Internacional
Edição 155 > Na China emerge uma nova formação econômico-social
Na China emerge uma nova formação econômico-social
A compreensão da China contemporânea representa um desafio em larga escala. O gigante socialista asiático definiu seu caminho próprio de desenvolvimento, fundado num arcabouço teórico que tem o socialismo como objetivo. As inovações no sistema têm levado o país a se projetar como potência econômica e mostrado o socialismo como algo em progresso, incorporando conceitos alinhados com o desenvolvimento da teoria marxista. Esse é o escopo desta densa análise.
Segundo Rangel (1978, p. 73), a “dualidade brasileira”, assim como o “modo de produção asiático” não eram modos fundamentais de produção.
Vejamos:
(...) dado que pode ser estudado como uma formação complexa, que associa no mesmo modo de produção relações de produção de vária etiologia, isto é, não homogêneas. (...) estudar esses modos de produção significava captar “a natureza dessas combinações e, se possível, classificá-las e pôr em evidência as leis que governam seu nascimento e desenvolvimento, seu princípio e seu fim”.
Desta forma, para Rangel (IBIDEM, p. 83):
(...) O Sr. Gorender admite, por certo, que uma mesma formação social pode conter “vários modos de produção” (...), mas parece excluir a possibilidade de que esses múltiplos modos de produção possam coexistir estavelmente (...). Por outro lado, rebela-se contra a sequência histórica dos cinco modos de produção citados. Noutros termos, perde-se o fio de Ariadne da história, que julgávamos haver recebido de Marx, já que os modos de produção não podem ter sua ordem alterada ao acaso, como que o próprio conceito de modo de produção se torna nebuloso, agora que podemos ir inventando novos modos (3).
É valido questionar qual a relação entre uma polêmica ocorrida em 1978 com um “modelo de desenvolvimento” capaz de explicar o intenso processo de crescimento da China? É fato que o processo de desenvolvimento econômico chinês é um dos fenômenos mais impressionantes do mundo em que vivemos. Vejamos: seu crescimento médio do Produto Interno Bruto (PIB) nos últimos 35 anos foi de 9,5% a.a., ao mesmo tempo que a renda per capita no período passou de US$ 250 em 1980 para US$ 9.040 em 2014 (JABBOUR; PAULA, 2018, p. 14). A nossa questão é buscar a essência do fenômeno em sua totalidade, algo mais próximo de se descobrir a gênese do processo em detrimento de um “modelo” explicativo em si.
A polêmica não é o “modelo” e sim o fato de esse processo ocorrer negando a deus ex machina que condiciona o dinamismo econômico à existência de instituições que garantam a primazia da propriedade privada (4). Ao contrário, sua especificidade está – por exemplo – na existência de um Estado que toma a si mesmo o papel tanto “de emprestador de última instância quanto de investidor de primeira instância.” (BURLAMARQUI, 2015, p. 737).
O objetivo deste artigo passa por desenvolver o argumento já trabalhado anteriormente onde demonstramos que (JABBOUR; PAULA, 2018):
Um amplo avanço de setor privado na economia não prescindiu da formação de um novo e poderoso setor estatal, notadamente a partir da década de 1990. Em tese, isso significa que a estrutura de propriedade chinesa ainda é muito diferente de outras partes do mundo. Esse processo reflete-se diretamente em um aumento contínuo, desde a segunda metade da década de 1990, do controle governamental sobre os fluxos da renda nacional: de 13,5% do PIB em 1996 a 37,3% em 2015 (NAUGHTON, 2017, p. 5).
É impactante a tendência crescente de “estatização” sobre a estrutura de propriedade chinesa. Trabalhos recentes (5) mostram a grande diferenciação entre a estrutura de propriedade chinesa em comparação com outras partes do mundo (grandes conglomerados estatais, empresas de capital misto, propriedade dividida por ações). Esse processo reflete-se diretamente em um aumento contínuo, desde a segunda metade da década de 1990, do controle governamental sobre os fluxos da renda nacional: de 13,5% do PIB em 1996 a 37,3% em 2015. Percebe-se, também, na queda do aumento da taxa de investimentos do setor privado (de 34,8% em 2011 para 2,8% em junho de 2016). No mesmo período os investimentos estatais cresceram de 15,2% para 23,5%.
Logo, nosso trabalho buscará demonstrar não somente que o avanço do setor estatal na economia chinesa, acelerado desde 2009, abre condições para concluir que o “modelo chinês” é algo que vai se distanciando – historicamente – de um modelo típico de “capitalismo de Estado”, e mais longe ainda de ser um “capitalismo liberal”. Vamos além: estaríamos (ou, estamos) sendo impelidos a admitir o “socialismo de mercado” não mais como uma mera abstração, e já como uma nova formação econômico-social. A nós esse fenômeno já é fato consumado. Em paralelo, trabalhamos com a hipótese de, como o “modo de produção asiático” e as “dualidades brasileiras”, classificar essa nova formação econômico-social nos marcos de também se tratar de um modo de produção complexo. A grande tarefa, logo, é descobrir, estudar a natureza da combinação que tem no “socialismo de mercado” sua derivação e as lógicas que governam seu desenvolvimento.
Além desta introdução, o artigo se divide em outras cinco seções. Na seção 2, apresentamos a categoria marxista de formação econômico-social como o principal elemento de validação teórica que utilizamos tanto no sentido de compreender o fenômeno chinês quanto para demarcar fronteira com as visões hegemônicas reinantes tanto nos debates sobre a natureza do sistema chinês quanto em relação aos postulados pós-modernos. Na seção 3, iniciamos expondo nossa base de interpretação sobre a natureza do socialismo para, em seguida, expor as evidências que sustentam nossa percepção do “socialismo de mercado” como um modo de produção não fundamental como consequência de se tratar de um modo de produção assentado sob uma formação social complexa, ou seja, uma formação que associa no mesmo modo de produção relações de produção de diferentes épocas históricas. Na seção 4, serão expostas as cinco lógicas gerais da formação histórica e de funcionamento da economia chinesa, descrevendo o processo de desenvolvimento do país, no campo da Economia Política. Na seção 5, buscaremos justificar a necessidade de se construir uma nova teoria econômica (6), capaz de desvendar um processo histórico onde a economia da nova formação econômico-social está sendo desenhada a partir da síntese entre o processo de financeirização, agressividade imperialista, novos paradigmas produtivos e tecnológicos e das novas e superiores formas de planificação sendo gestadas e executadas em larga escala na China. Ao final apresentaremos algumas conclusões.
