Economia
Edição 156 > Era uma vez uma nação? Entre o fanatismo, a utopia e o “contração fiscal expansionista” (1)
Era uma vez uma nação? Entre o fanatismo, a utopia e o “contração fiscal expansionista” (1)
A eleição de Bolsonaro traz para a gestão da economia nacional um fanatismo de mercado quase inédito na história recente do Brasil, com potencial para descambar em um Estado autoritário no campo político, mínimo no campo econômico e com tendência de agravamento na questão social

No campo da economia em geral e da política econômica em particular, a marca do que pode se chamar de “bolsonarismo” é a clara nitidez de princípios, meio e estratégia. Evidentemente, por ser a economia um acessório tanto político quanto ideológico. No caso do presidente eleito, e sua equipe, a variável ideológica salta aos olhos até entre gente graúda da própria ortodoxia, onde se misturam postulados tanto monetaristas quanto da chamada Escola Austríaca (Mises, Hayek etc.), sintetizando um fanatismo de mercado quase inédito na história recente.
O mais preocupante é que se somam a esses atributos – políticos e ideológicos – alguns outros, sendo o principal o claro senso e ímpeto de poder político a ser exercido. O Brasil se tornará um caso de estudo, transformando o Chile de Pinochet num simples ensaio de laboratório. De antemão, adiantamos que, infelizmente, aqui está a se construir não uma China do século XXI, conforme disse um empresário ligado a Paulo Guedes. É mais fácil replicar aqui a China pós-Guerras do Ópio (1839-1842). Um país dominado não por narcotraficantes de ópio, mas por traficantes de moeda. Um Estado autoritário no campo político e mínimo no campo econômico, e uma questão social com tendência ao amplo agravamento.
Vejamos a diferença entre o caminho intelectual e ideológico e os sinais do “mundo real”.
A estratégia: desregulamentação das “três mercadorias fictícias”
As contradições são parte essencial de todo e qualquer projeto, mas é objetiva a reunião de forças em torno de um projeto ultraliberal e disposto a enterrar todo e qualquer rastro não de “comunismo”, e sim de socialdemocracia. O meio para isto? A “despolitização”, ou, nas palavras de Karl Polanyi, a desregulamentação das três mercadorias fictícias: o trabalho, a terra e o dinheiro. Assim criando as condições institucionais que tornariam a financeirização completa da economia brasileira um caminho de difícil volta.
O caminho intelectual para esta abordagem sobre o “microEstado” remonta a mais de 300 anos, com John Locke em seu Segundo Tratado do Governo (1688), no qual a naturalização da desigualdade, a legitimação da propriedade privada e o consequente surgimento do mercado de trabalho servem de base à despolitização de uma invenção recente à época: o dinheiro. Daí a noção religiosa tanto da “neutralidade da moeda” quanto da deturpação a que foi submetida a Teoria Quantitativa da Moeda criada por Willian Petty, com o objetivo funcional de auxiliar os mecanismos relacionados ao processo de racionalização das contas nacionais.
Em ambos os casos, desde Locke, o esforço era o de colocar o Estado em seu devido lugar: separado do mercado e legitimador da propriedade privada e do indivíduo tendo a economia, em seus estertores, como algo próximo de um “sistema fechado de ações” – um organismo baseado em leis ou lógicas próprias de funcionamento independente do Estado, de um modo geral, e especificamente do monarca (inglês). É evidente que essa tipologia de desenvolvimento econômico, social e humano não somente dispensa, como demanda expulsão do Estado em nome do bom “funcionamento dos mercados”. Hoje se lê este mesmo conteúdo sob forma de “reformas microeconômicas”, “criação de ambiente de negócios”, “respeito e garantia ao cumprimento de contratos” etc. Em teoria econômica seria o mesmo que negar a validade do valor trabalho em nome da ampla ação sem freios da lei do valor.
Na vida real, significa a liberdade irrestrita à superexploração do trabalho, a garantia a “técnicos acima do bem e do mal”, à liberalização financeira no plano doméstico e internacional, a garantia de “câmbio flutuante”, contas de capital abertas e juros acima dos praticados em nível internacional tornando a especulação com títulos, moeda estrangeira e a terra (que, além do desmatamento gerado pela especulação fundiária desenfreada, poderá deixar de ser protegida por instituições reguladoras de seu uso, como o IBAMA) negócios legalizados e sem nenhuma influência da “política”. O mesmo raciocínio, e mais perverso raciocínio (o núcleo da derrota da socialdemocracia), vale à mercantilização dos direitos sociais anexos à previdência social, a educação e saúde públicas: todas, na visão “deles”, mal geridas por “políticos geneticamente corruptos”. O mercado, como o “campo da virtude” (e do mérito) por excelência, saberá lidar melhor com as demandas sociais, represadas ou não.
