualidade liberal de que derrubada das primeiras experiências socialistas resultaria em uma época de expansão econômica e ausência de conflitos se demonstrou um grande equívoco. A atual situação internacional é marcada pela estagnação econômica crônica, pelo esvaziamento da democracia, por crises humanitárias que se entrecruzam, pela cessação de garantias individuais típicas do iluminismo, por uma crise social dramática que atinge mesmo os países do capitalismo central. 

Em diversos campos do conhecimento, multiplicam-se as interpretações de que estamos entrando em um novo tempo, uma nova era, e de que ela não parece nada animadora. Não à toa, como notou o filósofo Slavoj Žižek, a produção artística e a indústria cultural estão tomadas por narrativas apocalípticas1.   Há uma sensação generalizada de que estamos vivendo o fim dos tempos, ou ao menos o fim de um determinado tempo. Essa situação, captada pelo mundo das artes e do entretenimento, é produzida por uma série de crises, das quais três são centrais e nos interessam mais diretamente. 

A primeira crise: um mundo em transição 

A primeira delas é provocada pela grande transição mundial em curso em direção uma ordem multipolar, consubstanciada na ascensão da China e no declínio relativo dos Estados Unidos. Fazem parte desse mesmo processo o protagonismo da Rússia e a ascensão de outros países da Ásia, com destaque para a Índia. 
Alguns autores têm preferido caracterizar este processo como sendo a passagem a um predomínio do Oriente em relação ao Ocidente, ideia que se sustenta também no papel geopolítico da Turquia e do Irã e no robusto e continuado crescimento econômico verificado em economias do sudeste asiático, especialmente as agrupadas na ASEAN (Associação de Nações do Sudeste Asiático). 

A ascensão da China já é fato notório o suficiente para dispensar demonstrações. 

De modo que seria ocioso ao objetivo deste texto expor os números que revelam essa ultrapassagem, mas talvez seja suficiente olharmos para dois exemplos bastante simbólicos ocorridos recentemente. Nos últimos dias foi anunciado que os chineses iniciaram a exploração do outro lado da lua e lá fizeram brotar uma semente, um feito  amplamente noticiado, especialmente nos Estados Unidos. Isso acontece em meio ao enfraquecimento constante dos investimentos na Nasa e do abandono de uma série de programas tocados pela agência espacial norte-americana, em função de constante cortes orçamentários. O segundo exemplo é o esforço concentrado, levado à cabo especialmente pelos Estados Unidos e pela Alemanha, contra a gigante chinesa Huawei — a empresa que mais vende smartphones no mundo e que tem colocado a Apple em crescente dificuldade ao se posicionar de maneira eficaz para ocupar o primeiro lugar na venda de aparelhos voltados à tecnologia 5G, que deve mudar completamente o processo comunicacional. Esses dois acontecimentos, ambos repletos de um simbolismo que toca especialmente o público norte-americano, são refrações desse processo global em curso.  

Esta não é a primeira grande transição de predomínio em escala global. Friedrich List, o economista alemão pioneiro na teorização da necessidade da industrialização através da proteção estatal à indústria nascente, em seu livro clássico em defesa da unificação alfandegária alemã e da necessidade de políticas pró-ativas de expansão da atividade industrial, inventariou a sucessão de processos de predomínio e ultrapassagem;  o mesmo foi feito por Giovanni Arrighi em seu impressionante O longo século XX que caracteriza a sucessão de ciclos de dominância desde o século XV. O fato é que todas estas ultrapassagens se deram com muita luta e, linha geral, com conflitos militares de grande escala. Na história, nenhuma potência dominante aceitou a perda de sua hegemonia sem lutar de forma denodada para mantê-la. 

Estas transições também resultam em mutações complexas no campo que podemos denominar como sendo o da cultura, da ideologia ou da superestrutura — o uso do conceito vai do gosto do freguês. Nesses momentos de disputa acirrada, a tolerância, a alteridade e as predisposições à convivência com os diferentes costumam ser substituídas pela estigmatização, pelo enfrentamento, pela naturalização e até mesmo pelo culto à violência. Correndo o risco de algum anacronismo, é possível pensar em transições com essa característica desde a Antiguidade.  