2. SOBRE O “SOCIALISMO DE MERCADO”: A EPISTEME E OS CRITÉRIOS DE VALIDAÇÃO TEÓRICA
O ponto central de nossa discussão não está em responder se a China é, conforme sua constituição e dirigentes, um Estado socialista ou não, trata-se – no mais generoso juízo de valor – de uma variante asiática de capitalismo de Estado. Nesse tocante, infelizmente, a hegemonia encontra-se na noção para quem o que ocorre na China é uma “restauração capitalista” sob a forma de um “capitalismo de Estado com características chinesas”. Não é de se surpreender que um badalado intelectual marxista como David Harvey, que não somente alça Deng Xiaoping ao mesmo altar neoliberal de Reagan e Thatcher, ainda “constate” que (HARVEY, 1992, p. 121):
A espetacular emergência da China como uma forma econômica global pós-1990 foi uma consequência não intencional do rumo neoliberal no mundo capitalista avançado.
Trata-se de uma observação típica de um esquema pronto, modelar e fotográfico da realidade que guarda muita proximidade com um determinado relativismo pós-moderno em detrimento da objetividade histórica característica de análises baseadas no materialismo histórico (JABBOUR, 2012, p. 78). Abrindo necessário parêntese, em verdade, no campo do debate de ideias, situamo-nos no campo oposto ao dos postulados atualmente hegemônicos das ciências sociais – entre eles o positivismo clássico, que se expressa sob a forma de certo modismo intelectual pós-moderno –, que concebe a teoria social como mera narrativa com propósito moral (FERNANDES, 2000, p. 17). Passam a ser colocadas no centro do processo de construção da subjetividade humana a teoria e a prática do relativismo como fio condutor e norte da teoria do conhecimento (JABBOUR, Ibidem, p. 81).
De nossa parte, contra tanto o modismo intelectual citado quanto qualquer princípio de “neutralidade” na prática científica acreditamos que a objetividade e, consequentemente, a visão de processo histórico ainda são os critérios cruciais de validação teórica.
No concreto, dentro dos marcos epistemológicos acima expostos, se admitimos a China, e seu “socialismo de mercado”, como um modo de produção complexo, para Harvey serve a relação feita por Marx (e perfeitamente compreendida por um marxista radical da estatura de Ignacio Rangel) entre o desenvolvimento das formações geológicas e o processo de desenvolvimento da sociedade, conforme sugerido em carta enviada a Vera Zasulich datada de 16 de fevereiro de 1881 (1881 [1982], p. 118).
A formação arcaica ou primária de nosso mundo contém em si uma série de camadas de diversas idades, na qual uma está sobreposta à outra; da mesma maneira, a formação arcaica da sociedade (la formation archaïque de la société) nos revela uma série de tipos diferentes , marcando épocas progressivas (marquant des époques progressives). A comuna rural russa pertence ao tipo mais recente dessa cadeia. O lavrador possui agora a propriedade privada da casa que habita e do quintal que forma o complemento. Eis aí o primeiro elemento dissolvente da forma arcaica (forme archaïque), desconhecida aos tipos antigos
2.1. A categoria marxista de formação econômico-social como o núcleo basilar de argumentação
Uma tipologia de diagnóstico requer sólidas bases teóricas e conceituais. Logo, nosso principal elemento de validação teórica reside em uma categoria pouco compreendida, redundando – assim – em problemas relacionados a questões próprias de validação teórica, por exemplo. Referimo-nos à categoria de formação econômico-social. O termo “formação econômico-social” é pela primeira vez utilizado nos escritos de Marx no Prefácio à Contribuição à Crítica da Economia Política (1859 [2008], p.48) (7):
Nas suas grandes linhas, os modos de produção asiático, antigo, feudal, e modernamente o burguês, podem ser designados como épocas progressivas da formação econômica e social. As relações de produção burguesas são a última forma antagônica do processo social da produção, antagônica não no sentido de antagonismo individual, mas de um antagonismo que decorre das condições sociais da vida dos indivíduos; mas as forças produtivas que se desenvolvem no seio da sociedade burguesa criam, ao mesmo tempo, as condições materiais para a resolução deste antagonismo. Com esta formação social encerra-se, por isso, a pré-história da sociedade humana.
Para Sereni (1971, [2013] p. 314), é em Lênin que ocorre uma verdadeira “restauração” do sentido da categoria de formação econômico-social. Vejamos:
Trata-se, em suma, por parte destes expoentes máximos do “marxismo da II Internacional”, da total incompreensão (quando não, sem mais, do sistemático rechaço) de uma das categorias fundamentais da marxiana concepção materialista da história; e, quando se considera o fato de que observações semelhantes poderiam ser repetidas à maioria dos outros expoentes deste mesmo “marxismo da II Internacional” – com as duas únicas e significativas exceções, se não estamos errados, de Antonio Labriola e de Franz Mehring –, deixará aparecer melhor a importância central que Lênin dará, desde suas primeiras obras, a esta noção de “formação econômico-social”, assumindo o valor de uma verdadeira restauração, também neste campo, no da teoria e no da prática do marxismo revolucionário, sem mencionar seu posterior aprofundamento.