A utopia não é uma regra
É sob esse guarda-chuva intelectual e ideológico que se inspiram os “economistas de Bolsonaro” chefiados por Paulo Guedes, cujo sinal mais recente (indicação do ótimo contador Joaquim Levy à presidência do BNDES) indica justamente no sentido da “despolitização” de qualquer coisa que ouse se aproximar e ameaçar a “neutralidade da moeda”. (Inclui-se neste pacote também a “despolitização” das relações exteriores).
Na verdade, intenta-se no Brasil a aplicação de utopias que insistem em sobreviver (inclusive a despeito de grandes crises como a de 2008), independente de o capitalismo ter se tornado monopolista e de Estado em todos os países que alcançaram o topo da escada e onde o legado da “socialdemocracia” é pilar fundamental não somente de Estados Nacionais estáveis, mas principalmente de sociedades educadas, cultas e hígidas. É sempre bom nos remeter aos conselhos de grandes mestres como Albert Hirschman, para quem deveríamos desconfiar de “verdades” que sobrevivem, apesar, e por séculos a fio.
Trata-se de ideias que atualmente no mundo estão se transformando em um entulho. O exemplo chinês é sugestivo com o país crescendo há quase 40 anos de forma ininterrupta sem seguir nenhum dogma utilitarista gerado por John Locke ou David Hume. Ao contrário, por lá é total e completa a “politização” da taxa de câmbio e juros. O comércio exterior é um bem público, planificado e de Estado, e o “mercado” é dominado por 149 conglomerados empresariais estatais e dezenas de bancos nacionais, provinciais e municipais de desenvolvimento.
Já o ultraliberalismo existe no mundo como exceção, não regra: na Argentina está levando o país a um buraco sem fundo. Honduras e Paraguai são territórios de “livre-comércio” para tudo, inclusive drogas. E agora no Brasil, onde neoliberais fanáticos estão prestes a tomar de assalto o Estado com todos os riscos anexos nos quais uma aventura deste tipo pode incorrer em um país de 210 milhões de habitantes e com seu tecido social com óbvios sinais de rompimento.
O mundo real
Uma pergunta justa (e invertida): Diante de um poderoso aparato de apoio teórico, político, midiático e acadêmico de peso, qual o risco de “dar errado” essa estratégia? Não existem casos no mundo, desde a Revolução Industrial, onde a completa retirada de cena do Estado teve como contrapartida performances econômicas robustas baseadas, no dizer dos economistas cepalinos, em “mudança estrutural”, ou seja, em um catching-up centrado na mudança do eixo de gravidade inteiro dos países da agricultura de exportação à industrialização.
Logo, o sucesso dessa “estratégia” depende de um ciclo externo expansivo de acumulação gerado no centro do sistema e na China. Tal dependência se agrava com a criminalização da utilização de políticas fiscais contracíclicas no Brasil via a famosa PEC do teto dos gastos e do desmonte do que restava de instituições típicas de capitalismo de Estado surgidas entre os anos 1930 e 1980 (BNDES etc.). Nunca o Brasil dependeu tanto do desempenho econômico internacional para aliviar a ausência da variável taxa de investimentos no guarda-chuva da demanda agregada. E o que os organismos internacionais têm indicado é a estabilização do crescimento internacional. Segundo o FMI, no biênio 2017-2018, o crescimento deverá ficar no patamar de 3,7% (2). Porém, à luz do desempenho das economias desenvolvidas e de seus mercados financeiros, não será surpresa a queda desse prognóstico (3). Para piorar o cenário de quem acredita como um cânone bíblico nas “leis das vantagens comparativas”, esse mesmo relatório do FMI aponta para uma desaceleração do volume de comércio mundial de 5,2% para 4,2% em 2018 e 4,0% em 2019.