Dessa maneira vivemos em um mundo muito perigoso, no qual a possibilidade de conflitos de larga escala deve ser analisada como algo concreto. 

A segunda crise

A segunda grande crise que vivemos é econômica. A verdade é que, depois de um período povoado de ilusões, vai se estabelecendo um consenso de que os remédios ministrados para vencer a grande implosão de 2008 não curaram o paciente, pelo contrário, colocaram a economia mundial em uma situação terrível, de difícil superação. Os trilhões empregados para o socorro dos bancos e das grandes empresas falidas ampliaram as dívidas dos países. Segundo o Banco Mundial, a dívida global acumulada atingiu 225% do PIB do planeta, número que tem contribuído para a grande incerteza em que nos encontramos.  O mundo vive sob um temor crescente de que uma grande recessão se inicie nos Estados Unidos no próximo período, com graves consequências para a economia mundial. Alguns bancos estimam que essa recessão se iniciará em 2020. Na Europa, as economias da Itália e da Alemanha também flertam com a recessão, apesar de inúmeros esforços para contê-la. A verdade é que os mecanismos tradicionalmente utilizados para estimular a retomada do crescimento econômico parecem ter perdido sua eficácia, ampliando em escala global o processo vivido há muitos anos pelo Japão, onde nenhuma medida contracíclica tem conseguido tirar o país da estagnação. Taxas de juros muito baixas já não conseguem incentivar a atividade econômica e, apesar de todos benefícios dados às finanças nas últimas décadas, têm levado importantes instituições bancárias a situações de grave dificuldade. A desindustrialização — provocada por mudanças tecnológicas e pela transferência de plantas produtivas que antes se encontravam nos Estados Unidos e na Europa para outras regiões, especialmente para a Ásia — gerou desemprego, destruição de cidades inteiras, liquidação de cadeias produtivas. Esse processo é acompanhado por uma queda continuada da renda média já que o emprego industrial tende a elevar a renda geral mesmo dos empregos não industriais, algo revertido em momentos de desindustrialização. 

O mundo vive um momento de expansão incrível da liquidez, dentre outras razões em função das respostas dadas à imensa crise de 2008. Essa massa de capital, no entanto, não passa pelo processo produtivo, apesar dos esforços já citados em manter os juros baixos. Estima-se que os juros de equilíbrio nos Estados Unidos, aqueles que nem aceleram e nem derrubam a inflação, são de 3%, mas hoje eles estão bem abaixo disso e um acerto de contas provocaria um agravamento grande da crise. 

Ao problema do enorme endividamento das famílias, das empresas e dos governos se combina de forma dramática o excesso de oferta. A ascensão da chamada “Ásia dinâmica”, China à frente, inunda permanentemente o mundo de produtos que estavam sendo consumidos com base no endividamento, que chegou em um patamar já insustentável. Só a China conta com mais de 100 milhões de trabalhadores produzindo bens manufaturados, parte deles absorvidos pelo seu imenso e crescente mercado interno, outra pelo ambiente próspero da própria Ásia dinâmica, o que torna o impacto do subconsumo do ocidente contornável para estes países do oriente. 

Esta situação de déficit crônico de demanda - o termo é do editorialista mais importante do Financial Times, Martin Wolf - tem levado o ocidente a uma gravíssima crise social, que atinge de forma pesada os países do capitalismo central. A pobreza em nações como a Alemanha, a Bélgica em sua área francófona, em cidades outrora muito ricas dos Estados Unidos, mostra que se trata de um fenômeno generalizado de empobrecimento, diferente em qualidade dos vividos em outros momentos de crise econômica análoga. 

A terceira grande crise 

A terceira grande crise é ainda embrionária, mas tem dimensões absolutamente catastróficas, mesmo segundo os analistas comprometidos com a atual ordem neoliberal. Trata-se da chamada Revolução 4.0, que promete mudar completamente o mundo do trabalho, com consequências sociais assustadoras e ainda  em grande parte  imprevistas. Combinadas, a inteligência artificial, a robótica, a internet das coisas, os veículos autônomos, a impressão em 3D, a nanotecnologia, a biotecnologia, a nova ciência dos materiais, o armazenamento de energia e a computação quântica devem mudar de maneira assombrosa boa parte das relações humanas. Dentre essas relações, o trabalho deve se transformar em algo bastante diferente daquilo que conhecemos hoje. 

