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Análise de Conjuntura

Edição 157 > O retorno do reprimido

O retorno do reprimido

Wolfgang Streeck
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A questão em jogo não é outra senão a relação entre o capitalismo global e o sistema estatal. Nada polariza tanto as sociedades capitalistas de hoje do que os debates que questionam se políticas nacionais seriam ou não necessárias e qual seria sua legitimidade. Nesses debates, interesses e identidades se misturam, causando um nível de hostilidade mútua que não víamos desde o fim da Guerra Fria

Ou o neoliberalismo veio com a globalização ou a globalização veio com o neoliberalismo: assim começou a Grande Regressão. Na década de 1970, o capital das nações industriais reconstruídas começou a se emancipar da servidão nacional ao qual havia sido submetido nas décadas após 19452. Chegava a hora de abandonar aqueles mercados de trabalho tão rígidos, aquela produtividade estagnada, os lucros em queda e as exigências cada vez mais ambiciosas de sindicatos que operavam sob um capitalismo maduro e administrado pelo Estado. O caminho para o futuro, para uma nova expansão — desejo permanente do capital — nos conduzia ao mundo ainda deliciosamente desregulado de uma economia global sem fronteiras na qual os mercados já não seriam trancafiados em Estados-nação, mas os Estados-nação é que seriam restringidos pelos mercados. 

A reviravolta neoliberal foi presidida por uma nova divindade conhecida como Tina — sigla inglesa para “não há alternativa”. A longa lista de seus sumos sacerdotes e sacerdotisas se estende de Margaret Thatcher passando por Tony Blair até chegar a Angela Merkel. Qualquer um que desejasse servir a Tina, integrando o coro de economistas de todo o mundo, tinha que reconhecer a fuga do capital de suas jaulas nacionais como algo benéfico e inevitável e se comprometer a eliminar todos os obstáculos de seu caminho. Práticas pagãs como o controle sobre o movimento do capital e auxílios estatais deveriam ser rastreadas e erradicadas; ninguém devia ter permissão para escapar da “competição global” e voltar para o quentinho das proteções nacionais de qualquer espécie. Acordos de livre comércio deveriam abrir os mercados e protegê-los da interferência estatal, a governança global substituiria governos nacionais. Em vez de nos defendermos da mercantilização, deveríamos fomentar a mercantilização, e o Estado de bem-estar deveria dar lugar ao Estado concorrencial dessa nova era de racionalização capitalista3.

No final da década de 1980, o neoliberalismo havia se tornado o pensamento único da centro-esquerda e da centro-direita. As velhas controvérsias políticas eram consideradas obsoletas. A atenção agora se concentrava nas “reformas” necessárias para aumentar a “competitividade” nacional, e essas reformas eram as mesmas em toda parte. Elas incluíam flexibilizações do mercado de trabalho, um aprimoramento dos “incentivos” (positivo na extremidade superior da pirâmide de renda, negativo na inferior), privatização e mercantilização como armas na competição por posições e redução de custo e como um teste de resistência moral. O conflito distributivo foi substituído por uma busca tecnocrática pelo que seria economicamente necessário e a única alternativa possível; instituições, políticas e modos de vida deveriam ser adaptados para essa finalidade. Tudo isso foi acompanhado por um desgaste dos partidos políticos — seu recuo para dentro da máquina estatal na forma de “partidos de cartel”4 —, com uma queda no número de filiados e da participação eleitoral desproporcionalmente acentuada na camada inferior da estratificação social. A partir da década de 1980, esse processo foi acompanhado por um colapso da organização sindical e por um declínio acentuado das greves em todo o mundo. Em outras palavras, o que houve foi uma desmobilização ampla e generalizada de todo o aparato de participação democrática e de redistribuição de renda do pós-guerra. Tudo isso ocorreu lentamente, mas em um ritmo crescente e com cada vez mais gente acreditando que esse era o estado normal das coisas.  