Não se faz necessária muita ciência para explicar a razão desses números. Abrindo parênteses, não seria nada ilógica a prisão para quem está compromissado com a descontinuidade do desmonte de nossos aparelhos de coordenação e socialização do investimento no Brasil, ainda mais diante do que se espera da economia internacional. O Brasil será atingido em cheio pela provável desaceleração do crescimento chinês ocasionado tanto pela brutal guerra comercial imposta por Trump, quanto pelas dores de parto da mudança interna de sua dinâmica de acumulação, do investimento ao consumo. Os efeitos desta guerra comercial não ficam estritos à China.
Os demonstrativos de queda a cada previsão de crescimento afetam diretamente os mercados financeiros dos países centrais, numa clara demonstração de “aversão aos riscos” típicos do capitalismo financeirizado. A possibilidade de uma nova crise financeira não pode ser descartada diante do aumento do endividamento das empresas (4) e de consumidores tanto no Japão quanto na zona do Euro (5), e nos EUA agrava-se o problema fiscal com os cortes de impostos executados por Trump. A aposta em novo boom de commodities pode ser descartada por um simples motivo econômico: falta de demanda (6). Certamente, nesse cenário a última coisa que se pode esperar do governo dos EUA é uma “solidariedade” aos agricultores brasileiros – muito pelo contrário.
Quanto à esperança nos investimentos externos diretos, olhemos ao nosso vizinho maior (Argentina) que tem feito direitinho a “lição de casa”, e o retorno não se tem dado por meio de greenfields investments, e sim pela via de fusões e aquisições de empresas nativas por estrangeiros, como já ocorrera ao longo da década de 1990 com efeitos desastrosos. Novidade zero diante da guerra de capitais, com grandes Estados Nacionais como portadores diretos dos interesses de seus capitalistas domésticos, que vive o mundo atual. E Bolsonaro é tão ou mais entreguista e vil que Macri.
Ociosidade mais “contração fiscal expansiva”
Há quem acredite que a tomada do investimento por parte do empresário ocorre em estrita relação com o comportamento da dívida pública, em detrimento de uma visão do investimento como resultado de uma decisão baseada tanto em backward looking (capacidade produtiva instalada) quanto em forward looking (demanda futura). Tendo a segunda hipótese como a correta, a história demonstra que o capitalismo criou mecanismos de intervenção no ciclo econômico via expansão dos gastos públicos. Quanto à primeira hipótese, em lugar nenhum do mundo ocorreu ou ocorre (7). É utopia sob forma de insanidade com um nome muito sugestivo que pode ser tanto “déficit fiscal zero” quanto “contração fiscal expansiva”.
Neste sentido, não contente com a PEC do teto dos gastos, o último Boletim Focus aponta para um déficit de 1,9% do PIB em 2018, de 1,50% em 2019 e 0,75% em 2020 – sendo que entre 2019 e 2020 o investimento público deverá chegar a níveis recordes negativos. Ora, a Formação Bruta de Capital Fixo atingiu seu menor índice histórico (14,2% no primeiro trimestre de 2018), o que nos iguala a países em situação de guerra. É evidente que é correta a verdade empiricamente comprovada, segundo a qual os índices de criminalidade da sociedade têm relação inversa à taxa de investimentos.
É um prato cheio para a liberação de energias negativas protofascistas ao extermínio em massa de pobres e inválidos, seja pela mão do próprio Estado policial a ser instalado, seja pelo empoderamento dos piores instintos anexos à alta da cotação das ações das grandes “multis” de armas com a eleição de Bolsonaro. Poderíamos encontrar refúgio na lenta desaceleração no endividamento verificado pelas famílias e empresas no Brasil, e ainda taxa de câmbio favorável (8). Nem uma (consumo) nem outra (comércio exterior) são capazes de se transformar em um driver capaz de gerar aumento do produto.
O importante é fechar as contas do ano...
No país do ódio, onde o crime cometido pelos pobres é visto como algo moralmente repugnante, portanto passível da pena capital, não se observa que existe um movimento de desobediência civil onde a criminalidade é apenas um gravíssimo componente. Este componente aponta para algo que requer utilização, não eliminação física pura e simples. Não se busca pelo ato de se dividir o que existe, mas pelo de se encontrar novos titulares prontos a se aproveitarem dos efeitos de encadeamento dos gastos públicos, onde os pobres seriam os principais beneficiários de uma grande renda a ser gerada.
O banditismo fascista que chegou ao governo central do país não tem a menor sensibilidade a algo tão óbvio quanto o que a própria história propõe como solução: mais Estado.
