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Brasil

Edição 156 > Os 70 anos da Cepal: gênese e originalidade das contribuições cepalinas para o pensamento latino-americano

Os 70 anos da Cepal: gênese e originalidade das contribuições cepalinas para o pensamento latino-americano

Tiago Nery
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“Ayer fue yesterday para buenos colonos,
mas por fortuna nuestro mañana no es tomorrow”

Mario Benedetti


A Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal) foi criada, em fevereiro de 1948, no âmbito do Conselho Econômico e Social das Nações Unidas (ECOSOC). A organização foi responsável por elaborar um sistema analítico original, que se tornou um poderoso instrumento de compreensão das características socioeconômicas da América Latina. O presente artigo pretende analisar o impacto das ideias da Cepal quando de seu surgimento, a forte oposição do governo dos Estados Unidos à sua criação e as principais contribuições teóricas desta que pode ser considerada a primeira escola de pensamento latino-americano.

Segundo Carlos Brandão (2018, p. 8), “a Cepal foi o centro intelectual de onde se originou a agenda de questões para uma reflexão de longo alcance e escopo, dotada de um enfoque analítico próprio sobre a situação periférica; foi também o espaço de diálogo de onde brotaram os debates sobre dependência e variadas matizes do pensamento estruturalista latino-americano”.

Após a Segunda Guerra Mundial, o mundo enfrentou os desafios da reconstrução europeia e da descolonização afro-asiática. Entre 1945 e 1973, o sistema capitalista atravessou a chamada Era de Ouro, período marcado por elevadas taxas de crescimento e pela articulação entre o regime de acumulação fordista e o Estado de bem-estar, no nível nacional, e o sistema de Bretton Woods, no plano internacional. Esse sistema internacional se caracterizava pela abertura comercial moderada e pela repressão financeira (controle de capitais). Tal arquitetura institucional permitiu que os países tivessem maior autonomia na gestão macroeconômica doméstica e na formulação de suas estratégias nacionais de desenvolvimento.

No contexto de hegemonia das ideias propostas por John Maynard Keynes, surgiu, nos países de capitalismo avançado, a teoria do desenvolvimento econômico, que tratava de explicar, em uma perspectiva macroeconômica, as causas e o mecanismo do aumento da produtividade do fator trabalho e seus efeitos na organização da produção e na forma como se distribuía e se utilizava o produto social. Todavia, na maneira concebida pelos grandes centros universitários do mundo ocidental, a teoria do desenvolvimento parecia ignorar a dimensão histórica do processo de desenvolvimento (FURTADO, 2009). Não havia motivo, portanto, para que teorias baseadas na simplificação da história dos países de capitalismo industrial fossem aplicadas a sociedades com características completamente diferentes quanto à estrutura, à experiência histórica e à inserção no sistema internacional. O pensamento cepalino iria preencher o “vazio teórico” predominante no subcontinente.

A criação da Cepal, a oposição norte-americana e a afirmação da América Latina

A criação da Cepal sofreu forte oposição dos Estados Unidos e de outros países centrais, que argumentavam que um órgão regional da ONU era desnecessário, pois já existia a União Pan-Americana, antecessora da Organização dos Estados Americanos (OEA). Os norte-americanos não viam por que deveriam financiar uma nova comissão regional quando já existia uma para atender às necessidades da América Latina no pós-guerra. Os Estados Unidos acreditavam que a criação do novo organismo duplicaria o Conselho Econômico e Social da OEA, gerando desperdício de recursos. Diante do impasse, o governo Truman absteve-se da votação que criou a Cepal. Ademais, os EUA somente concordaram com a Cepal como uma experiência de três anos, após os quais seria tomada uma posição definitiva (DOSMAN, 2011; FURTADO, 2013).

Entre 1949 e 1951, Raúl Prebisch publicou três textos fundamentais em que desenhou a agenda de pesquisa e de reflexão teórica da Cepal, que influenciaria decisivamente o debate sobre desenvolvimento nas duas décadas seguintes (FIORI, 2018) (1). Em 1949, na Conferência da Cepal em Havana, Raúl Prebisch apresentou o estudo El desarollo económico de América Latina y algunos de sus principales problemas. O texto, conhecido como o Manifesto da Cepal, foi escrito em linguagem incisiva e em tom de denúncia. Suas ideias conseguiram reexaminar os determinantes da atividade econômica em países em desenvolvimento e representaram um acontecimento único que mudou o vocabulário do desenvolvimento internacional, inaugurando um novo período na América Latina (IDEM. IBIDEM).

Ao introduzir a concepção de centro-periferia e a tese de deterioração dos termos de intercâmbio, esta última elaborada a partir de relatório de Hans Singer, Prebisch estruturou um marco inesquecível para explicar por que o sistema não funcionava no interesse mútuo das nações ricas e das pobres, por que os países desenvolvidos recebiam os maiores lucros e o que devia ser feito para restaurar a igualdade na economia internacional. O Manifesto diagnosticava a existência de uma assimetria inerente ao sistema econômico internacional, a qual precisava ser compreendida para entender a inserção da América Latina no mundo. O documento criou sensação na imprensa latino-americana e consternação entre os representantes oficiais mais graduados dos Estados Unidos e da ONU, que perceberam sua força. 

