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Edição 154 > O fazer da própria história sob circunstâncias dadas: Marx, Engels e o materialismo histórico (parte 1)
O fazer da própria história sob circunstâncias dadas: Marx, Engels e o materialismo histórico (parte 1)
A revista Princípios publica nesta edição a primeira parte do artigo em que o historiador Diorge Konrad faz uma reflexão sobre a contribuição de Marx para uma concepção materialista e revolucionária de História. Nesta primeira parte, o autor discute a História como ciência materialista. Na próxima edição, o professor da UFSM aborda a questão da Totalidade e das Leis da História
“Não existe essa de visitar o passado como homenagem a um tempo melhor. Visitamo-lo para nos reconhecer e para reconhecer valores que dão alento ao presente e que pode dar-nos as chaves para mudá-lo.”
(Eduardo Galeano).
É inegável, hoje, nos 200 anos de nascimento de Karl Marx, que o modo de produção capitalista vive um momento de crise de acumulação, com diminuição de suas taxas de lucro, não resolvida pela sua reestruturação produtiva atual, muito menos com suas políticas “neoliberais” e suas teorias pós-estruturalistas das ciências. Porém, desde o século XIX, quando o “mouro”, o maior intelectual revolucionário, juntando-se com seu parceiro de lutas e elaborações, Friedrich Engels, criou as bases do materialismo histórico, ficamos sabendo que toda crise na História (1), seja teórica, seja real, sempre foi e só pode ser solucionada a partir de seu enfrentamento.
Assim, não é sem sentido que Marx e Engels continuem tão atuais, ao terem lançado os princípios básicos da concepção materialista da História com A ideologia alemã (1845-1846), os pressupostos políticos essenciais de superação do capitalismo com O Manifesto do Partido Comunista (1848) e, no caso do primeiro, ao terem exposto os fundamentos do capitalismo em O Capital (cuja primeira edição veio a público em 1867).
Estes dois gênios da práxis revolucionária souberam fazer a síntese materialista e dialética do melhor que o conhecimento produzira até então, incorporando, criticando e negando as fontes da filosofia clássica alemã (de Georg Wilhelm Friedrich Hegel e Ludwig Andreas Feuerbach), do socialismo utópico francês (Charles Fourier, Claude-Henri de Rouvroy – o Conde de Saint-Simon e Pierre-Joseph Proudhon) e da economia clássica inglesa (Adam Smith e David Ricardo). Com isto, deram ao proletariado as principais partes do marxismo para a necessária e atual crítica da crítica crítica ao mundo do capital, através do método do materialismo dialético e histórico, da doutrina da luta de classes pelo socialismo e da crítica à economia burguesa com a teoria da mais-valia (2).
Marx e Engels fizeram mais do que isto porque também foram os escolhidos pelo movimento operário para a redação do Manifesto do Partido Comunista, editado em 1848. O Manifesto foi a carta magna da consciência coletiva da classe explorada pelo Capital (3), consubstanciada na consigna final “Proletários do mundo, uni-vos!” e na compreensão dos comunistas como vanguarda histórica desta classe, porque as “proposições teóricas dos comunistas não repousam de modo nenhum em ideias, em princípios, que foram inventados ou descobertos por este ou por aquele melhorador do mundo”, sendo “expressões gerais de relações efetivas de uma luta de classes que existe, de um movimento histórico que se processa diante dos nossos olhos.” (4).
Neste artigo, porém, será desenvolvida apenas uma reflexão atual sobre a contribuição de Marx (indistintamente com Engels) e do marxismo para os historiadores e para uma concepção materialista e revolucionária de História.
1. História como Ciência Materialista
“As condições de estabelecimento da cientificidade não estão restritas a uma mera questão de método, elas são dependentes do caráter classista da investigação.”
(Paulo Silveira).
Marc Bloch, um grande historiador francês, mesmo que não marxista, questionou a máxima de que a História é a ciência do passado, com o argumento de que o passado como tal, enquanto objeto de pesquisa, é uma ideia absurda, ou seja, é a partir disso que a História é a ciência dos homens no tempo (5).
A partir de Bloch, um dos fundadores da Escola de Annales em 1929, até outro historiador francês, Paul Veyne, muita coisa se produziu na historiografia. No caso deste último, a negação da História como ciência através da suposta máxima de que “o homem se compreende e não se explica, que dele não pode haver ciência (...), a história não é essa ciência e nunca a será; se ela souber ser ousada tem possibilidades de renovação indefinida, mas numa outra direção.” (6).
A passagem de Veyne, uma das negativas mais contemporâneas da História como ciência, no caminho do agnosticismo e relativismo, é própria dos tempos atuais de acumulação flexível e rentista do capital. Porém, a História, como processo real e como ciência social, sempre uma ciência em desenvolvimento (7), resiste, evitando “a dupla tentação suicida” da “diluição entre as outras ciências sociais” e a “velha história positivista do século XIX”, através da “superação do empirismo e do rearmamento científico”, permanecendo “uma ciência em construção, à imagem da nossa sociedade, da qual é indissociável”, como fundamentou François Dosse (8).