Esse processo de regressão política e institucional trazido pela revolução neoliberal inaugurou uma nova era de política pós-factual5, que se tornou necessária diante do fato de que a globalização neoliberal nunca esteve perto de entregar a prosperidade generalizada que prometera6. A inflação da década de 1970 e o desemprego que acompanhou sua dura eliminação foram seguidos por um aumento da dívida do governo nos anos 1980 e pela restauração das contas públicas por meio de “reformas” no Estado de bem-estar social nos anos 1990. Como forma de compensação, o acesso ao crédito foi expandido e as famílias tiveram a chance de se endividarem. Simultaneamente, as taxas de crescimento diminuíram apesar (ou justamente porque) a desigualdade e a dívida agregada continuaram aumentando. Em vez de um efeito cascata em que a riqueza do topo fatalmente escorreria para a base, o que se instalou foi um tipo mais vulgar de fluxo: o aumento da desigualdade de renda entre indivíduos, famílias, regiões e, no caso da zona do euro, nações. A tão prometida economia de serviços e a sociedade baseada no conhecimento acabaram se mostrando menores do que a sociedade industrial que era rapidamente varrida do mapa, gerando um aumento constante do número de pessoas que simplesmente já não eram necessárias. Essa população excedente criada por um capitalismo de bicos agora ressuscitado observava impotente e incrédula a transformação do Estado fiscal em um Estado do endividamento e, finalmente, em um Estado de consolidação, assim como as crises financeiras e programas de resgate que tornavam suas vidas cada vez piores7. Diante desse quadro, a “governança global” não ajudou em nada, tampouco o Estado democrático nacional, agora apartado da economia capitalista em prol da globalização. Para garantir que nada disso ameaçaria o Admirável Mundo Novo do capitalismo neoliberal, foi necessário desenvolver métodos sofisticados para assegurar o consentimento popular e desorganizar possíveis resistentes. No começo, as técnicas desenvolvidas para isso de fato mostraram uma eficácia impressionante.

A era “pós-factual”

Mentiras, até mesmo mentiras descaradas, sempre existiram na política. Basta pensar no PowerPoint que Colin Powell apresentou ao Conselho de Segurança das Nações Unidas, cheio de fotografias aéreas provando que o Iraque tinha armas de destruição em massa. No que tange à Alemanha, o leitor deve lembrar de um ministro da Defesa até então muito respeitado e tido como um social-democrata da velha guarda que alegou que o que as tropas alemãs enviadas para o Afeganistão a pedido dos EUA estavam fazendo era defender a segurança da Alemanha “no Hindu Kush”. Contudo, a revolução neoliberal e a consequente transição para a “pós-democracia”8 deu origem a um novo tipo de enganação política, a mentira especializada. Tudo começou com a Curva de Laffer, usada para provar cientificamente que reduzir impostos acarretaria em receitas fiscais maiores9. Essa lorota foi seguida inter alia pelo “Relatório Cecchini” da Comissão Europeia (1988), que prometia aos cidadãos europeus um aumento de prosperidade na ordem de 5% do PIB da União Europeia, uma redução média de 6% no preço dos bens de consumo, um milhão de novos empregos e uma melhoria das finanças públicas equivalente a 2,2% do PIB como uma espécie de recompensa pelo “conclusão do estabelecimento do mercado interno”, programada para 1992. Enquanto isso, nos Estados Unidos, especialistas financeiros como Bernanke, Greenspan e Summers concluíam que as precauções tomadas por investidores racionais e guiados por seus próprios interesses individuais eram o bastante para estabilizar mercados financeiros cada vez mais “livres” e globalizados e que não havia a menor necessidade de que agências governamentais tomassem medidas para impedir o crescimento de bolhas, até porque agora eles já haviam aprendido a lidar com as consequências de maneira indolor caso essas bolhas estourassem. 

Ao mesmo tempo, as “narrativas”10 difundidas pelos principais partidos, governos e assessores de imprensa e as decisões e faltas de decisão geradas por eles se tornaram cada vez mais absurdas. A entrada de antigos e futuros executivos do Goldman Sachs no maquinário estatal continuou em ritmo acelerado, reconhecendo sua indispensável expertise como se nada tivesse acontecido. Depois de vários anos sem que nenhum dos gerentes e executivos de banco co-responsáveis pela quebradeira de 2008 tivesse que responder por seus atos na Justiça, o então procurador-geral de Obama, Eric Holder, retornou ao escritório de advocacia nova iorquino onde trabalhava. Um escritório especializado em representar empresas financeiras investigadas pelo governo e que deu a Holder um principesco salário de um milhão de dólares. Já Hillary Clinton — que acumulou uma fortuna de centenas de milhões de dólares junto com o marido e a filha nos dezesseis anos desde que deixou a Casa Branca, fazendo, entre outras coisas, palestras pagas pelo Goldman Sachs, que renderam à família Clinton ganhos superiores até aos de um Larry Summers — entra na campanha eleitoral se autodeclarando representante da “classe média trabalhadora”, uma classe que no mundo real há tempos já tinha sido reduzida pelo progresso capitalista à condição de população excedente.