Segundo Silva (2009, p. 1), a categoria de formação econômico-social teve em Emilio Sereni a sua mais acabada e rica compreensão, citando a seguinte passagem de Sereni (1971 [2013] p. 316):
(...) a noção (...) se coloca inequivocamente no plano da história, que é (...) o da totalidade e unidade de todas as esferas (estruturais, supra estruturais e outras) da vida social na continuidade e ao mesmo tempo na descontinuidade do seu desenvolvimento histórico.
Althusser e Balibar discorrem sobre esta categoria em dois níveis. A primeira é mais próxima de um esboço de construção da uma “teoria do tempo histórico”, como segue (1968 [1970], p. 104) (8):
Theory of historical time that allows to establish the possibility of a history of the different levels considered in their ‘relative’ autonomy”. (...) the form of historical existence peculiar to a social formation arising from a determinate mode of production.
Chegam a uma definição mais clara e coerente da categoria de formação econômico-social como (IDEM. IBIDEM, p. 209):
Totality of instances articulated on the basis of a determinate mode of production (9).
Neste tocante, relacionando as observações de Marx, Althusser, Balibar e Sereni acima expostas com a utilização da categoria de formação econômico-social como instrumento de validação teórica, são pertinentes as palavras de Roberts (2017), do qual, em recente artigo, pode-se ler o seguinte:
I think the majority of Marxist political economists agree with mainstream economics in assuming or accepting that China is. However, I am not one of them. China is not capitalist. Commodity production for profit, based on spontaneous market relations, governs capitalism. The rate of profit determines its investment cycles and generates periodic economic crises. This does not apply in China. In China, public ownership of the means of production and state planning remain dominant and the Communist party’s power base is rooted in public ownership.
O fundo das razões que levam a maioria dos marxistas a se igualar aos economistas vulgares dos nossos tempos (neoclássicos) e assumir posições baseadas em “modelos estáticos”, para os quais a China é um país capitalista, reside no tratamento estático, um “desejo” de classificar e demarcar fenômenos dentro de enquadramentos e categorias aceitos previamente. Hobsbawn (1985, p. 63) é mais agudo ao afirmar:
[...] o desejo de classificar cada sociedade ou período, firmemente, em uma ou outra das categorias aceitas deu como resultado disputas demarcatórias, como é natural quando se insiste em encaixar conceitos dinâmicos dentro de estáticos. Houve, deste modo, muita discussão na China sobre a data de transição da escravidão ao feudalismo [...]. No ocidente, dificuldade semelhante conduziu a debates sobre o caráter dos séculos que vão do XIV ao XVIII.
É exatamente disso que se trata: trocar o estático pelo dinâmico. Perceber que na realidade dos modos de produção devemos seguir a trilha rangeliana de perceber que o grau de complexidade de uma sociedade, onde a sua famosa expressão contemporaneidade do não coetâneo (RANGEL, 1957 [2005], p. 299) (10) é uma regra geral que demanda exercitar a difícil busca apenas do que é essencial, necessário. Para tal, elevar o grau de abstração é essencial, algo que vá além da categoria de modo de produção, intentando encontrar a origem de determinada sociedade. Voltando a Lênin, faz-se mister a utilização de uma categoria capaz de, como Lênin o fez, segundo Sereni (1971, [2013] p. 314):
O que é que a maioria dos “marxistas da II Internacional” havia (...) falseado e que Lênin restaurou, aprofundou e desenvolveu na noção marxiana de “formação econômico-social”? Os materiais mais válidos para responder a indagação nos são oferecidos pelo próprio Lênin, que desde seus primeiros trabalhos – em seu ensaio Quem são os amigos do povo?, escrito e publicado em 1894 – começa a situar de novo não somente a noção, mas também o termo “formação econômico-social” no cerne que Marx lhe havia atribuído como expressão de uma categoria fundamental do materialismo histórico. Sublinhou-se (...) esta categoria expressa a unidade (e, agregaremos, a totalidade) das diferentes esferas: econômica, social, política e cultural da vida de uma sociedade; e a expressa, além disso, na continuidade e ao mesmo tempo na descontinuidade de seu desenvolvimento histórico.
Classificamos a República Popular da China como uma sociedade comandada por uma força política decidida a realizar a transição ao socialismo, o que não redunda – de forma alguma – reconhecer a ordem econômica presente como socialista. Samir Amin (2013, p. 35) nos lembra muito bem que:
Mao described the nature of the revolution carried out in China by its Communist Party as an anti-imperialist/anti-feudal revolution looking toward socialism. Mao never assumed that, after having dealt with imperialism and feudalism, the Chinese people had “constructed” a socialist society. He always characterized this construction as the first phase of the long path to socialism.
Exemplo interessante de análise totalizante pode ser percebido na seguinte passagem, onde Mamigonian (2008, p.190) percebe no “marxismo de Mao Tsé-tung” o nível de consequência que pode proporcionar o bom uso das categorias do materialismo histórico a uma formação social complexa:
Diferentemente do marxismo soviético, herdeiro do marxismo da Europa ocidental, adaptado brilhantemente por Lênin às condições da sociedade russa e à nascente etapa imperialista mundial, o marxismo de Mao, adotando o leninismo, caracterizou-se por uma obsessiva e profunda preocupação pelos destinos da China, que precisava se livrar de qualquer domínio estrangeiro, Inclusive do IC (11), recuperar sua antiga grandeza e para isso retomar o papel crucial dos camponeses na vida chinesa, como Li Dazhao ensinou aos seus discípulos.
Mamigonian (2008, p. 190) completa seu raciocínio da seguinte forma:
A preocupação com o destino da China permitiu: 1) retirar o IC do comando da revolução chinesa (1935), 2) aliança com o Kuomintang para combater a invasão japonesa (1937-1945), tornando o PCCh o principal depositário dos interesses nacionais, 3) a ofensiva militar na guerra civil de 1946-1949 contra o Kuomintang, apoiado pelos EUA, 4) a participação decisiva na Guerra da Coreia (1950-1953),(...), 5) a ruptura da China em relação aos soviéticos (1960), e 6) a aproximação dos EUA (1972), que garantiu a reinserção da China na economia mundial, empreendida sob a liderança de Deng Xiaoping nos anos 1980.