Dessa forma, como argumentou Marx nas Teses sobre Feuerbach, “a questão de saber se ao pensamento humano pertence a verdade objetiva não é uma questão de teoria, mas uma questão prática”, pois “é na práxis que o ser humano tem de comprovar a verdade, isto é, a realidade e o poder, o caráter terreno do seu pensamento”, haja vista que “a disputa sobre a realidade ou não realidade de um pensamento que isola da práxis é uma questão puramente escolástica.”. Por isto, Marx defendeu que os filósofos vinham apenas interpretando o mundo de maneiras diferentes, mas a questão fundamental era “transformá-lo”, sendo o ponto de vista do novo materialismo a “sociedade humana, ou a humanidade socializada” (9).
A partir dessa assertiva de classe, o proletariado – diferentemente da burguesia que alcançou o poder sem uma clara compreensão do seu próprio processo histórico – cada vez mais necessitou ter um conhecimento objetivo da realidade, na qual o antagonismo de classe adquire a forma de um conflito político (10), tanto sob o aspecto estrutural como conjuntural, tanto pela luta das ideias, como pela luta política, derivando daí a sua prática revolucionária consequente, pois, como complementou Lênin, “numa sociedade fundamentada na luta de classes não pode haver ciência social imparcial.” (11).
Assim, o conhecimento histórico não tem caráter apenas de mediação, nem é retomada de experiências passadas no presente, visto que deriva dos interesses de classe em determinado período, com o objetivo de intervenção no processo histórico em desenvolvimento. Por isto, não basta estabelecer critérios e parâmetros de compreensão da sociedade, a visão de mundo sempre existe mesmo que não se queira, não é dirigida apenas para compreender o passado, mas para manter ou transformar o presente.
Em termos teórico-metodológicos, isso significa romper com o historicismo e transpor as “filosofias da história”, utilizando a abstração como instrumento científico, oriundo da constante e infinita submissão diante da prova do processo histórico real e concretamente multideterminado pela totalidade histórica. Assim, surgirá o conhecimento histórico, tendo a práxis como fundamento, pois “o conhecimento é o conhecimento de um mundo criado pelo homem, isto é, inexistente fora da História, da sociedade” (12), o conhecimento “é o ser real da coisa exterior na fase de seu processo de formação na atividade do sujeito, como imagem interior.” (13).
Como neste início do século XXI, há cerca de cem anos, coincidentemente, vivia-se uma crise de desenvolvimento do capitalismo. Foi naquela conjuntura que Lênin escreveu, em 23 de dezembro de 1910, o artigo Acerca de algumas particularidades do desenvolvimento histórico do marxismo. Defendendo a máxima engelsiana de que a teoria marxista não seria um dogma, mas um guia para a ação, sublinhando que, se este aspecto for perdido de vista pelos marxistas, o mesmo se tornaria “unilateral, disforme e morto”, se forem minadas as “suas bases teóricas fundamentais”, ou seja, “a dialética, a doutrina do desenvolvimento histórico multiforme e pleno de contradições”, e se minada “a sua ligação com as tarefas práticas definidas de época, que podem modificar-se a cada nova viragem da História.” (14). Era um desdobramento do que veio antes em Materialismo e empiriocriticismo, elaborado em 1909, quando Lênin respondeu àqueles teóricos que buscavam demonstrar a impossibilidade de se chegar a um conhecimento da realidade objetiva através de uma perspectiva científica, quando questionavam as leis da História e a possibilidade de cognoscibilidade teórica das sociedades e da natureza.
Engels já alertara, no Anti-Dühring (1877), que os princípios dogmáticos na História e o pensamento de que a ciência tem objetivos estanques levam a uma posição metafísica sobre a realidade social. Ali, Engels nos ensinou que “os esquemas lógicos só podem referir-se a formas conceituais, e, aqui, trata-se apenas das formas do que existe, do mundo exterior, formas que jamais o pensamento pode derivar de si mesmo, mas que deve buscar no mundo exterior.” (15). Por isto, como sempre, a prática histórica é o critério da verdade.
Ciro Cardoso e Hector Brignoli consideram que “a exposição teórica abstrata só pode receber sua confirmação, seus argumentos, seus exemplos através da referência constante a sociedades concretas, historicamente situadas no tempo e no espaço.” (16). Tudo isto nos foi legado por Marx e Engels e a concepção materialista e dialética da História.
A partir destas considerações, pode-se afirmar que a ruptura entre o processo histórico e as teorias, reificando-as ou separando uma da outra, não pode ser um sinal de desenvolvimento da ciência, mas um grande retrocesso a paradigmas tradicionais e idealistas do século XIX, anteriores ao marxismo, ou até mesmo pré-hegelianos.