Do ponto de vista do internacionalismo neoliberal, que desenvolveu essa propagação de ilusões no seio do sofisticado governo democrático, é claro que a era pós-factual só começa em 2016, ano do Brexit e do esmagamento do clintonismo por Donald Trump11. Foi somente após o colapso da pós-democracia e o fim da paciência das massas com as “narrativas” a respeito de uma globalização que, no caso dos Estados Unidos, em seus anos finais só beneficiava o 1% mais rico, que os guardiões do “discurso” dominante começaram a clamar por um fact-checking obrigatório. Só então eles se arrependeram das perdas experimentadas por aqueles que foram apanhados de um lado pelas garras da economia global de atenção, de outro pelos cortes na educação e no treinamento. Foi aí que eles começaram a clamar por vários tipos de “testes de aptidão” como pré-requisito para que os cidadãos pudessem exercer seu direito de voto12. O fato de que a massa ignara que por tanto tempo ajudou a promover o progresso do capitalismo ao perder seu tempo acompanhando a vida de Kim Kardashian, Selena Gomez, Justin Bieber e tutti quanti na internet agora tenha se voltado à cabine eleitoral foi registrado como sinal de uma regressão sinistra. Além disso, distrações na forma de “intervenções humanitárias” ou de uma reanimação do conflito Leste-Oeste, desta vez com a Rússia fazendo o papel da União Soviética e os direitos da população LGBTIQ no lugar do comunismo, pareciam ter se exaurido. Verdade e moral deixaram de contar. Na Inglaterra, um político conservador foi questionado por que estaria fazendo campanha para que o país deixasse a União Europeia se aquilo ia de encontro à opinião dos “especialistas”. Sua resposta foi descarada: “O povo desse país está farto de especialistas”13.  

Afetação de superioridade moral e esgoto

O zeitgeist de hoje se caracteriza por uma nova divisão cultural que atingiu as democracias capitalistas sem aviso prévio. Estruturalmente, ele tem suas raízes no velho descontentamento com a “globalização”, conforme o número de “perdedores da globalização” vai crescendo constantemente. Nos anos que posteriores à crise de 2008, esse processo atingiu um ponto de inflexão quando a quantidade de descontentes se refletiu na qualidade dos protestos públicos. Um dos motivos da demora foi que boa parte da primeira leva dos que se manifestavam em nome dos perdedores da sociedade acabaram se juntando ao fã-clube da globalização até o fim dos anos 1990. Isso fez com que, por um bom tempo, aqueles que vivenciavam a globalização como um problema, e não como uma solução, não tivessem ninguém para defendê-los.

A fase áurea da globalização patrocinou o estabelecimento de uma indústria cosmopolita da consciência, que identificou oportunidades de crescimento ao turbinar o impulso expansionista dos mercados capitalistas com valores libertários da revolução social dos anos 1960 e 1970 e sua promessa utópica de emancipação humana14. Nesse processo, o pensamento único neoliberal fundiu-se à moral moderada de uma comunidade de discurso internacionalista.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

O controle que ele estabeleceu sobre o espaço aéreo acima dos bancos universitários hoje serve como base operacional de uma luta cultural peculiar, na qual a moralização de um capitalismo que se expande globalmente anda de mãos dadas com a desmoralização daqueles que se sentem prejudicados por isso. 

Após décadas de declínio, o número de pessoas que decidem votar começou a subir nas democracias ocidentais, especialmente entre as classes mais baixas. No entanto, a redescoberta da democracia como meio de correção política só favoreceu novos tipos de partidos e movimentos cuja aparência desorganiza os sistemas políticos nacionais. Os principais partidos e seus especialistas em relações públicas — que há muito estão intimamente ligados entre si e com a máquina estatal — consideram esses novos partidos uma ameaça letal à “democracia” e os combatem como tal. Nessa luta, “populismo” foi o conceito empregado e rapidamente incluído no vocabulário pós-factual, e serve para descrever organizações tanto da esquerda quanto da direita que rejeitam a lógica Tina de que seria preciso exercer uma política “responsável” em um mundo de globalização neoliberal.

O “populismo” é um conceito velho, que remonta à Era Progressista americana e a nomes como Robert M. La Follette (1855-1925; candidato presidencial pelo Partido Progressista em 1924). Posteriormente, populismo passou a ser um termo mais ou menos neutro para designar uma ideologia presente sobretudo em movimentos políticos latino-americanos que se viam como representantes “do povo”, em oposição a uma retroalimentada “elite”15. Nos últimos anos, o termo populismo tem sido usado em todo o mundo por partidos e pela imprensa ligados ao internacionalismo liberal como um termo geral e polêmico para designar a nova oposição que vem pressionando por alternativas nacionais contra uma internacionalização colocada como única alternativa. A ideia clássica de populismo é a de uma nação que se coloca como uma massa unificada para combater uma minoria elitista que estaria oprimindo “os de baixo”. Desse modo, o fenômeno poderia ter expressões tanto de direita quanto de esquerda. Isso facilita sua apropriação pelos adeptos da fé globalizante porque permite que eles evitem distinções e possam colocar Trump e Sanders, Farage e Corbyn, e na Alemanha, Petry e Wagenknecht, todos no mesmo cesto16.