O triunfo de Prebisch em Havana, entretanto, não afastou as ameaças norte-americanas à Cepal. Na Conferência de Montevidéu, em 1950, o secretariado da comissão apresentou o Decálogo do desenvolvimento econômico, que orientava os governos latino-americanos a assumirem a condução do processo de desenvolvimento. Esse documento sustentava que as condições internacionais vigentes não permitiriam que aquele processo ocorresse de forma espontânea. Surpreendida, a delegação americana ameaçou bloquear o Decálogo, pois defendia que o papel do Estado devia se limitar à criação de um ambiente favorável aos investimentos, admitindo implicitamente a espontaneidade do desenvolvimento e negando a especificidade das economias periféricas. A crise foi superada pelos esforços de Pierre Mendès-France, chefe da delegação francesa e relator da ONU, que ficou impressionado com a originalidade do pensamento cepalino (FURTADO, 2013).

Apesar do aumento do apoio nas Nações Unidas, a sobrevivência da Cepal ainda não podia ser dada como certa por ocasião da quarta sessão, realizada na Cidade do México em 1951. Na ocasião, o governo Truman retomou a manobra para encerrar os trabalhos da comissão, propondo sua fusão com o Conselho Econômico e Social da OEA. No entanto, o plano teve de ser abandonado diante da oposição latino-americana. Naquele momento, cumpre destacar o papel da delegação brasileira, que frustrou os planos estadunidenses ao comunicar que o Brasil se opunha a qualquer resolução que minasse a futura independência da Cepal (DOSMAN, 2011; FURTADO, 2013).

Após a vitória na Conferência do México, a Cepal não só foi confirmada como uma comissão regional permanente da ONU, mas também foi expandida e fortalecida. A Cepal tinha adquirido uma visibilidade desproporcional em relação ao seu tamanho e contava com respeito suficiente para preservar sua independência. Sua pequena equipe tinha consciência de que participava de uma experiência singular, além de gozar de uma autonomia intelectual completa e de um ambiente de pluralismo ideológico. Ademais, o novo órgão representava o único centro de pesquisa econômica independente e dirigido por latino-americanos, uma verdadeira usina de ideias inovadoras para iniciativas necessárias à construção de uma nova América Latina (DOSMAN, 2011).

As principais ideias da Cepal

A primeira década da Cepal (1948-1959) é considerada a mais importante na criação de um pensamento original na América Latina. No campo estritamente acadêmico e teórico, as ideias germinais de Prebisch e Furtado deram origem ao que se chamou de escola estruturalista ou pensamento cepalino. Partindo da crítica à teoria do comércio internacional de David Ricardo, a teoria estruturalista elaborou a sua contribuição mais original, qual seja, a visão sistêmica do desenvolvimento desigual do capitalismo em escala mundial (FIORI, 2018).

A teoria do desenvolvimento de Prebisch e da Cepal consistiu em uma análise do padrão de transformação que ocorria na periferia do sistema capitalista na região latino-americana. Tal processo era visto como distinto da experiência histórica vivida pelos países desenvolvidos, que tinham passado pela Revolução Industrial. A metodologia comparativa entre as economias avançadas e atrasadas buscava identificar e diagnosticar os problemas que impediam a transformação das economias periféricas, e não descrever um processo ideal de evolução. Raúl Prebisch e Celso Furtado recusaram-se a tratar como “anomalia” as especificidades da formação histórica dos países subdesenvolvidos. Assim, o subdesenvolvimento passou a ser analisado como um processo histórico autônomo, que merecia um esforço de teorização específico, e não uma etapa pela qual tivessem passado as economias desenvolvidas (BIELSCHOWSKY, 2000; FURTADO, 2009).

O binômio centro-periferia (2) – empregado para descrever o processo de difusão do progresso técnico na economia mundial e para explicar a distribuição de seus ganhos – constitui-se na categoria fundamental da teoria cepalina. Nos centros, o progresso técnico se difundiu para a totalidade do sistema produtivo, elevando, simultaneamente, a produtividade de todos os setores da economia. Na “periferia”, as técnicas modernas só foram implantadas nos setores exportadores de produtos primários, em contraste com o atraso do restante do sistema produtivo. Assim, em contraste com a estrutura produtiva dos centros, caracterizada pela diversificação e homogeneidade, a da periferia era marcada pela especialização e heterogeneidade (BIELSCHOWSKY, 2000; RODRÍGUEZ, 2009).

Com base nesse diagnóstico, a Cepal elaborou a tese da deterioração dos termos de troca, construída como uma contestação ao princípio clássico das vantagens comparativas de Ricardo. Ao contrário dos benefícios prometidos pelos defensores do livre comércio, observava-se uma tendência constante de declínio dos preços dos produtos primários. Diante dessa realidade, Prebisch (2011) percebeu que as leis de mercado eram incapazes de resolver as grandes falhas nas relações centro-periferia, sobretudo as tendências excludentes do desenvolvimento periférico.