A eles o que vale é a crença de que: 1) A metrópole invertebrada, construída á imagem e semelhança do transporte automobilístico individual, Moloch insaciável ao qual tudo se sacrifica, é suficiente para reprimir legalmente o crime recorrendo a outro crime: o da repressão terrorista (para isso, Sergio Moro [o fascistoide e funcionário do Departamento de Estado dos EUA] escolhido para a pasta da justiça propõe um Plano Real contra a criminalidade); e 2) tudo se resolve com as contas do Estado em dia, nem que para isso o futuro da Nação seja trocado pelo curto prazo. Seja pelo Big Bang privatista e antinacional que deverá se abater sobre a Pátria, seja por uma reforma previdenciária que condena aqueles que construíram nosso país ao mais indigno fim.
Reafirmar a centralidade da Questão Nacional
O Brasil está prestes a entrar ao comando do lúmpen da política nacional encerrada no trinômio encerrado no entreguismo escancarado, e no autoritarismo na política e ultraliberalismo na economia. Não se trata de qualquer lúmpen. Como dissemos no início, eles têm ímpeto de poder. Sabem aonde querem chegar e contam com poderosas conexões internas e externas prontas à sua sustentação política.
O quadro apresentado desde a base ideológica, quanto o que nos aponta o “mundo real”, nos dá pouca margem de erro para afirmar a inconsistência do que se pode chamar de um fiapo de política econômica. O Brasil entrará em um processo de leilão de suas riquezas naturais e do fechamento do circuito institucional ultraliberal iniciado por FHC (Plano Real, “tripé macroeconômico”), continuado por Temer (reforma trabalhista, PEC do Teto dos Gastos etc.) e deverá ser aprofundado por Bolsonaro (reforma da previdência, privatizações e desregulamentação em massa da economia). E não virá o desejado crescimento econômico baseado em falsários equilibristas, rodadores de “modelos”.
Não se trata de exagero afirmar a máxima dos guerrilheiros do Exército Vermelho chinês sob o comando de Mao Tsé-tung: “a Pátria está em perigo”. O momento é de todo o campo patriótico e popular se fechar em palavra de ordem semelhante, capaz de abrir relevo a uma Frente Ampla de Defesa da Nação e dos Direitos do Povo. Sem margem para mais diversionismos e minimalismos. Tomemos às nossas mãos, o que nunca foi deles: A BANDEIRA DO BRASIL.
*Elias Jabbour é professor adjunto da Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (FCE-UERJ) e de seu Programa de Pós-Graduação em Ciências Econômicas (PPGCE-FCE-UERJ).
** Alexis Dantas é professor associado e diretor em exercício da Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (FCE-UERJ,) de seu Programa de Pós-Graduação em Ciências Econômicas (PPGCE-FCE-UERJ) e do Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais (PPGRI-UERJ).
Notas(1) Edição revista e ampliada de artigo escrito por Elias Jabbour ao Laboratório da Economia Contemporânea do Le Monde Diplomatique sob o título de A derrota da socialdemocracia. Disponível em: .
(2) International Monetary Fund. World Economic Outlook,October/2018. Disponível em: .
(3) Nos dois cenários anteriores do FMI (em abril e julho) previa-se um crescimento de 3,9%.
(4) O caso das empresas não financeiras é, na melhor das hipóteses, dramático. Estudo do Bank for International Settlements (BIS) examinou um banco de dados de 32.000 empresas listadas em Bolsa de 14 economias avançadas para identificar empresas “zumbis” (empresas incapazes de cobrir os custos de suas dívidas por um período prolongado de tempo). Hyman Minsky definiria tais empresas como em situação Ponzi, dada a vulnerabilidade a aumento das taxas de juros ou queda da demanda. Disponível em: .
(5) Resultado de anos de prática de juros negativos.
(6) Os preços das principais commodities declinaram. O petróleo, por exemplo, cujas cotações perderam cerca de 35% em pouco menos de dois meses.
(7) Não ocorre simplesmente por: 1) Não funcionar; 2) fazerem os pobres pagarem pelos equívocos de governos pautados pela grande finança; e 3) repousar na chamada “falácia da composição” que coloca em pé de igualdade os gastos familiares e gastos governamentais. Caso fosse verdade, somente em outro planeta a queda dos investimentos do Estado não diminuiria a renda geral da sociedade e o seu próprio endividamento.
(8) Os saldos comerciais do país têm sido em geral positivos desde 2016, estando em média em US$ 2,2 bilhões em 2017-2018.