A fissura entre aqueles que descrevem os outros como “populistas” e os “populistas” em si é uma questão decisiva em sociedades de capitalismo financeiro sufocadas pela crise.  A questão em jogo não é outra senão a relação entre o capitalismo global e o sistema estatal. Nada polariza tanto as sociedades capitalistas de hoje do que os debates que questionam se políticas nacionais seriam ou não necessárias e qual seria sua legitimidade. Nesses debates, interesses e identidades se misturam, causando um nível de hostilidade mútua que não víamos desde o fim da Guerra Fria. As guerras religiosas resultantes, que podem a qualquer momento transformar-se em campanhas de aniquilação moral, colidem com os estratos mais profundos e sensíveis da identidade social e individual, onde são tomadas decisões sobre respeito e desprezo, inclusão e exclusão, reconhecimento e excomunhão17.

Um aspecto significativo da internacionalização é o modo como as chamadas “elites” reagem aos novos partidos, causando desdém entre os “populistas” e aprovação de seus próprios pares. O “populismo” é algo que costuma ser tratado como um problema cognitivo por esses internacionalistas. Supõe-se que seus partidários sejam pessoas que exigem “soluções simples” por serem incapazes de compreender as soluções tão necessariamente complexas e infalíveis, testadas e aprovadas pelas forças do internacionalismo. Seus representantes são vistos como cínicos que prometem “ao povo” essas “soluções simples” que ele tanto deseja, mesmo sabendo que não há alternativa fora dos caminhos complexos traçados pelos tecnocratas. Deste modo, o surgimento dos novos partidos é explicado como sendo uma Grande Regressão por parte da Arraia Miúda, que se manifesta tanto pela falta de conhecimento quanto pela falta de respeito àqueles que detêm o conhecimento. Esse entendimento por vezes é acompanhado de “discursos” favoráveis à abolição dos referendos, ou defendendo que decisões políticas sejam entregues a especialistas e autoridades não-políticas.

No âmbito prático, o resultado disso é a exclusão moral e cultural dos partidos antiglobalização e de seus apoiadores. A constatação de sua imaturidade cognitiva é seguida por uma denúncia moral de seus apelos por uma política nacional que sirva de baluarte contra os riscos e efeitos colaterais da internacionalização. Para isso, memórias dolorosas de racismo e guerra são mobilizadas e qualquer questionamento da globalização acaba sendo taxado de “etno-nacionalista”. Os “etno-nacionalistas” seriam incapazes de lidar com os desafios da globalização: tanto com os desafios econômicos, expressos na forma de uma “competição global”, quanto com os desafios morais. Segundo a cartilha oficial, seus “medos e preocupações” até que “devem ser levados a sério”, mas só no âmbito do trabalho social. Protestos contra a degradação material e moral são vistos com suspeita, como se fossem essencialmente fascistas, especialmente agora que os antigos defensores das classes plebeias viraram a casaca e migraram para o partido da globalização. Isso faz com que os antigos apoiadores desses movimentos populares não tenham nada além de uma linguagem bruta e pré-política quando querem reclamar das pressões da modernização capitalista, uma linguagem que expressa experiências cotidianas de privação, quer seja econômica ou cultural. A consequência disso é uma fala com constantes violações do discurso público civilizado, o que tende a causar indignação no topo e mobilização na base. Em resposta a isso, perdedores e opositores da internacionalização passam a evitar a censura moral abandonando a mídia pública e entrando nas “mídias sociais”. Desta forma, podem utilizar a mais globalizada de todas as infra-estruturas para construir seus próprios círculos de comunicação separatistas, nos quais não precisam temer represálias por serem cultural e moralmente atrasados18.