O que já se projeta com clareza é que a Revolução 4.0 significará a destruição de milhões de postos de trabalho e o fim de centenas de profissões que determinaram bastante das feições do últimos dois séculos e que, em muitos sentidos, ensejaram a existência de instituições como os partidos políticos, os sindicatos, a imprensa. 

Esta destruição do trabalho provocada pelo neoliberalismo desde o início da década de 1980, catapultada a níveis inimagináveis pela Revolução 4.0, formará uma massa enorme de desesperados, gente que não lutará diariamente pela sobrevivência física em condições bastante degradantes. 

O McKinsey Global Institute, mais importante consultoria em assuntos econômicos e do trabalho no mundo, estima que quase metade dos empregos atuais são vulneráveis a serem substituídos por robôs e que dois terços das crianças que começam a escola hoje ou terão empregos que ainda não foram inventados ou não terão empregos. Engana-se quem pensa que essa vulnerabilidade incide apenas sobre os trabalhos de baixa qualificação: a perspectiva é que diversas profissões consideradas como qualificadas também sejam afetadas, como jornalismo, tradução e alguns campos da medicina. 

As consequências dessas transformações ainda não foram aquilatadas em sua dimensão pela esquerda. A verdade é que o mundo em que vivemos em suas dimensões sociais mais variadas foi criado em função de relações de trabalho e de classe que tendem a ser profundamente modificadas e, em certos aspectos, a desaparecer. O mundo da modernidade é marcado por uma sociabilidade calcada no interesse, que substituiu formas pré-capitalistas de agrupamento, que eram baseadas em parâmetros típicos da sociedade de ordens2. Há uma cultura política impulsionada em primeiro lugar pelos interesses da burguesia, quando classe ascendente e, mais tarde, ampliada pela ação de uma determinada classe trabalhadora, cujos poderes estavam baseadas na força oriunda do número, da concentração em grandes unidades produtivas, na existência de liberdades que vão sendo, paulatinamente cassadas, em tipos de associação que vão se demonstrando cada vez menos eficientes e atrativas. Em outras palavras, o mundo nascido com as duas grandes revoluções, a industrial e a francesa3, e sua cultura política, marcada pelas eleições, partidos políticos, sindicatos, impressos, demonstrações de rua, greves, parlamento, pode estar desaparecendo com o ocaso ou mutação da sociabilidade e polarização de classe que a criou. 

Já há quem considere também que a constante queda da fatia da renda nacional que vai para os salários declina de forma consistente nos Estados Unidos em função do avanço tecnológico. Porque empurra os trabalhadores para as áreas menos produtivas da economia, a automação também ajuda a explicar um dos paradoxos econômicos mais espinhosos: a despeito dos avanços na tecnologia da informação, e das grandes inovações na inteligência artificial e robótica, o crescimento geral da produtividade continua lento. Pesquisas recentes concluíram que o uso de robôs, ao reduzir a demanda por trabalhadores, joga os rendimentos dos trabalhadores para baixo, já que o valor dos salários se foma de acordo com a lei da oferta e da procura. 

Todo este processo deve provocar o crescimento em um ritmo inédito do número de pessoas descartáveis. Desde o final do século XVIII e início do XIX vivíamos uma situação na qual a massa trabalhadora era formada por duas camadas, de um lado os que trabalhavam e de outro um exército de reserva que cumpria o importante papel para o sistema de forçar para baixo o preço da mão de obra. Dados os processos descritos acima, a estas duas últimas camadas se soma outra, formada por uma massa enorme, que logo superará as outras duas, de excluídos crônicos, gente que viverá das migalhas do sistema e que lutará, , pela sua sobrevivência no nível mais fisiológico do termo, fora de todas as regras da sociabilidade típica da modernidade. 