Ao final, voltaremos a este assunto.
3. O “SOCIALISMO DE MERCADO” COMO UMA FORMAÇÃO SOCIAL COMPLEXA
Nenhuma formação social desaparece antes que se desenvolvam todas as forças produtivas que ela contém, e jamais aparecem relações de produção novas e mais altas antes de amadurecerem no seio da própria sociedade antiga as condições materiais para a sua existência. Eis por que a humanidade não se propõe nunca senão os problemas que ela pode resolver, pois, aprofundando a análise, ver-se-á sempre que o próprio problema só se apresenta quando as condições materiais para resolvê-lo existem ou estão em vias de existir. (MARX, Karl, 1859).
A título de informação e demonstração do escopo da proposta deste trabalho, que será explorado neste subitem, algumas informações são necessárias:
1) O conceito “economia socialista de mercado” é oficialmente utilizado pelo governo chinês. Em nossa opinião, não existe contradição entre o conceito exposto e o que podemos definir como “socialismo”. Abrindo nosso campo de abstração, admitimos sermos signatários das primeiras experiências socialistas (12), refutamos o subjetivismo latente em visões que projetam o socialismo como um “retrato em negativo dos aspectos mais nocivos do capitalismo” (13).
2) Temos a compreensão de que o termo “socialismo”, da forma como a empregamos neste trabalho, não nos permite grandes margens de manobra para algum nível de “flexibilidade conceitual”. A razão disto é, sem ser simplista, simples: nosso foco é concentrado no que se relaciona exclusivamente ao domínio (conforme Rangel) dos fatores objetivamente estratégicos.
3) Logo, partindo do que classificamos como “socialismo”, torna-se inadequada a comparação entre nossa concepção com outros conceitos e valores que o senso comum define e associa ao socialismo, entre os quais as lutas por justiça e igualdade, igualitarismo, planejamento (como um fim em si mesmo), liberdade ou a falta dela etc.
4) A natureza da viabilidade do socialismo nos dias de hoje deve ser mais limitada e menos ambiciosa, em comparação à época em que a URSS disputava a vanguarda da humanidade.
5) A nosso juízo, é inevitável a persistência em longo prazo de contradições de múltiplas naturezas nos processos atuais de experiência – e persistência – socialista, principalmente na unidade de análise por nós escolhida (China).
6) Portanto, sejamos mais cuidadosos ao discutirmos o que é “socialismo” ou “não socialismo” (se país “a” é mais socialista que o país “b”), tendo como fundo preceitos morais, existencialistas, o “bem contra o mal”. Enfim, trocar a sedução exercida pelos juízos morais de valor por visões mais concretas, objetivas, históricas e altamente politizadas.
7) Daí nossa opção pela categoria de formação econômico-social como principal elemento de episteme.
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Samir Amin e Armen Mamigonian nos ajudam a deixar mais claro que o sinônimo da percepção do “socialismo de mercado” como um modo de produção não fundamental é assumir, conforme a proposta de Ignacio Rangel, que estamos tratando a unidade de análise como uma formação social complexa.
Assim sendo, o “socialismo de mercado” é uma formação que associa no mesmo modo de produção relações de produção de diferentes épocas históricas em clara unidade de contrários. Não se trata de uma sociedade estruturada no mais alto patamar possível de desenvolvimento humano, ou seja, o socialismo em sua plenitude. Do processo descrito por Amin e Mamigonian até hoje a China percorreu todo um processo histórico que tem nas reformas econômicas iniciadas em 1978 um típico processo que combina continuidade e ruptura (14).
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A questão que se coloca: Qual das estruturas/formações sociais predomina? A resposta demanda a interposição de outras questões: Qual classe e/ou força política detém o controle dos fatores objetivamente estratégicos sejam eles políticos (a força política representativa da classe social que exerce controle do poder do Estado) ou econômicos (a estrutura/formação social que detém o poder real tanto sobre os instrumentos cruciais do processo de acumulação [política de juros, crédito, câmbio e sistema financeiro] quanto na promoção de deslocamento e concentração de seu próprio setor produtivo em indústrias-chave [setores-chave esses que combinam alta produtividade com grandes retornos em escala] e possibilitando ganhos a partir da geração dos efeitos de encadeamento industrial às demais estruturas/formações sociais)? A resposta virá mais abaixo. Mas é sugestiva a seguinte passagem onde, segundo Fan, Morck e Yeung (2011):
The socialist foundation of China’s economic system is the unconditional supremacy of the Chinese Communist Party. Consistent with Marxist-Leninist tradition, the Party directs the law. Regulations, laws, and administrative rulings are applied in accordance with current Party policy. Just as a Party position corresponds directly to each key position in government, a Party hierarchy parallels corporate governance in banks, SOEs, listed non-SOEs, hybrid enterprises, joint ventures, and sufficiently large private businesses. Party cells throughout business enterprises constitute parallel internal accountability systems to those established by enterprises themselves, keeping an enterprise’s Party Secretary and Party Committee up-to-date and able to provide timely advice to its CEO and board. Imported corporate governance regulations, mandating independent directors and the like essentially ignore Party involvement in enterprise governance.
Por outro lado, existe uma grande diferença entre classificar a China como um país capitalista e reconhecer que o capitalismo, seja ele privado ou de Estado, existe no país como uma importante – e poderosa – estrutura/formação social (15). Além de ter sido reconhecida, legitimada e sustentada por leis e regulamentos (NAUGHTON, 2006, p.2), a ampliação de seu escopo de atividades elevou-se, também, a partir de transferências massivas de ativos estatais ao setor ocorridas entre 1994 e 2000, sobretudo em pequenas e médias empresas estatais (JABBOUR; PAULA, 2016, p. 19).
