Internacional
Edição 156 > O que há por trás da guerra comercial?
O que há por trás da guerra comercial?
A crescente guerra comercial de Trump visa afirmar o domínio dos EUA no mundo mais do que ajudar os trabalhadores americanos
O presidente Trump atinge as tarifas sobre importações de muitos países aliados tradicionais dos EUA, acusando seus líderes de tratamento injusto. A grande mídia adverte sobre a erosão da ordem global.
O presidente Trump ameaça, e logo impõe, altas tarifas sobre produtos chineses e impõe também outras restrições às relações comerciais com a China. A ZTE Corporation, uma empresa estatal líder de alta tecnologia na China, está impedida, por motivos de segurança nacional, de importar componentes fabricados nos EUA essenciais para seus produtos. Em seguida, a ação contra a ZTE é revertida, levando alguns senadores democratas a denunciarem Trump por ser fraco com a China. De que lado deveríamos estar, se é que há algum, nessa crescente guerra comercial?
Atacando os aliados dos EUA
Existem dois aspectos na política de guerra comercial de Trump. Um é a ação contra a UE, o Canadá e o México; o outro é a postura em relação à China. Os problemas são diferentes nos dois casos.
As ações de Trump contra a UE, o Canadá e o México são movidas por sua política nacionalista de direita, compartilhada por alguns de seus conselheiros mais próximos. Essa postura política ajudou a impulsionar sua campanha improvável à presidência em 2016. De acordo com a visão nacionalista de direita no mundo, o comércio global é uma relação de soma zero. As tarifas são o aríete que pode ser usado para garantir melhores negócios para os EUA em detrimento de outros.
Essa postura nacionalista de direita contraria o antigo consenso dentro do establishment, que favorece o “livre comércio” dentro de uma ordem global dominada pelos EUA. Tanto os liberais quanto os conservadores nos EUA apoiaram o sistema de comércio global relativamente aberto - que, na retórica de todos os que se beneficiam, é projetado para capacitar o capital para se mover livremente pelo mundo em busca de mão-de-obra de baixa remuneração, impostos baixos e regulamentação de proteção ambiental frouxa.
Enquanto a esquerda há muito criticou esse acordo, Trump não o substitui por nada melhor. Os EUA não têm o poder de impor um conjunto de regras comerciais flagrantemente injustas ao resto do mundo. A tarifa média dos EUA, de 2,79%, é um pouco mais alta que a de outros grandes países desenvolvidos, como o Canadá (2,44%) e os países da UE (1,92%). Quaisquer que sejam as falhas do atual sistema de comércio global, ele não é manipulado contra os EUA. A continuação da ofensiva tarifária contra a UE, o Canadá e o México poderia desencadear uma guerra comercial global, sem vencedor e com grandes prejuízos econômicos para todos os países.
Confrontando a China
A administração Trump invocou uma linguagem similar em suas ações comerciais agressivas contra a China. Eles alegam que a China tem se aproveitado dos EUA, até sugerindo que as décadas de rápido crescimento da economia chinesa se devem na verdade a um enorme presente dos EUA.
A maioria das grandes empresas dos EUA, juntamente com os analistas de políticas que refletem suas opiniões, criticaram as tarifas do governo Trump contra a China. As corporações dos EUA vêm obtendo enormes lucros na China, o que seria colocado em risco por um conflito comercial em torno das tarifas. Ao mesmo tempo, as grandes empresas apoiam que se pressione a China para que mude de rumos. Elas discordam apenas da abordagem da administração Trump. Em vez disso, eles recomendam uma frente unida com os aliados dos EUA para pressionar a China a alterar suas práticas comerciais, uma estratégia de barganha que não pode ser adotada, se Trump estiver afastando esses parceiros por aplicar tarifas a seus produtos.
As grandes empresas dos EUA há muito se sentiram em conflito com a China. Por um lado, o acesso ao célebre mercado chinês - que exerceu uma influência sobre a imaginação das empresas norte-americanas desde o século XIX - permitiu-lhes obter lucros substanciais. Atualmente, as principais empresas dos EUA realizam uma parcela substancial de seus negócios globais na China. No ano fiscal de 2017, a Apple recebeu 20% de sua receita de vendas da China. Esse número foi ainda maior para a Intel (23%) e a Qualcomm (65%). Por outro lado, as corporações americanas ressentem-se das condições de contrato. O Estado chinês segue uma “política estatal de desenvolvimento”, que obriga as empresas estrangeiras a cumprirem certas condições, se quiserem entrar no mercado do país. Diferente da maioria dos países em desenvolvimento, o governo dos EUA não pode fazer valer sua vontade sobre o governo chinês, exigindo que permita que as empresas dos EUA façam o que quiserem.
Críticos da China apontam várias queixas inter-relacionadas. A maior reclamação é que a China rouba a tecnologia dos EUA. Em seguida, há a acusação de que o Estado chinês, por meio de sua “política industrial”, injustamente inclina o campo de jogo, fornecendo subsídios e financiamento para algumas firmas domésticas. A China usou a política para promover indústrias do futuro com algum sucesso. Por exemplo, a China tornou-se o principal fornecedor de painéis solares para o mercado mundial. Uma queixa final é que a China tem um setor significativo de empresas estatais, algumas delas em indústrias de alta tecnologia e algumas das quais participam ativamente no mercado global por meio de exportações e investimentos estrangeiros diretos. Os críticos reclamam que as empresas estatais chinesas têm uma vantagem injusta devido ao apoio do Estado.