O capitalismo lidou de forma relativamente bem sucedida com excluídos crônicos durante estes duzentos anos. No entanto, no tempo que está morrendo, esta massa de indesejáveis vivia longe dos grandes centros, seja porque estava em países distantes das áreas do capitalismo central, seja porque eram expulsos por mecanismos complexos de policiamento e gentrificação para periferias muito longínquas. O empobrecimento dos países do capitalismo central somado a nova escada de produção desses indesejáveis inviabiliza esta solução. As multidões de cronicamente excluídos estarão no mesmo espaço das duas outras camadas - gente que trabalha e exército de reserva - ocupando as grandes cidades. 

Talvez seja possível pensar, em nível ainda especulativo, que esta enorme massa se transforme na grande inimiga da elite, em função de sua força, dada pelo número e pela coragem que só contra a morte sempre dá. Não à toa crescem em todo mundo os esforços de uma nova governança, baseada em medidas que buscam descartar de forma massiva os indesejáveis. Dada a extensão da crise econômica e, especialmente, os efeitos que se aproximam em função da Revolução 4.0, não basta deixar que os pobres morram ao abandono em um processo demográfico natural, procedimento levado à cabo nesses últimos 200 anos. É necessário dar à morte as escalas prometeicas típicas do capitalismo, criando mecanismos eficientes e massivos de extermínio. 

Uma nova divisão da classe dominante 

Os setores dominantes estão, portanto, diante de três grandes crises: a ascensão da China e de outras potências do Oriente, que prepara sua ultrapassagem em relação aos Estados Unidos/Ocidente; uma crise econômica que tem se mostrado resistente aos mecanismos clássicos que o capitalismo desenvolveu para administrar suas crises e para a qual fica cada vez mais difícil encontrar uma alternativa dentro dos marcos do capitalismo contemporâneo; os impactos da Revolução 4.0 sobre o trabalho, processo  que tende a criar uma imensa e inédita massa de deserdados que pode colocar as próprias bases do sistema em risco. 

As classes dominantes do Ocidente se dividiram em como lidar com essa tripla crise4. De um lado, existem os que consideram que o melhor caminho é a manutenção do modelo político liberal-constitucional erigido durante o século XIX; de outro, há os que consideram que esse modelo caducou e que, para manter a reprodução ampliada do capital em sua atual fase, seria necessário ou desejável adotar um modelo que suprima os limites colocados por esse regime. 

Uma divisão análoga, ainda que não idêntica, aconteceu na década de 1930 diante do impasse de como lidar com a crise de 1929. Naquele momento, no entanto, havia uma terceira corrente, representada por setores da burguesia que procuraram uma alternativa econômica que não fosse liberal, buscando resolver a crise com uma combinação de esforço estatal pela retomada do desenvolvimento e forte preocupação em combater a miséria, gerar empregos e prover alguns direitos sociais. Essa corrente hoje é inexistente ou inexpressiva entre as classes dominantes. 

Voltemos aos dois paradigmas de dominação em choque nos dias de hoje. O primeiro modelo, que mantém a aposta na constituição e no liberalismo político, demonstrou-se absolutamente comprometido com neoliberalismo nas últimas décadas. Conduziu a destruição de direitos sociais, a precarização do trabalho, as privatizações, o desmonte de parte importante dos mecanismos de garantia do bem-estar social. Para viabilizar esse programa, este setor não vacilou em golpear fortemente a democracia, transferindo parte importante do poder decisório para as grandes corporações e para organismos internacionais como a União Europeia, o Banco Mundial e o FMI. Gente a soldo do mercado, absolutamente comprometida com os interesses da banca, ocupou os mais importantes postos de gestão da economia nos governos dirigidos por esses grupos políticos em todo o mundo. Esses postos, ocupados por personagens supostamente técnicos, “infensos às pressões da política”, foram blindados, recebendo em alguns lugares autonomia formal, em outros uma autonomia de fato para a gestão dos negócios públicos, com graves consequências para a democracia. Nos países em desenvolvimento, esse setor deixou de lado projetos de desenvolvimento nacional, de industrialização, de modernização, de combate às desigualdades e quaisquer posturas autônomas frente às potências mundiais o que, por si só, representa um ataque indireto à democracia. Mesmo forças políticas de esquerda, comprometidas com transformações, ainda que limitadas e parciais, aderiram a estes modelos, caso, por exemplo, do Partido dos Trabalhadores em sua experiência de treze anos à frente do poder no Brasil. 