Neste sentido a realização da transição em uma formação social complexa como a chinesa implica reconhecer que a unidade de contrários aludida acima se expressa na convivência das seguintes estruturas/formações sociais (16):
1. Economia natural de subsistência: é a estrutura que, apesar de estar em franca decomposição, ainda concentra toda a população que vive abaixo da linha da pobreza na China. Sua maioria é composta por populações de minorias étnicas. Seu número absoluto é confuso. O próprio governo anuncia as variações neste número que fica entre 30 e 43 milhões de pessoas (17).
2. Pequena produção mercantil: caracterizada pela produção agrícola de pequeno porte (familiar) voltada ao mercado, principalmente nas cidades de porte médio. Porém, é muito comum perceber a existência deste setor na periferia de grandes cidades. Apesar dos avanços em matéria de mecanização da produção agrícola na China, estima-se que 300 milhões de chineses ainda estão ocupados na pequena produção agrícola voltada ao mercado (18).
3. Indústria rural privada e/ou coletiva: uma das características fundamentais do processo de desenvolvimento recente chinês está no caráter rural da grande manufatura expandida na década de 1980. As elevações da renda e da produtividade do trabalho agrícola – e o consequente aumento da demanda por bens industriais – foram fator de deslocamento de mão de obra sobrante não às grandes cidades litorâneas e sim ao próprio entorno, no chamado vilarejo (JABBOUR; DANTAS, 2017, p.794). O principal exemplo desta dinâmica está inserido na transformação da natureza do emprego no país e sua relação direta com o maior poder de decisão econômica às províncias e às empresas, a liberação da mão de obra excedente da agricultura e o fortalecimento das indústrias de caráter rural conhecidas como Townships and Village Enterprises (TVE’s). Atualmente em declínio, teve seu auge entre os anos 1984 e 1997 (JIN, 2017, p. 69).
4. Capitalismo privado: setor criado, guiado e formado sob as asas do Partido Comunista da China (PCCh). A existência desta formação econômico-social na China é motivo de grandes exageros e equívocos sobre seu poder e papel na economia e sociedade chinesa em geral. As privatizações e a abertura de capital de empresas estatais e coletivas a partir de meados dos anos 1990 foram o primeiro movimento massivo de concentração de capital em mãos privadas na China (NOGUEIRA, 2018, p. 7). Apesar de concentrar grande parcela de riqueza, renda e grande poder de barganha junto ao Estado, não se trata de uma classe capaz suficiente para se tornar “classe dominante” como nos países capitalistas.
5. Capitalismo de Estado: Trata-se de uma formação com visíveis contornos nas relações de dependência do capitalismo privado com as políticas executadas pelo Estado, por exemplo, como beneficiária dos efeitos de encadeamento gerados pelas corporações estatais, acesso a crédito em bancos estatais etc.
6. Socialismo: Formação social que define a própria natureza do Estado Nacional chinês. Tendo o Partido Comunista a força política que controla o Estado, que por sua vez detém o controle dos fatores objetivamente estratégicos. Segundo Gabriele (2009, p.17):
State-owned and state-holding enterprises are now less numerous, but much larger, more capital- and knowledge-intensive, more productive and more profitable than in the late 1990s. Contrary to popular belief, especially since the mid-2000s, their performance in terms of efficiency and profitability compares favorably with that of private enterprises. The state-controlled sub-sector constituted by state-holding enterprises, in particular, with at its core the 149 large conglomerates managed by SASAC, is clearly the most advanced component of China’s industry and the one where the bulk of in-house R&D activities take place
3.1. Os elementos de mediação entre as diferentes estruturas/formações sociais
O processo de desenvolvimento não ocorre por impulsos, ou raramente ocorre desta forma (19). Muito menos se trata de um processo de “desenvolvimento equilibrado” como intentava nos mostrar Rosenstein-Rodan e Nurske em suas famosas e pioneiras obras sobre as economias externas e o crescimento equilibrado (20). Ignacio Rangel e Albert Hirschman foram exímios críticos desta concepção. A ambos o processo de desenvolvimento é um processo de saltos não de um ponto de equilíbrio a outro. Ao contrário: a essência do processo de desenvolvimento está justamente no fato de o mesmo ocorrer sob forma de saltos entre pontos de desequilíbrios. Segundo Rangel (1954 [2005], p. 41):
As pessoas podem fazer uma ideia um pouco romântica do desenvolvimento econômico, como se ele fosse um paraíso de estabilidade, bem-estar e paz. É preciso abandonar desde logo essas ilusões. No Brasil, como em todos os países, o desenvolvimento é um processo doloroso, repleto de privações, conflitos e inquietações. Tais inquietações são, ao que parece, uma matéria-prima do desenvolvimento, (...). Uma economia em desenvolvimento não resolve um problema sem criar outro ainda maior. Salta ininterruptamente de um desequilíbrio a outro.
O raciocínio acima desenvolvimento cabe perfeitamente ao processo de desenvolvimento em uma formação social complexa, como já demonstramos mais acima, sobre a China. Diferentes estruturas e formações econômico-sociais representando, cada uma delas, um determinado estágio de desenvolvimento da própria humanidade requerem a existência de elementos de mediação entre as diferentes dinâmicas e respectivos velocidades e movimentos característicos de cada estrutura/formação econômico-social. São eles:
1. Economia natural: em franco processo de decomposição;
2. economia de mercado: onde convive e compete entre si a economia privada de variado tamanho, desde a pequena produção mercantil até a grande produção de escala de tipo capitalista. Porém, diferentemente de outras economias de mercado essencialmente capitalistas, neste mercado predominam os grandes conglomerados empresariais e sistema financeiro estatais, que, por sua vez, podem ser considerados como o coração (os 149 conglomerados empresariais estatais) e a alma (sistema financeiro estatal) da nova formação econômico-social (“socialismo de mercado”);
3. comércio exterior: sob o socialismo, o comércio exterior é uma instituição pública, planificada e de Estado (JABBOUR; DANTAS, 2017, p. 794). É onde predominam relações de novo tipo em relação ao comércio exterior de tipo capitalista. Apesar de a China atuar – por intermédio de seu comércio externo – em um campo de domínio capitalista, a competência de seu planificado contato com o exterior demonstra que o socialismo, ao mesmo tempo que disputa com o capitalismo, tornou-se algo já afirmado com inegável sucesso.