Isto não significa abster-se diante do desafio atual sobre as “novas particularidades do desenvolvimento do marxismo”. As crises teóricas atuais, inclusive do marxismo, são da mesma natureza das crises mais profundas das sociedades, mais precisamente do desenvolvimento do modo de produção capitalista e do confronto com as experiências socialistas do século XX.
Usando a metáfora de Marx, se “a tradição de todas as gerações mortas pesa sobre o cérebro dos vivos como um pesadelo”, numa época de crise revolucionária como a vivida neste início de século XXI, não se pode buscar auxílio nos espíritos do passado, tomando-lhes emprestado seus nomes, as suas palavras de ordem, a sua roupagem, para com este disfarce de velhice vulnerável representar uma nova cena na História (17).
Assim, se Marc Bloch argumentou que a História é a ciência dos homens no tempo, ainda se tem pouco. Tal concepção não recupera a amplitude que pode ter o conceito de História enquanto ciência. Acrescenta-se que História é a ciência dos processos sociais concretos através das relações e lutas das classes sociais em cada período estrutural pela qual passam.
Perry Anderson, seguindo a tradição de Marx e Engels, adverte que o passado não pode ser alterado mediante qualquer prática presente, mas sim que “seus eventos são sempre reinterpretados e suas épocas redescobertas por gerações posteriores”, pois “em qualquer abordagem materialista séria” o passado não pode ser modificado. (18). Já Michael Löwy complementa que “os problemas sociais são o palco de objetivos antagônicos das diferentes classes e grupos sociais”, haja vista que “cada classe considera e interpreta o passado e o presente, as relações de produção e as instituições políticas, os conflitos socioeconômicos e as crises culturais em função de sua experiência, de sua vivência, de sua situação social (19).
Assim, História é ciência para o marxismo não só porque possui um método, mas porque seu método expressa a própria teoria da realidade como totalidade concreta, como indica Karel Kosik (20).
* Diorge Alceno Konrad é professor Associado do Departamento e do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), doutor em História Social do Trabalho pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Endereço Eletrônico:
Notas(1) Neste artigo, o conceito de História (com H maiúsculo) refere-se ao processo histórico totalizado da práxis, no qual não há separação entre a teoria da História, de um lado, e o desenvolvimento histórico, de outro.
(2) Sobre isto, ver de Lênin: As três fontes e as três partes constitutivas do marxismo. In: LÊNIN, Vladimir I. Obras escolhidas. Vol. 1. 3ª ed. São Paulo: Alfa-Ômega, 1986, p. 35-39.
(3) Ver esta passagem em KONRAD, Diorge Alceno. Classe e consciência de classe: as peculiaridades de Karl Marx e Edward P. Thompson na teoria e na historiografia. In: Anais Eletrônicos XIII Encontro Estadual de História. Santa Cruz do Sul: ANPUH-RS/UNISC, 2016. Texto completo disponível em: . Acesso em: 3 de jun. 2018.
(4) Cf. MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Manifesto do Partido Comunista. In: MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Obras escolhidas, vol. I. Lisboa: Avante, Moscou: Progresso, 1982, p. 118.
(5) BLOCH, Marc. Introdução à história. 4ª ed. Lisboa: Publicações Europa-América, [s/d.], p. 25 a 29.
(6) VEYNE, Paul. Como se escreve a história. Lisboa: Edições 70, 1971, p. 9.
(7) CARDOSO, Ciro F. S.; BRIGNOLI, Hector Pérez. Os métodos da história. 4ª ed. Rio de Janeiro: Graal, 1983, p. 39.
(8) DOSSE, François. A história em migalhas. Dos Annales à Nova História. São Paulo/Campinas: Ensaio/Unicamp, 1992, p. 16-17.
(9) Itálicos do autor. In: MARX, Karl; ENGELS, Friedrich, op. cit., 1982, p. 1-3.
(10) Ver sobre isto: COHEN, Gerald A. A teoria da história de Karl Marx: uma defesa. Campinas (SP): Unicamp, 2013, p. 167.
(11) Cf. LÊNIN, V. I. Materialismo e empiriocriticismo. Moscou: Progresso, 1982.
(12) VÁSQUEZ, Adolfo Sánchez. Filosofia da práxis. 3ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986, p. 152.
(13) CARDOSO, Ciro F. S. Uma introdução à história. 7ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1988, p. 5.
(14) Disponível em: . Acesso em: 26 mai. 2018.
(15) Disponível em: . Acesso em: 26 mai. 2018.
(16) Op. cit., p. 446.
(17) Cf. O 18 de Brumário de Louis Bonaparte. In: MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. vol. I, 1982, op. cit. p. 417.
(18) Ver Modernidade e revolução. In: Novos Estudos CEBRAP, n. 14, fev. 1986, p. 152.
(19) Ver: As aventuras de Karl Marx contra o Barão de Münchausen. Marxismo e positivismo na sociologia do conhecimento. 2ª ed. São Paulo: Busca Vida, 1987, p. 152.
(20) Cf. KOSIK, Karel. Dialética do concreto. 5ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989.