Desconectados

Entre as surpresas de 2016, devemos incluir a forma como o Brexit e a eleição de Trump surpreenderam não apenas os liberais como também seus cientistas sociais. Nada documenta melhor as divisões nas sociedades neoliberais globalizadas do que o desconcerto de suas elites de poder e discurso diante do retorno dos reprimidos, cuja apatia política era interpretada por essas elites como uma sábia resignação. Mesmo as universidades das costas Leste e Oeste dos Estados Unidos, tidas como “excelentes” e financiadas como se o fossem, não deram pista do que estava prestes a acontecer. É claro que seria difícil descobrir qualquer coisa substancial sobre as atuais sociedades em crise através de pesquisas de opinião de vinte minutos conduzidas por telefone. Aparentemente, há um aumento constante do número de pessoas que desconfiam de cientistas sociais e que os enxergam como espiões de alguma potência estrangeira que devem ser evitados ou, quando não for possível, tratados com cautela, respondendo tudo o que eles supostamente esperam ouvir. Foi assim que as ilusões das “elites” acerca de como andavam as sociedades nas quais elas próprias estavam inseridas foram sendo patologicamente confirmadas. Hoje em dia, poucos cientistas sociais parecem capazes de entender o mundo fora de seus escritórios. Ninguém que leu um livro como Nossos filhos: o sonho americano em crise, de Robert Putnam19, por exemplo, ficaria surpreso com a vitória de Trump. Vai demorar muito tempo até que a burguesia global compreenda os acontecimentos de 2016. 

Na Grã-Bretanha, os partidários de Blair que ainda restavam no Partido Trabalhista achavam que iam convencer seus eleitores tradicionais a permanecer na União Europeia apresentando um extenso catálogo com os benefícios econômicos dessa permanência, sem levar em conta a distribuição desigual desses benefícios. Não ocorreu a um certo público liberal desconectado da experiência cotidiana dos grupos e regiões em declínio que o eleitorado podia esperar que seu próprio governo estivesse mais interessado em suas preocupações do que em acordos internacionais e mercados globais de capital. E muitos dos eleitores simplesmente não conseguiam compreender que, no século XXI, solidariedade internacional entre trabalhadores significava colocar seu próprio emprego na roda da competição global desenfreada.

Interregnum

O que esperar agora? A demolição da máquina construída pelos Clinton empreendida por Trump, o Brexit e o fracasso de Hollande e Renzi — tudo isso no mesmo ano — marcam uma nova fase na crise do Estado capitalista após seu processo de transformação pelo neoliberalismo. Para descrever essa fase, propus o uso do termo “interregno”, de Antonio Gramsci20: um período de duração incerta no qual uma velha ordem está morrendo, mas uma nova ainda não consegue nascer. A velha ordem destruída pelos ataques dos bárbaros populistas em 2016 foi o sistema estatal do capitalismo global. Seus governos haviam neutralizado suas próprias democracias nacionais seguindo um modelo pós-democrático, de modo a não perderem o bonde da expansão global do capital, adiando as demandas por intervenções democráticas e igualitárias nos mercados capitalistas evocando para isso a ideia de uma democracia global do futuro. Como em todo interregno, não dá para saber como essa nova ordem a ser criada irá funcionar. Segundo Gramsci, até que ela seja implementada devemos esperar “que surjam muitos sintomas mórbidos”.

Um interregno, no sentido gramsciano, é um período de tremenda insegurança no qual as relações de causa e efeito habituais já não estão em vigor e eventos inesperados, perigosos e grotescos podem surgir a qualquer momento. Isso ocorre em parte porque linhas de desenvolvimento díspares correm paralelas e de modo não conciliado, resultando em instabilidades variadas e fazendo com que eventos surpreendentes tomem o lugar de estruturas previsíveis. Entre as causas dessa nova onda de imprevisibilidade está o fato de que, após a revolução populista, as classes políticas do capitalismo neoliberal foram forçadas a ouvir suas populações nacionais mais de perto. Depois de décadas em que as democracias nacionais foram deixadas de lado em favor de instituições que promoviam a globalização, as classes políticas começam a se voltar para seus próprios canais de articulação do descontentamento. Passaram-se os tempos de destruição planejada das linhas de defesa nacional diante da pressão racionalizadora dos mercados internacionais. A vitória de Trump significa que é altamente improvável que a Grã-Bretanha faça um segundo plebiscito a respeito da União Europeia, num modelo no qual os plebiscitos são refeitos até que o povo dê a resposta correta. O eleitorado que acaba de se formar já não aceita se curvar para supostas necessidades econômicas, tampouco vai baixar a cabeça para alegações de que é tecnicamente impossível controlar as fronteiras. Partidos que antes se escoravam na ideia de responsabilidade terão de reaprender a atender às demandas dos eleitores21, ou vão acabar tendo que ceder lugar a outros partidos. 