4. A ECONOMIA POLÍTICA DO “SOCIALISMO DE MERCADO”: AS LÓGICAS QUE REGEM SEU MOVIMENTO
Não estamos aqui a negar que a construção teórica que estamos tentando construir é parte de uma crítica ao etapismo que vigorou, e ainda exerce influência, nas elaborações marxistas sobre a transição do capitalismo ao socialismo. Indicar o “socialismo de mercado” como uma nova formação econômico-social não é somente parte de um esforço de desvendar as lógicas que regem a construção do socialismo em formações sociais complexas.
Da mesma forma que Rangel via a dualidade básica tanto como o principal elemento organizativo de seu pensamento quanto como a lei fundamental da economia brasileira (BIELSCHOWSKY, 1988 [1996], p. 211).
Esse mesmo raciocínio vale para a nossa leitura sobre o “socialismo de mercado”; um esforço para compreender a China e descobrir a lei fundamental de seu processo de desenvolvimento. Temos clareza sobre as leis econômicas e sua não universalidade, buscamos adaptar o materialismo histórico às peculiaridades de uma formação social complexa, como a chinesa. Engels (1990, p. 127) resume este aspecto fundamental ao método da Economia Política, como segue:
As condições sob as quais os homens produzem e trocam o que foi produzido variam muito para cada país e, dentro de cada país, de geração para geração. Por isso, a Economia Política não pode ser a mesma para todos os países nem para todas as épocas históricas.
Expostas tais indicações e tendo clareza de estarmos tratando de uma formação social complexa, o passo agora é extrair as lógicas gerais da formação histórica e de funcionamento da economia chinesa, descrevendo o processo de desenvolvimento do país, no campo da economia política. O “socialismo de mercado” é, na verdade, a resposta, quase um “método de análise”, que encontramos a estas e outras questões que vão surgindo. Trata-se de nossa interpretação particular sobre a razão e o significado do desenvolvimento das forças produtivas que transcorrem na China, cuja contrapartida é o poder político exercido pelo PCCh.
Uma justa questão que se coloca: Qual a diferença entre o “socialismo de mercado” e o capitalismo, já que a existência de um largo setor público também pode ocorrer sob o capitalismo? Gabriele e Schettino (2012, p. 32) discorrem sobre as diferenças entre os dois sistemas, como segue:
The State is endowed with a high degree of direct and indirect control of the means of production, and, as a result, social production relations are different from those prevalent in capitalism. This statement implies that, at a lower level of abstraction,a “market socialist” and a capitalist system differ essentially in two key aspects. The first one is that in a market socialist system the role of the State is both quantitatively larger and qualitatively superior, thereby allowing the public sector as a whole to exert an overall strategic control over the country’s development path, especially in crucial areas such as setting the economy-wide rate of the accumulation and determining the speed and direction of technical progress. The second difference is that in a market socialist system, although capitalists endowed with private ownership rights on some means of production do exist, they are not strong enough to constitute a hegemonic and dominant social class, as it happens in “normal” capitalist countries.
Seguindo semelhante linha de raciocínio, o trabalho de Fan, Morck e Yeung (2011) conclui que:
The studies in this volume reveal that China is not copying free market institutions, but trying something substantially different: Market Socialism with Chinese Characteristics is a genuinely unique system. A host of its formal reforms emulate the institutional forms of a market economy, often in painstaking detail. But its heart remains resolutely socialist: strategically placed SOEs, SOE-controlled pyramidal business groups, and ubiquitous Party cells, Party Secretaries, and Party Committees leave Lenin’s “commanding heights” firmly and exclusively under the control of the Chinese Communist Party (CCP), and consign much of the rest to provincial and local Party cadres.
Perceber que na China convivem vários modos históricos de desenvolvimento nos levou a descobrir como as lógicas dos vários modos de produção coetâneos se articulam, auxiliam ou limitam umas às outras. Após 40 anos do início do processo de reforma e abertura na China, já é possível perceber ao menos cinco lógicas de funcionamento, conforme segue abaixo:
1) Logo de imediato, ao assumirmos que a formação social chinesa é uma miríade onde existem diferentes estruturas/formações que assentam diferentes modos de produção e suas devidas lógicas de funcionamento, devemos assumir, como uma lógica de funcionamento, que tais formações não se limitam a coexistir. Coabitam em conflito e exercem pressão – uma sobre a outra – aberta entre si.
Por exemplo, a expansão da economia de mercado pressiona e impõe a tendência ao desaparecimento da economia natural de subsistência; o mesmo ocorre na pressão que a transformação da agricultura em um ramo da indústria exerce sobre a pequena produção mercantil. O mesmo ocorre entre o setor socialista da economia e a capitalista privada, com a última sendo pressionada diante da tendência de cada vez maior centralização da grande produção industrial nos 149 conglomerados empresariais estatais e o já citado processo de aumento contínuo do controle governamental sobre os fluxos da renda nacional.
2) A lei do valor não é passiva de superação sob o “socialismo de mercado” visto como parte do início do processo histórico de construção do socialismo (21). Acreditamos ser essencial essa observação àqueles que, como nós, guardam preocupações sobre os limites da planificação econômica em formações sociais onde pedaços de capitalismo privado não somente estão presentes, como também exercem pressão sobre a formação dominante (socialismo) (22).