Apesar disso tudo, esses setores liberais tem defendido a manutenção do velho modelo do liberalismo político construído no século XIX e estão em combate contra a ultradireita reacionária em várias partes do mundo. Trata-se de um setor que, em sua ampla maioria, continua sustentando o caminho liberal na economia, mas que não concorda com os rumos sustentados pela ultradireita no que respeita à política. Seu projeto é enfrentar a crise mantendo as eleições, o parlamento, a divisão de poderes, as garantias individuais, a liberdade de imprensa, os princípios basilares do penalismo iluminista, o direito de livre organização, manifestação e pensamento — ainda que todos esses pilares sejam relativizados quando entram em choque com os interesses do grande capital. Dito de outra maneira, apesar do conteúdo inevitavelmente antidemocrático do projeto neoliberal, esses setores defendem a manutenção das características fundamentais dos regimes constitucionais-liberais instaurados no período posterior à derrota da Revolução Francesa e alargados pelas lutas dos trabalhadores e trabalhadoras durante mais de um século. 

O segundo grupo, ultradireitista, considera que, para enfrentar essa tripla crise, é necessário abrir mão do liberalismo político e dos regimes constitucionais clássicos. Por trás de toda a inflamação retórica nacionalista, sua conclusão é a de que os regimes liberais geram instabilidade política, sendo obstáculos para a retomada do desenvolvimento, para a pilhagem mais eficaz das economias subordinadas, para a hiper-exploração do trabalho e para o cada vez mais necessário descarte em massa dos indesejáveis. 

Para além disso, na visão dessa ultradireita que talvez possa ser chamada de neofascista, a instabilidade oriunda do liberalismo político e do regime constitucional seria uma desvantagem competitiva em relação a regimes mais planificados e centralizados, como o da Ásia. Para conter o avanço chinês ou asiático seria preciso liquidar as garantias constitucionais e a democracia tal como a conhecemos e estabelecer um comando típico de uma época de exceção/guerra. 

Os grupos políticos ultradireitistas nos quais essa fração das classes dominantes passou a se apoiar estão por aí faz tempo, disputando eleições e vendo o seu espaço ser ampliado em função do desespero crescente das massas com o aprofundamento da crise social. Suas respostas fáceis, claras, ainda que absurdas, sempre baseadas em um discurso de ódio contra um inimigo ficcionalizado, tem demonstrado eficácia crescente desde o final da década de 1990. 

A novidade dos últimos anos é a adoção destes elementos ultradireitistas por grupos representativos e poderosos do grande capital. O grau de desenvolvimento da ultradireita em países como a Alemanha, Áustria, Itália, Hungria, Suécia, Estados Unidos e Brasil demonstram que já não se trata de livre atiradores de direita manejando um discurso eleitoral eficiente: parte importante dos grandes agentes da burguesia internacional aderiu ao caminho do estabelecimento de uma ditadura terrorista do capital financeiro. 

Apesar de terem como objetivo a destruição do regime liberal-constitucional, seus líderes passaram pelo crivo das urnas e mantém índices de apoio relevantes. Além disso, sustentam grandes massas de apoiadores ativos e mobilizados permanentemente, uma espécie de vanguarda ampliada em ação diuturna. Isso é feito através da defesa de ideias xenófobas, conservadores e supremacistas cujo repertório é adaptado às características concretas do país em questão, colando-se a preconceitos preexistentes em cada local e potencializando-os. O sentimento religioso também é manipulado, distorcido e mobilizado para a defesa de suas posições. 