A notável retórica da “Nação Única” adotada pela nova primeira-ministra britânica mostra que pelo menos parte da classe política percebeu isso. Desde o discurso no qual lançava sua campanha como primeira-ministra, no dia 11 de julho de 2016, May conclama mudanças que não eram discutidas desde os anos 1980 nem mesmo pela liderança do Partido Trabalhista: guerra à desigualdade, taxação mais justa para pessoas de alta renda, melhorias no sistema de educação, presença de trabalhadores nos conselhos de administração das empresas, proteção dos empregos britânicos contra o deslocamento para outros países… Tudo isso acompanhado de limites na imigração. O lembrete posto pelo Brexit aos políticos britânicos de que sua responsabilidade é primeiramente com seu eleitorado também fica evidente no discurso feito por May à Confederação da Indústria Britânica, em novembro de 2016. Nele, a primeira-ministra explica que o resultado do plebiscito reflete o desejo do povo por “um país mais forte e mais justo”. 

O programa neoprotecionista de May levanta questões desagradáveis ??para a esquerda social-democrata. Trump também pode se tornar um problema para a esquerda caso resolva cumprir suas promessas em relação à política industrial e fiscal, de tanto que o astuto Bernie Sanders já lhe ofereceu apoio tanto para reabilitar antigas zonas industriais que continuaram decaindo durante os oito anos de Obama quanto para fazer um programa “keynesiano” de reconstrução da infra-estrutura do país. O aumento da dívida que um programa desses exigiria se encaixa perfeitamente na receita neo-keynesiana que vem sendo defendida por políticos e economistas de esquerda (“fim da austeridade”), especialmente se a redução de impostos que ele também prometeu for implementada. Dada a resistência dos remanescentes do Tea Party, essas são medidas que só poderiam ser aprovadas pelo Congresso com ajuda democrata. O mesmo valeria para o uso do “dinheiro de helicóptero”, outra medida já cogitada por Trump e que, além disso, exigiria a cooperação do Sistema de Reserva Federal dos Estados Unidos.

Na verdade, mesmo uma política pós-globalista e neo-protecionista como as que Trump e May têm cogitado seria incapaz de garantir um crescimento estável, mais e melhores empregos, uma desalavancagem da dívida pública e privada ou um aumento da confiança no dólar e no euro. A atual crise financeira do capitalismo não é mais governável no âmbito nacional do que de baixo para cima, no plano internacional. Ela está pendurada no fio de seda de uma política monetária “não convencional” que tenta criar algo como um crescimento através de taxas de juros negativas e de uma expansão avassaladora da oferta monetária, arquitetada pela “flexibilização quantitativa” — a compra de títulos pelos bancos centrais. Nos países em que elas podiam ter alguma utilidade, as reformas estruturais de cunho neoliberal consideradas pelos especialistas como sendo o complemento indispensável para isso tudo foram frustradas pela resistência popular à “globalização” de seus modos de vida. Ao mesmo tempo, a desigualdade econômica está subindo, em parte porque sindicatos e Estados perderam ou cederam seu antigo poder aos mercados globais. A completa destruição de instituições nacionais capazes de promover uma redistribuição econômica e a consequente dependência da política monetária e do banco central como política econômica de última instância tornaram o capitalismo ingovernável, quer seja por métodos “populistas” ou tecnocráticos.

Conflitos domésticos também são previsíveis quando se trata de símbolos culturais. Será que a valorização “populista” da cultura local requer uma desvalorização dos imigrantes no sentido mais amplo? Será que a esquerda vai conseguir prestar uma homenagem cultural digna de crédito àqueles que acabam de acordar de sua apatia? Muitas farpas foram trocadas. Além disso, uma reconciliação assim poderia causar indisposição com os burgueses de esquerda da nova classe média cosmopolita. E, no caso de reveses econômicos, Trump, May e outros líderes podem se sentir tentados a lançar campanhas mais ou menos sutis contra minorias para desviar a atenção das críticas, o que geraria rebeliões contra e a favor. No plano internacional, as coisas podem ser menos dramáticas, ao menos no começo. Ao contrário de Obama, Blair e Clinton, bem como Sarkozy, Hollande, Cameron e talvez até mesmo Merkel, a “última defensora do Ocidente liberal”22, os novos protecionistas nacionais não têm grandes ambições no que tange aos direitos humanos quer seja na China e na Rússia ou até na África e no Oriente Médio, pelo menos pelo que se pode vislumbrar até agora. Aqueles que defendem as intervenções humanitárias no sentido mais amplo podem lamentar isso. A intolerância russa em relação a artistas performáticos como as Pussy Riot dificilmente vai gerar uma resposta missionária em governos que, desde a vitória eleitoral de Trump, tendem a estar muito mais voltados para seus próprios assuntos internos. No fim das contas, Victoria Nuland (“Foda-se a União Europeia”) não virou secretária de Estado dos EUA, e a facção de Direitos Humanos do Departamento de Estado voltou a seus postos nas universidades. Planos para atrair a Ucrânia para a União Europeia e para a Otan e, consequentemente, privar os russos de seu porto no Mar Negro, agora estão fora da pauta, assim como quaisquer projetos de “mudança de regime” em países como a Síria. As tentativas americanas de convocar a Rússia para uma nova Guerra Fria também parecem coisa do passado. É claro que a China pode muito bem tomar o lugar da Rússia, já que Trump terá de convencer o país a abrir mão de parte do mercado americano ao mesmo tempo que continua comprando e mantendo títulos do Tesouro americano. 