Há uma ironia nessas acusações de concorrência desleal. A teoria econômica neoliberal sustenta que a política industrial enfraquece a economia de um país, uma vez que coloca o Estado na função de tomar decisões sobre quais atividades econômicas devem ser encorajadas - decisões, argumenta, que apenas o livre mercado pode fazer efetivamente. Da mesma forma, a teoria neoliberal insiste que as empresas estatais são inerentemente inferiores às de propriedade privada, e que elas só servem para derrubar a economia de um país. No entanto, quando confrontados com o rápido avanço da China, os neoliberais de repente esquecem suas crenças fundamentais e alegam concorrência desleal!
A China rouba as tecnologias dos EUA? Parece que houve alguns casos reais de roubo por empresas chinesas, por meios tais como pagar funcionários de empresas estrangeiras para repassar os segredos tecnológicos. Para se ter uma perspectiva, porém, é útil lembrar como os EUA começaram a se industrializar por volta de 1800, quando a economia era predominantemente agrícola. Uma fábrica têxtil que usava máquinas começou nos anos 1790, quando Samuel Slater, um mecânico inglês que trabalhava numa fábrica de tecidos, memorizou o design do maquinário, emigrou para Rhode Island e se uniu a um rico comerciante para lançar uma nova empresa. Os EUA, em outras palavras, roubaram a principal tecnologia da época da Inglaterra. Se os países menos desenvolvidos quiserem avançar economicamente, eles terão que adquirir os métodos superiores dos países já desenvolvidos. O furto é um meio de realizar isso, embora seja melhor que essa transferência de tecnologia ocorra dentro da lei.
Existe um princípio importante aqui. Os socialistas geralmente acreditam que o conhecimento deve ser disponibilizado gratuitamente. Uma tecnologia, como todas as formas de conhecimento, é um bem público, pois, uma vez descoberto, o custo de usá-lo novamente é efetivamente zero (já que não precisa ser redescoberto). Assim, o preço de usar o conhecimento deve ser zero, mesmo de acordo com os princípios da economia hegemônica. As reclamações sobre os furtos chineses também exageram sua penetração. O principal meio de transferência de tecnologia para a China não tem sido o roubo direto, mas um acordo regularmente oferecido às empresas ocidentais: se você quiser operar no país, você precisa aceitar uma empresa parceira local, que receberá acesso à sua tecnologia. As empresas ocidentais não gostam do trade-off, mas geralmente aceitam a contragosto. Este método de regulação estatal ajudou a China a subir na escala tecnológica. Neste ponto, porém, a prática está se tornando menos importante, já que o Estado chinês tem feito grandes investimentos para descobrir novas tecnologias. Em vez de importar tecnologias avançadas de outros lugares, está flexionando seus próprios músculos de P & D.
E quanto aos trabalhadores dos EUA? Não podemos ignorar o custo para os trabalhadores nos EUA, quando empregos com salários relativamente altos são transferidos para a China ou a Indonésia. No entanto, as tarifas de Trump não são uma solução, mas muito mais um jogo de bodes expiatórios, desviando a atenção das causas reais do problema. Em vez disso, devemos exigir políticas que protejam os trabalhadores dos EUA dos danos colaterais do desenvolvimento econômico do Terceiro Mundo que ocorrem dentro do sistema capitalista global.
Uma combinação de medidas faria o seguinte: 1) um programa de empregos do governo para contratar, com um salário digno, qualquer trabalhador que precisasse de um emprego; 2) uma política industrial voltada para o esverdeamento da economia dos EUA, por meio de grandes investimentos em energia renovável, formas eficientes de transporte de massa e uma transição para edifícios com eficiência energética; 3) treinamento e capacitação generosamente financiados para trabalhadores deslocados por importações; 4) um aumento do salário mínimo para o nível de um salário digno.
Embora não esteja no campo da possibilidade política no presente imediato, tal programa garantiria que a ascensão dos países menos desenvolvidos não prejudicasse os padrões de vida dos trabalhadores americanos.
Por que o ataque à China agora?
Por que as grandes empresas dos EUA só agora exigem que algo seja feito para mudar o comportamento da China? Uma explicação pode ser a de que Trump levantou a questão de ter-se que “fazer algo” sobre a China. Mas outro fator decorre da dinâmica do imperialismo capitalista. Até recentemente, a China estava relativamente baixa em termos de tecnologia e as empresas dos EUA podiam estabelecer relações altamente lucrativas, ocupando e controlando os lugares mais avançados na divisão do trabalho. A China produzia brinquedos e roupas para vender aos EUA por meio de poderosos varejistas americanos, como o Walmart, enquanto os Estados Unidos produziam aeronaves e componentes avançados de computadores para vender à China. A maior parte dos lucros gerados em ambas as direções foi incorporada pelo capital dos EUA.