De todos esses sentimentos mobilizados pelos grupos de ultradireita, um é particularmente decisivo em todas essas experiências: a questão da segurança. É como se essas forças tivessem conseguido erigir um novo paradigma hobbesiano, com uma massa imensa de pessoas se dispondo a abrir mão de sua liberdade, da democracia, até mesmo de algumas de suas vantagens materiais, em nome de um Estado capaz de combater um inimigo ficcionalizado. Este, em geral, é um tipo múltiplo, prismático, indefinido, mesmo dentro de cada país: é o cigano, o ladrão, o comunista, o imigrante, o negro, o estrangeiro, o mendigo, a mulher, o gay, o esquerdista, aquele que de algum modo, sempre fantasioso, irá ameaçar seu modo de vida, suas tradições, sua religião5. 

Este ódio difuso por um inimigo prismático, ou seja, que pode adquirir variadas formas, tem como um de seus alvos prediletos os mais pobres. O sentimento humanitário, a empatia, a capacidade de se colocar no lugar do outro, tem se perdido de forma muito acelerada. A radicalização do sentimento de alteridade, a ideia de que existem na humanidade divisões que naturalizam o extermínio do outro, tem se ampliado de forma bastante útil para esta necessidade estrutural do grande capital. A historiadora norte-americana Lynn Hunt, em seu livro O nascimento dos Direitos Humanos, demonstrou que a empatia é um sentimento histórico, nasceu justamente em meio às grandes revoluções que descrevemos e que deram a origem ao mundo no qual vivemos. O desaparecimento deste mundo talvez esteja levando embora este sentimento6. 

Esta fração ultradireitista das classes dominantes tem conseguido mobilizar aquilo que Luigi Ferrajoli denominou de poderes selvagens: uma massa da população que está disposta a, em nome da segurança, do combate a esse inimigo ficcionalizado e prismático, destruir as garantias individuais, os direitos estabelecidos por constituições e códigos, todos os mecanismos contramajoritários estabelecidos7. Para isso, têm contado com o apoio de amplos setores do judiciário que estão dispostos a usar o processo penal como instrumento persecutório de uma caçada que é cirúrgica a inimigos políticos dessas alterações e massiva e indiscriminada contra os mais pobres. 

Todo esse processo sustenta, direta ou indiretamente, de forma consciente ou não, uma das necessidades fundamentais do capitalismo atual e do que vem com a destruição do trabalho produzida pela Revolução 4.0: o descarte em massa dos indesejáveis. 

O governo Bolsonaro 

O governo Bolsonaro é a expressão brasileira desse fenômeno. Aqui, como no resto do mundo, a vitória eleitoral da candidatura do PSL só pode ser explicada pela adesão de uma parcela importante das elites econômicas do país à via da violência, da destruição da democracia e da remoção das garantias individuais e constitucionais para a implementação de suas políticas coloniais e ultraliberais. 

Considerada essa origem, é preciso compreender as especificidades da realidade brasileira, ou seja, os sentidos próprios que este processo adquire no Brasil. Uma das chaves fundamentais para a compreensão do que ocorre em nosso país é a justa medida em perceber o fenômeno como parte do processo global de crise e gestão da crise do capitalismo sem deixar de enxergá-lo em sua dimensão de resultante da dinâmica da história brasileira. 
O signo mais importante que caracteriza o governo Bolsonaro é sua marca antidemocrática, que se manifesta em múltiplas dimensões. Não à toa, os setores do judiciário que já se ocupavam de uma atividade persecutória realizada para além dos limites do Estado democrático de direito foram ao centro do poder com sua eleição. Salvo exista uma contra-tendência, representada por uma ampla frente democrática capaz agrupar setores muito diversos da sociedade e servir de elemento de contenção, viveremos um recuo enorme nesse quesito. A cultura de violência, o ódio aos adversários, o revisionismo sobre o papel da ditadura militar, a intolerância com qualquer tipo de divergência, o sufocamento das universidades e escolas, obscurantismos anti-científicos de toda a espécie, perseguições às minorias, desconsideração das garantias penais mínimas, usos do direito penal para a perseguição aos movimentos sociais e às lideranças de oposição, todos processos que vinham, de um modo ou de outro, fazendo parte da cena política desde antes da ruptura democrática de 2016, tendem a ser muito ampliados. 