No contexto sub-estruturado do interregno que se inicia, com suas instituições disfuncionais e cadeias causais caóticas, os “populistas” serão uma fonte adicional de incerteza à medida que avançam sobre a máquina do Estado. O início do interregno aparece como um momento bonapartista: tudo é possível, mas nada tem consequências, muito menos as intencionadas, porque, na revolução neoliberal, a sociedade retornou à condição de “um saco de batatas”23. Os novos protecionistas não porão fim à crise do capitalismo, mas trarão a política de volta ao jogo e nos lembrarão dos estratos médios e baixos da população, os grandes perdedores da globalização. A esquerda (ou o que quer que tenha sido feito dela) também não faz ideia de como fazer uma transição do atual capitalismo ingovernável para um futuro mais ordenado, menos ameaçado e menos perigoso — basta pensar em Hollande, Renzi, Clinton, Gabriel. Mas, se quiser voltar a ter alguma relevância, deve aprender as lições do fracasso da “governança global” e da falsa política de identidade. Algumas dessas lições são: que os excluídos da auto-intitulada “sociedade do conhecimento” não devem ser abandonados por razões estéticas ao seu próprio destino e, portanto, à direita; que no longo prazo fica difícil impor um cosmopolitismo às custas da “arraia miúda”, mesmo com meios neoliberais de coerção; e, finalmente, que as fronteiras de um Estado nacional só podem ser abertas com seus cidadãos, e não contra eles. Aplicando essa lógica à Europa, isso significa que quem quer muita integração só acaba ajudando a obter menos integração. O identitarismo cosmopolita dos líderes da era neoliberal origina-se em parte do universalismo de esquerda e acaba suscitando um identitarismo nacional como reação, assim como a tentativa de impor uma educação antinacional de cima para baixo produz um nacionalismo anti-elitista na camada inferior. Quem quer que coloque uma sociedade sob uma pressão econômica ou moral capaz de dissolvê-la desperta a resistência de seus tradicionalistas. Hoje isso acontece porque todos aqueles que se vêem expostos às incertezas dos mercados internacionais, cujo controle foi prometido, mas nunca obtido, preferirão um pássaro na mão do que dois voando. Isto é, preferirão a concretude da democracia nacional, por mais imperfeita que seja, à fantasia de uma sociedade global democrática.

Wolfgang Streeck é um sociólogo econômico alemão e diretor emérito do Instituto Max Planck para o Estudo de Sociedades
 

Traduzido do alemão para o inglês por Rodney Livingstone e do inglês para o português por Juliana Cunha.
Publicado originalmente em New Left Rewiew, n 104, março abril de 2017.