Aproximando-nos dos dias de hoje, vemos que a China avançou ao ponto de poder visar a fronteira tecnológica em muitas indústrias avançadas, uma meta que parece ser alcançável em algumas décadas. Isso muda a relação com os EUA para uma relação de rivalidade, pelo menos no futuro próximo. Por que isso é um problema para as grandes empresas dos EUA? Outros países têm empresas na fronteira tecnológica mundial, como Alemanha e Finlândia.
É aqui que entra o papel do imperialismo capitalista. Os maiores Estados capitalistas, respondendo ao impulso do capitalismo, sempre buscam dominar os mercados, controlar as fontes de matérias-primas e assegurar locais de investimento lucrativo de capital. Isso impele esses Estados a exercer o domínio político sobre o máximo do mundo que puderem.
Os EUA, como o poder imperial dominante desde 1945, podem tolerar países adiantados que sejam suficientemente pequenos e amigáveis para aceitar a liderança dos EUA (isto é, a dominação dos EUA). Assim, a Alemanha e a Finlândia não são uma ameaça. Mas se algum país começar a desafiar o domínio econômico dos EUA em setores-chave, os alarmes disparam. Nas décadas de 1970 e 1980, quando o Japão estava afirmando uma posição dominante em vários mercados importantes para os EUA, foi desencadeada uma onda nacionalista destinada a restringir as importações japonesas. O Japão foi forçado a aceitar as exigências de limites nas exportações de veículos automotores para os EUA. A “ameaça japonesa” recuou após 1989, quando o Japão entrou em um longo período de estagnação.
Hoje, a China está prestes a fazer a transição para o status de “país desenvolvido”. Está prestes a se tornar o equivalente econômico dos EUA em algumas décadas. Como um país muito grande, com instituições que trabalham efetivamente para promover o desenvolvimento econômico, e com um Estado que não concorda em se subordinar aos EUA, a ascensão econômica da China é vista pela classe dominante dos EUA como uma ameaça à hegemonia americana. O poder capitalista dominante sempre tentará impedir o surgimento de um igual. Na verdade, essa tem sido a política oficial dos EUA desde o fim da União Soviética.
Um momento perigoso
O conflito com a China é muito perigoso. Não é o mesmo que a Guerra Fria, que opôs dois sistemas diferentes - capitalismo e socialismo de Estado - uns contra os outros. É uma batalha entre o capitalismo liderado pelos EUA e um poder em ascensão, cujo sistema é difícil de classificar, com uma economia que é em grande parte capitalista, mas um Estado que mantém muitas das práticas do socialismo de Estado. A liderança da China sempre afirmou que não busca domínio no sistema global, mas apenas quer participar dele livremente. No entanto, a dinâmica do sistema impulsionado pelo mercado chinês levou o país a inserir-se cada vez mais na economia global - não apenas através do comércio de bens, mas através de investimentos diretos e aquisições de empresas em muitas partes do mundo.
O que estamos testemunhando é uma colisão iminente entre uma hegemonia capitalista enfraquecida e um poder econômico crescente que, qualquer que seja a forma de seu sistema socioeconômico, está integrado ao sistema capitalista global. A situação é mais parecida com as tensões anteriores à Primeira Guerra Mundial entre os principais Estados capitalistas - que levaram a duas guerras mundiais devastadoras - do que com a Guerra Fria (na verdade, uma paz fria) entre capitalismo e socialismo de Estado. A Guerra Fria foi uma disputa pela influência política e pela lealdade da população mundial entre dois sistemas diferentes; não uma disputa entre rivais econômicos entrelaçados.
Neste conjunto complexo de conflitos globais perigosos desencadeados pela guerra comercial de Trump, os socialistas precisam de uma postura política de curto prazo e de longo prazo. A curto prazo, devemos pressionar para resolver as crescentes tensões globais por meio de negociação e compromisso, em vez de ameaças. Devemos apoiar a reforma do atual sistema global de comércio para permitir que os Estados busquem a política industrial, permitam um espaço para empresas públicas e promovam a rápida difusão de novas tecnologias por meio do licenciamento de baixo custo compulsório e um papel maior das instituições públicas no desenvolvimento e controle de novas tecnologias.
A longo prazo, devemos trabalhar por um futuro socialista em que a economia se baseie na produção para satisfazer os desejos e necessidades humanas, em vez do lucro de uma pequena classe rica, na qual novas tecnologias são livremente disponíveis para todos, em que o progresso econômico em uma nação não será vista como ameaça para outras nações e na qual a cooperação substitui a concorrência na economia global.
Se a trajetória atual, em direção à guerra comercial, não puder ser redirecionada, veremos mais indelicadezas e conflitos de altos riscos - um desastre para qualquer um que se importe com os interesses da grande maioria.
*David M. Kotz é professor de economia na University of Massachusetts Amherst e autor de The Rise and Fall of Neoliberal Capitalism. Texto reproduzido da revista eletrônica Jacobin (https://www.jacobinmag.com) URL encurtada da publicação original: https://goo.gl/Lbr6M6
Tradução: Inês Rosa Bueno