O programa de Bolsonaro é marcado, em segundo lugar, pela demolição de conquistas civilizatórias ligadas à construção da nacionalidade que vêm desde a década de 1930. A entrega completa do patrimônio nacional, a privatização desbragada, o leilão à preço vil de todas as riquezas nacionais mostram que se trata de um governo à serviço dos interesses estrangeiros. O fato do governo federal se apresentar sob o manto do nacionalismo é uma das mais impressionantes demonstrações das possibilidades que a revolução comunicacional em curso criou de remover as barreiras entre realidade e ficção.  

Os direitos sociais também se encontram sob ameaça inédita em extensão.  A ampliação da reforma trabalhista com remoção dos direitos que restam, o desmonte dos serviços públicos, a cobrança de mensalidade nas universidades, o fim das vinculações orçamentárias constitucionais que, combinadas com o teto de gastos, significam o desmonte do frágil aparato de direitos sociais que o país mantém, uma política de segurança pública oficial e velada que levará ao extermínio e ao encarceramento em massa dos indesejáveis, a destruição da previdência pública, são todas pautas imediatas, apresentadas a um só tempo pelo governo. 

Diante de um programa deste tipo e da vinculação bovina aos interesses dos Estados Unidos, podemos dizer que estamos sob um verdadeiro governo de ocupação. Ele assemelha-se às administrações colaboracionistas coloniais, cuja atividade fundamental era gerir a extração das riquezas que interessavam à metrópole de maneira eficiente. A semelhança não é mera coincidência: um dos mecanismos mais importantes para a gestão da atual crise é a transformação das economias dos países em desenvolvimento em repasto de uma nova acumulação primitiva de capital. 

Ele também opera para transformar o Brasil em uma base da luta para conter ou adiar o processo de transição mundial ora em curso. O oferecimento de uma base militar para os Estados Unidos, as provocações belicosas contra a Venezuela e o início do incentivo estatal a uma cultura sinofóbica não são apenas expressões do núcleo folclórico do governo, ainda que se manifestem de forma atabalhoada. Essas são atitudes dotadas dessa lógica entreguista. Diante do estado de crescente conflituosidade que o mundo vive, o governo Bolsonaro coloca o Brasil na rota das possíveis colisões bélicas que se avizinham. 

Mesmo sendo dotado de um projeto claro, o governo Bolsonaro começou muito mal. A imperícia dos escolhidos do presidente para administrarem a máquina pública, a inaplicabilidade à gestão de Estado de parte importante das ideias do grupo e, especialmente, os escândalos envolvendo a família Bolsonaro, criaram um cenário de decepção para parte de seus apoiadores. Tem especial importância a revelação de indícios de ligação do grupo mais próximo do presidente com as milícias do Rio de Janeiro, linha de investigação que ainda está em seus primeiros passos. A Rede Globo, ameaçada pelos compromissos do governo com os detentores da Rede Record, tem sido ponta de lança do desmascaramento dessas vinculações. 

Há divisões diferentes, mas é possível olhar o governo como sendo composto por sete setores: militares, lavajatistas, políticos, evangélicos, mercado, e olavistas - os nomes são auto-explicativos. Em um mapa muito precário e impreciso, podemos dizer que as áreas mais relevantes do governo ficaram divididas da seguinte forma: o Ministério da Economia, a presidência dos bancos públicos, o Banco Central e metade do Ministério de Minas e Energia ficaram nas mãos do grupo do mercado. Os militares, que detém, entre todos os grupos, a maior participação no governo, dominam a Defesa, toda a área de infra-estrutura, a Ciência e Tecnologia e dividem com os olavistas o Ministério da Educação e com o mercado o Ministério das Minas e Energia. Os olavistas, por sua vez, controlam todos os principais cargos das Relações Exteriores e têm postos relevantes na Educação, incluindo o ministro. Os políticos – ressalte-se a precariedade da caracterização desse grupo, considerando-se a miríade de interesses diversos — controlam o Ministério da Saúde, a Anvisa, a Casa Civil e a Secretaria Geral da Presidência. Os evangélicos ocupam parte do ministério da Família, que dividem com os “políticos”. 