A superação do atraso exigia uma industrialização planejada, capaz de tornar endógeno o desenvolvimento. Para isso, fazia-se necessário fortalecer a capacidade decisória e regulamentadora do Estado, visto como principal coordenador do processo de substituição de importação. Entre os anos 1950 e 1980, o modelo substitutivo foi responsável por elevadas taxas de crescimento e pela transformação da estrutura produtiva da América Latina. O Brasil e o México foram os países mais bem-sucedidos, conseguindo diversificar suas economias e instalar um parque industrial, sendo que somente o Brasil avançou na montagem mais expressiva, conquanto parcial, do setor de bens de capital. Mesmo com limitações, a estratégia de substituição de importações teve um saldo positivo. Como afirma Robert Boyer (2009), contrariamente à interpretação prevalecente nos anos 1990, o esgotamento do modelo não resultou da sua não validade, mas da chegada ao limite dessa estratégia, em decorrência do seu próprio sucesso.

Legado da escola estruturalista

Ao longo de mais de sete décadas, a análise cepalina enfatizou simultaneamente os âmbitos econômico, social e político do desenvolvimento, concebendo esse último como um processo integral. Apesar das mudanças ocorridas em suas proposições, em resposta aos diferentes contextos internacionais, é possível verificar uma coerência em relação ao pensamento cepalino. Se, nos anos 1950, a Cepal denunciou o caráter desigual da relação centro-periferia e colocou desafios não respondíveis à teoria clássica de comércio internacional, nos anos 1990 e 2000, a organização criticou o caráter assimétrico da globalização.

A preocupação social também esteve historicamente presente nos estudos cepalinos. Nos últimos anos, os conceitos de cidadania e coesão social somaram-se à concepção de heterogeneidade estrutural. Com base neles, a Cepal tem defendido a homogeneização do tecido produtivo e a redução das disparidades sociais por meio de políticas públicas universais e de uma rede de proteção social.

O pensamento da Cepal se difundiu de tal forma, tanto na academia quanto nos círculos decisórios, que é possível afirmar que a comissão foi a primeira escola de pensamento latino-americano. A originalidade da análise cepalina permitiu a destruição de dogmas enraizados na região. Ademais, o pensamento cepalino gerou ideologias que motivaram a ação, demonstrando a estreita relação entre teoria e práxis. Assim, a produção teórica da Cepal descortinou uma nova visão do desenvolvimento, contribuindo para a formação da primeira visão coerente do conjunto da América Latina.

* Tiago Nery é doutor em Ciência Política pelo Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IESP-UERJ) e integrante da carreira de Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental (EPPGG) do Estado do Rio de Janeiro.

Notas

(1) Os três ensaios abordam o mesmo tema de forma complementar: a) O desenvolvimento da América Latina e alguns de seus principais problemas (1948), que Albert Hirschman chamou de Manifesto Latino-Americano; b) Estudos econômicos da América Latina (1949); c) Problemas teóricos e práticos do crescimento econômico (1952) (FIORI, 2018).

(2) Raúl Prebisch e a Cepal resgataram o conceito de periferia do senso comum ao lhe conferir um significado muito preciso, associado à dinâmica cíclica da economia mundial e à “deterioração secular dos termos de intercâmbio”, desfavoráveis, em longo prazo, aos países periféricos (FIORI, 2018).


Referências

BIELSCHOWSKY, R. Pensamento Econômico Brasileiro: o ciclo ideológico do desenvolvimentismo. 4ª ed. Rio de Janeiro: Contraponto, 2000.
BOYER, R. Teoria da regulação: os fundamentos. São Paulo: Estação Liberdade, 2009.
BRANDÃO, C. Introdução. In: ______ (org.). Teorias e políticas do desenvolvimento latino-americano. Rio de Janeiro: Contraponto: Centro Internacional Celso Furtado, 2018. p. 7-15.
DOSMAN, E. J. Raul Prebisch (1901-1986): a construção da América Latina e do terceiro mundo. Rio de Janeiro: Contraponto: Centro Internacional Celso Furtado, 2011.
FIORI, J. L. As trajetórias intelectuais do debate sobre desenvolvimento na América Latina. In: BRANDÃO, C. (org.). Teorias e políticas do desenvolvimento latino-americano. Rio de Janeiro: Contraponto: Centro Internacional Celso Furtado, 2018. p. 17-46.
FURTADO, C. A Comissão Econômica para América Latina. In: D’AGUIAR, R. F. (org.). Essencial Celso Furtado. São Paulo: Penguin Classics/ Companhia das Letras, 2013.
______. Desenvolvimento e subdesenvolvimento. Rio de Janeiro: Contraponto: Centro Internacional Celso Furtado, 2009.
PREBISCH, R. A periferia latino-americana no sistema global do capitalismo. In:______. O Manifesto Latino-Americano e outros ensaios. Rio de Janeiro: Contraponto, Centro Internacional Celso Furtado, 2011. p. 635-646.
RODRÍGUEZ, O. O estruturalismo latino-americano. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009.


 

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