3) Em um primeiro momento, identificamos (JABBOUR; DANTAS, 2017) que as reformas econômicas permitiram o surgimento de um largo setor privado ao lado de um preexistente setor estatal. A nós esta coabitação demanda uma contínua reorganização de atividades entre os setores estatal e privado da economia (23). Tal diagnóstico avançou demonstrando que esta contínua reorganização de atividades ocorre mediada pelo surgimento cíclico de instituições que delimitam uma contínua reorganização de atividades entre os setores estatal e privado da economia (JABBOUR; PAULA, 2018) (24).
4) Existe uma regularidade neste processo cíclico de reorganização de atividades entre os dois setores. O crescimento do setor privado não ocorre em detrimento de uma diminuição do papel do Estado. Existe, no concreto, uma recolocação estratégica do Estado. A reação chinesa à crise de 2008 demonstrou que houve um processo de caracterizado pela construção de um Estado que reúne a capacidade tanto para agenciar políticas de socialização do investimento quanto de investidor e emprestador, não prescindiu somente da indução à existência de um setor privado concomitante. Foi além, promovendo deslocamento e concentração de seu próprio setor produtivo em indústrias-chave, que combinam alta produtividade com grandes retornos em escala. Já o setor privado, longe de ser o protagonista do processo, não passa de um setor ancilar das corporações estatais (25).
5) É de compreensão geral o comportamento histórico do capitalismo, e se há algo que pode ser considerado permanente em uma economia capitalista é que períodos de depressão se alternam com períodos de prosperidade. Historicamente foram sendo construídas alternativas de solução a essa instabilidade cíclica. Indica até que alternativas para solucionar tal instabilidade cíclica foram sendo construídas historicamente. No capitalismo pela via dos gastos públicos, e no socialismo o ciclo é enfrentado a partir do planejamento (26) e seus ferramentais e mecanismos. Desta forma, o planejamento – visto como ação humana deliberada em prol da estabilidade – guarda sentido sob forma de uma lógica econômica essencial no “socialismo de mercado” (27).
5. UMA NOVA TEORIA PARA ENTENDER A NOVA FORMAÇÃO ECONÔMICO-SOCIAL?
Fora da história, a economia se reduz à lógica, à dialética e a uma gnoseologia, que tanto são econômicas como físicas ou químicas. Não existe, pois, economia “pura” [...]. A ciência econômica, porém, varia com o modo de produção e este muda ininterruptamente. (...). É admitir que o homem varie em seu ser e em sua consciência segundo a realidade geral, social e telúrica em que surge e cresce. (...). Devemos ser avessos à incorporação acrítica seja de modelos importados (marxistas ou não), seja de modismos acadêmicos. O que importa é como conhecer a sociedade concreta se comporta em sua vida econômica (RANGEL, 1957).
O resultado quase natural da abstração contida neste trabalho pode se resumir da seguinte forma: o “socialismo de mercado” é a nova formação econômico-social que está se desenhando em nossa época atual. Essa “Formação Econômico-Social distinta” ou “Moderno Modo de Produção” (GABRIELLE; SCHETTINO, 2012) que surge e se desenvolve é resultado de uma decisão política do PCCh de promover as chamadas “Quatro Modernizações” (28), inaugurando assim um processo histórico caracterizado – por exemplo – por ciclos de inovações institucionais que resultaram em aumento quantitativo do setor privado e saltos qualitativos do papel do Estado. Empiricamente, desde a década de 1990 foram sendo construídas condições institucionais que permitiram um imenso processo de fusões e aquisições no setor estatal resultando no surgimento de 149 conglomerados empresariais estatais.
Outra complexa transição coordenada pelo Estado pode ser percebida na expansão da base monetária – já na década de 1980 –, criando condições de substituição de um sistema de financiamento baseado no orçamento governamental para outro, mais centrado no crédito estatal, não privado.
Em outro momento, discorremos sobre esse processo, conforme segue (JABBOUR; PAULA, 2018, p. 18):
A China conseguiu atravessar tanto as avalanches políticas internas do final da década de 1980 quanto as vicissitudes de uma época marcada pelo predomínio de concepções neoliberais na economia, construindo instituições que consolidaram opções estratégicas e a superação do “desenvolvimento desigual” e da “tendência à deterioração dos termos de troca”. A construção de um “poderoso Estado socialista”, baseado em imensos conglomerados empresariais estatais e um bem capilarizado sistema público de financiamento de longo prazo, não prescindiu de controles sobre o fluxo de capitais que capacitaram o Estado a isolar a política monetária dos fluxos de capitais externos, aumentando a margem de manobra para adoção de políticas econômicas autônomas em relação as condições financeiras internacionais. Um mix de políticas monetárias e fiscais flexíveis com políticas industriais e setoriais cirúrgicas e ciclos contínuos de substituição de importações conformou a transformação do país em “fábrica do mundo”.
Se Ignacio Rangel e, consequentemente, a epígrafe que abre esta seção estiverem corretos, estamos diante de um processo histórico que exige daqueles comprometidos com a ciência voltada a entender e transformar a realidade e construção, a partir da Economia Política, um acervo teórico que nos instrumentalize no sentido de entender essa nova formação econômico-social. Afinal, conforme a epígrafe, A ciência econômica, porém, varia com o modo de produção e este muda ininterruptamente. Abrindo parêntese, nesse sentido uma das explicações para a ossificação do marxismo no século passado foi a falta de uma teoria para entender qual economia o processo histórico estava desenhando no século XX, a partir do capital financeiro, do keynesianismo e da planificação soviética.
Sem proselitismos de qualquer tipo, confessamos nosso inconformismo com as teorias e interpretações correntes sobre a China (29). Não estamos a fechar os olhos às contradições e tensões (imensa desigualdade social e regional, por exemplo) geradas por este processo. A diferença é que enquanto as contradições daquele gigantesco processo são utilizadas como argumento do senso comum, que une a grande maioria dos marxistas aos neoclássicos, que classifica a China como um país capitalista, nós acreditamos que uma das características deste “socialismo de mercado” reside justamente na capacidade que os competentes sucessores de Mao Tsé-tung têm demonstrado de enfrentar essa gama de contradições. Caso contrário, como explicar quase 40 anos de crescimento ininterrupto? Qual país capitalista do mundo tem a capacidade demonstrada pelo Estado chinês de praticar políticas de “socialização do investimento” em um patamar jamais imaginado pelo próprio Keynes?