Notas

1-Como ficará mais claro ao decorrer do texto, conceitos como este, que se tornaram parte do repertório da retórica política, estão sendo empregados aqui na contramão. Este ensaio foi publicado em: GEISENBERGER, Heinrich (ed.). The Great Regression. Cambridge: Polity Press, 2017. 
2- STREECK, Wolfgang. Buying Time: The Delayed Crisis of Democratic Capitalism. Londres e Nova Iorque: Verso, 2014.
3-STREECK, Wolfgang. Industrielle Beziehungen in einer internationalisierten Wirtschaft. In: BECK, Ulrich (ed.). Politik der Globalisierung. Frankfurt: Suhrkamp, 1998, p. 169-202.
4- MAIR, Peter; KATZ, Richard. Changing Models of Party Organization and Party Democracy: The Emergence of the Cartel Party. Party Politics, vol. 1, no. 1, 1995.
5-Conferir a nota 2. 
6-Cf. STREECK, Wolfgang. Buying Time: The Delayed Crisis of Democratic Capitalism. Londres e Nova Iorque: Verso, 2014.
7-NACHTWEY, Oliver. Die Abstiegsgesellschaft. Über das Aufbegehren in der regressiven Moderne. Berlin: Suhrkamp Verlag, 2016.
8-CROUCH, Colin. Post-Democracy. Cambridge: Polity, 2004.
9-Para saber mais sobre o papel do economista Arthur B. Laffer na política econômica e fiscal de Ronald Reagan e no modo como ele lidou com a dívida pública, conferir: STOCKMAN,David. The Triumph of Politics: Why the Reagan Revolution Failed. Nova Iorque: Public Affairs,1986.
10-Este termo migrou recentemente da teoria literária e da psicologia para a política, onde fez uma carreira meteórica. Não se admira. Segundo a Wikipedia, uma narrativa é uma “história carregada de significado na qual emoções são veiculadas e que fornece uma orientação e transmite confiança”. Esse conceito é especialmente popular nos dias de hoje no que se refere à “Europa”, onde a cada vez que uma eleição dá errado, os auto-nomeados “europeus” clamam por “uma narrativa melhor”.
11-Em 15 de novembro de 2016, o editor do Dicionário Oxford anunciou que “pós-verdade” tinha sido eleita a Palavra do Ano. Logo em seguida, a Sociedade da Língua Alemã declarou “pós-factual” [“postfaktisch”] como a Palavra Alemã do Ano. “Parcelas cada vez maiores da população” estariam prontas para, “em nome de ressentimentos em relação aos” donos do poder, “ignorar os fatos e até engolir mentiras óbvias. Na “era pós-factual” o que conta não é busca pela verdade, mas a expressão de uma “verdade percebida”. Depois de décadas de hegemonia construtivista nas faculdades de literatura (basta pensar em  “narrativa”!), o que vemos é uma súbita redescoberta da verdade objetiva com o objetivo de insultar seus conterrâneos não acadêmicos. 
12-A semelhança com os testes de alfabetização aos quais pessoas de pele escura eram submetidas no sul dos Estados Unidos é impressionante. No dia 29 de novembro de 2016, em um artigo do Frankfurter Allgemeine Zeitung, Sandro Gaycken, “diretor do Digital Society Institute” — que, segundo seu site, é “um instituto de pesquisa estratégica em temas digitais para empresas alemãs” — escreveu o seguinte: “Precisamos de uma ‘gnosocracia’. Quem quiser votar deve demonstrar competência política (...). Para isso, todas as cabines de votação devem incluir um teste de múltipla escolha com perguntas simples sobre todos os assuntos: internos, externos, questões ambientais, econômicas etc. Quem passar no teste pode votar”. 
13-Michael Gove, citado em: MANCE, Henry. Britain Has Had Enough of Experts, Says Gove. Financial Times, 3/06/2016.
14-Essa é uma das formas pelas quais a ideia de 1968 foi cooptada por um capitalismo ansioso para se adaptar a uma sociedade modificada, como descrito por Luc Boltanski e Eve Chiapello em The New Spirit of Capitalism. Trad. Gregory Elliott. Londres e Nova Iorque: Verso, 2006.
15-LACLAU, Ernesto. On Populist Reason. Londres e Nova Iorque: Verso, 2005; MOUFFE, Chantal. Agonistics: Thinking the World Politically. Londres e Nova Iorque: Verso, 2013.
16-Os “populistas”, por sua vez, dão o troco ao classificar todos os adeptos da doutrina globalista, independentemente de suas origens, como sendo uma “elite” global homogênea.
17-A dimensão internacional desse conflito é interessante. A Internacional Internacionalista adverte contra a Internacional Nacionalista, que ela deseja que seja combatida por todos em nome da democracia, e o contrário também é verdade. De vez em quando ouvimos falar de uma Internacional “autoritária” a ser combatida pela Internacional (neo)liberal tanto na política interna quanto na externa. (Desta forma, o nacionalismo e o autoritarismo são equacionados). Assim como Trump e o ditador que emerge na Turquia, líderes dos partidos europeus considerados populistas frequentemente fazem comentários positivos a respeito da Rússia, provavelmente para escapar do enredamento nas alianças internacionalistas pela globalização.
18-Na Alemanha, a Alternative für Deutschland tem mais seguidores no Facebook do que qualquer outro partido.
19-PUTNAM, Robert. Our Kids: The American Dream in Crisis. Nova Iorque: Simon & Schuster,2015.
20-STREECK, Wolfgang. How Will Capitalism End? Londres e Nova Iorque: Verso, 2016, p. 35-46.
21-MAIR, Peter. Representative versus Responsible Governments, mpifg Working Paper, no. 09/8, setembro de 2009.
22-SMALE, Alison; ERLANGER, Steven. As Obama Exits World Stage, Angela Merkel May Be the Liberal West’s Last Defender, New York Times, 12 de novembro de 2016.
23-“Assim, a grande massa da nação francesa é formada pela simples adição de magnitudes isomórficas, do mesmo modo como as batatas em um saco formam um saco de batatas”. MARX, Karl. The Eighteenth Brumaire of Louis Bonaparte. In: Surveys from Exile. Londres: Penguin, 1973, p. 239
 

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