Dessa composição, saltam aos olhos dois dados. O primeiro é a sub-representação de membros do parlamento. Para ampliar a questão, o líder do governo é alguém recém-eleito, sem qualquer trânsito na casa. Há, ainda, uma sub-representação do grupo evangélico, base importante para a eleição de Bolsonaro e que reclamou explicitamente de seu escanteamento durante a montagem do governo, o que pode indicar uma possível dificuldade da gestão em aprovar seu programa. O segundo dado é a forte presença de militares na máquina governamental. O mapa precário que apresentamos acima mostra um grande número deles e trata apenas de alguns do cargos mais importantes. Levantamento realizado pela Folha de S.Paulo mostra que já são 45 militares espalhados por 21 áreas do governo. É difícil tirar todas as consequências desse processo. Por um lado, é possível pensar que o setor impeça um processo muito radical de entrega do patrimônio nacional, se não em áreas decisivas para o desenvolvimento econômico, ao menos em áreas estratégicas para a defesa. Por outro — e isso nos parece mais grave e preocupante — a grande presença militar pode ampliar as tentações autoritárias e o sentimento refratário à alternância de poder. 

Parecem existir quatro linhas de tensão fundamentais em relação ao governo, que podem ser aproveitadas na luta política pela democracia e em defesa da nação. A primeira delas é a que se dá entre governo e oposição progressista. Estamos nominando como oposição progressista os setores antípodas do governo tanto na questão democrática quanto na política econômica e social. Isso inclui partidos, movimentos sociais, intelectualidade, parcela da igreja católica, etc. A segunda linha de tensão é a que se dá entre o governo e setores que, apesar de serem liberais em matéria econômica, defendem a manutenção das garantias constitucionais e do regime democrático. A terceira linha de tensão é a que se dá entre o governo e a opinião pública internacional, aí incluídos tanto organismos da sociedade civil e indivíduos comprometidos com uma pauta progressista quanto governos que, por interesses diversos, possam contribuir na defesa das garantias individuais contra as perseguições vindouras. A quarta linha de tensão é a que se dá no interior do próprio governo, dentro do complexo condomínio que detém as rédeas do país. Nesse caso, tanto interesses quanto ideias divergentes podem e devem ser exploradas pelas oposições. Em um momento complexo como o que vivemos, produto de uma série de derrotas consecutivas e de grande monta, qualquer divisão no campo adversário é um recurso decisivo para conter a violência do governo de ocupação e para preparar o ofensiva democrática futura. 

Júlio Vellozo é é historiador, professor universitário e Secretário Geral da Fundação Maurício Grabois

Este texto é a versão ampliada da contribuição apresentada pela Fundação Maurício Grabois ao Seminário das Fundações realizado em 31 de janeiro de 2019

Notas

1- Zizek, Slavoj. Vivendo no fim dos tempos. São Paulo: Boitempo, 2012. 
2- WEBER, Max. Economia e Sociedade. Vol. 1. Brasilia: Editora da UNB, 1998. 
3- HOBSBAWM, Eric. A Era das Revoluções. trad. Maria Teresa Lopes Teixeira e Marcos Penchel. Rio de Janeiro: Paz e terra, 1977. 
4- Importante notar que essas não são a únicas crises que a humanidade atravessa. Atravessamos, por exemplo, uma enorme crise ecológica, que ameaça a continuidade da raça humana. Tratamos apenas das crises que ensejam a divisão da classe dominante em escala internacional, ou seja, os assuntos que para essas elites são de grande urgência e pedem uma tática de enfrentamento. 
5- WACQUANT, Loic. Punir os pobres. a nova gestão da miséria nos Estados Unidos. A onda punitiva. Trad. Sérgio Lamarão. São Paulo: Editora Revan, 2007. 
6- HUNT, Lynn. O nascimento dos direitos humanos. Uma história. Tradução: Rosaura Eichemberg. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
7- FERRAJOLI, Luigi. Poderes Selvagens. A crise da democracia italiana. Trad. Alexandre Araújo de Sousa. São Paulo: Saraiva, 2014. 

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