O “socialismo de mercado” é um modo de produção que está surgindo na China. De forma simplificada, seu objetivo é produzir, como é universal em qualquer modo de produção, valor de uso (30). Porém, regulado de forma consciente e racional e que tem no planejamento seu principal meio auxiliar. É justamente na possibilidade de planificar a produção que reside uma das diferenças em relação ao capitalismo, onde a produção de valores de uso é regulada pelo mercado através do valor, seja ele explicado pelo trabalho, para os clássicos, ou pela utilidade marginal, para os neoclássicos.
5.1. Um mundo em rápida transformação
Essa nova formação econômico-social que assenta o “socialismo de mercado” se desenvolve em um mundo caracterizado pelo cruzamento entre a financeirização como dinâmica de acumulação hegemônica e a dificuldade de se encontrar uma saída da grande crise do sistema iniciada em 2007-2008, criando uma situação de cada vez maior contestação à ordem criada pós-fim do Acordo de Bretton Woods. A ordem unipolar surgida com o fim da Guerra Fria – na qual o vértice do poder mundial são os Estados Unidos – também entra num processo de declínio tendendo à multipolarização. Tal situação vem plasmando um sistema de poder mundial em transição, com o advento de novos polos de poder que surgem da periferia do sistema internacional, fora do centro capitalista-imperialista mundial. Ainda no campo da análise geopolítica, Rabelo (2017) chama a atenção à existência de uma ordem onde o “velho” ainda guarda hegemonia e força:
Nesse quadro de profundas alterações na ordem mundial – com a dominância neoliberal e novas formas de submissão neocolonial –, a ação imperialista, com seus empreendimentos combinados, impõe um poderoso domínio estrutural que os países da periferia do sistema mundial não conseguem atingir e muito menos suplantar. Mesmo o ciclo progressista na América Latina, iniciado em fins de 1990, não tem ameaçado esse domínio estrutural.
Transformações revolucionárias estão ocorrendo no campo da esfera produtiva com o processo de espraiamento/surgimento de novos paradigmas tecnológicos, processo este comumente chamado de 4ª Revolução Industrial, criando um novo padrão de manufatura com impactos sobre o mundo ainda inimagináveis (31). Segundo Coutinho (2018):
A indústria do futuro fará parte dessa imensa rede digital global em processo de formação. A automação industrial será articulada pela internet englobando todas as cadeias produtivas desde o suprimento de matérias-primas, insumos, partes e subconjuntos, passando pelos processos de manufatura, distribuição, comercialização e chegando até os consumidores. A possibilidade de virtualizar, on-line ou em tempo real, o funcionamento de cadeias inteiras, através de sistemas avançados de computação, permitirá otimizar significativamente a eficiência e a produtividade. (...). Este novo padrão de manufatura conectada e inteligente também usufruirá de notáveis avanços na robótica e na chamada manufatura aditiva (impressão em 3D).
As máquinas, equipamentos, robots, impressoras 3D ganharão capacitações cognitivas próprias, com base nos avanços da Inteligência Artificial (IA).
Com efeito, a digitalização conectada das redes de produção propiciará a acumulação de dados em grande escala (a chamada Big Data).
Desta forma, estamos diante de um processo histórico onde a economia da nova formação econômico-social está sendo desenhada a partir da síntese entre o processo de financeirização, agressividade imperialista, novos paradigmas produtivos e tecnológicos (abrindo amplos desafios e possibilidades à planificação) e das novas e superiores formas de planificação sendo gestadas e executadas em larga escala na China.
5.2. Ponto de partida e interessantes aproximações
Está evidenciado que estamos vivendo um momento de rápidas transformações no mundo. Transformações suficientes para afirmarmos que a junção entre o “socialismo de mercado” com as profundas mudanças na esfera da produção nos demanda a construção de uma nova teoria econômica cujo objetivo seria o de entender esse grau de complexidade que marca a era em que vivemos.
O ponto de partida é o materialismo histórico de Marx e Engels acrescido de todo acervo teórico já existente elaborado ao longo do tempo pelo campo da heterodoxia econômica, desde os clássicos da Economia Política (Smith e Ricardo), passando pelo institucionalismo de Veblen, os “pioneiros do desenvolvimento” (Albert Hirschman, Gunnar Myrdal, Raúl Prebisch, Alexander Gerschenkron etc.), pelas contribuições de dois economistas burgueses nada vulgares (Keynes e Schumpeter). Não se trata de uma, como pode parecer, construção teórica de tipo eclética. Trata-se de um reconhecimento da historicidade das leis da ciência (32). Ou seja, o avesso ao dogmatismo. Uma postura de mente aberta a diferentes abordagens criadas ao longo do tempo. Ou, conforme Hansen (1953, p. 3):
It is safe to say that any economic doctrine long accepted by any considerable group of competent economists was never wholly without merit. Though later discarded, such doctrines often afforded as a first approximation significant insights into the functioning of the economic system.
A unidade de análise é o processo em curso na China. A construção de uma teoria em consonância com as especificidades de uma formação social complexa nos impõe a necessidade de flexibilidade intelectual sob forma de uma apropriação particular das teorias que por serem históricas definem o comportamento da realidade em certas circunstâncias e valem apenas enquanto elas perdurarem (RANGEL, 1957 [2005], p. 287). Não existe, portanto, “economia pura” baseada em leis universais a aplicáveis somente ao tratamento de certos tipos de fenômenos, conforme Marshall (1885, p. 129):
But, while attributing this high and transcendent universality to the central scheme of economic reasoning, we may not assign any universality to economic dogmas. For that part of economic doctrine, which alone can claim universality, has no dogmas. It is not a body of concrete&