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Edição 154 > Capitalismo não agoniza, se transformou
Capitalismo não agoniza, se transformou
Durante o seminário Bicentenário de Karl Marx: Desbravar um mundo novo no século XXI, o economista Frederico Mazzucchelli participou da Mesa Análise marxista das crises do capitalismo e da ordem do sistema internacional. No evento, ele defendeu a atualidade do pensamento do revolucionário alemão
Reportagem da conferência de Frederico Mazzucchelli
Na avaliação do economista – que foi por trinta anos professor do Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e tem diversos livros publicados –, o capitalismo discutido por Marx não está em colapso, permanece vivo, embora transformado pelo peso das finanças e pela nova reordenação produtiva mundial. E o socialismo, alertou, tampouco é algo inevitável, mas um ideal a ser perseguido.
Mazzucchelli centrou a sua fala nas formulações de Marx sobre o capitalismo, tendo como base as obras O Capital e os Grundrisse. O economista recordou que, em meados do século XIX, o teórico alemão debruçou-se sobre um objeto já constituído, o regime do capital. Nesse sentido, teve a sorte de ter vivido na Inglaterra, local em que o capitalismo estava em sua forma mais avançada na época.
“Marx parte desse objeto constituído [o capitalismo] e faz uma reconstituição lógica para compreender esse sistema. Ele parte de uma coisa muito simples, que é a mercadoria, depois vai para o dinheiro. É um processo de abstração que ele vai fazer para chegar às fórmulas mais elementares, mais simples, e, através do seu desenvolvimento, alcançar uma progressiva apropriação cognitiva do real. Ele começa a estudar as conexões internas do capital, o desenvolvimento das forças produtivas. E estabelece, no primeiro volume [de O Capital], aquela que seria a Lei Geral da Acumulação Capitalista”, resgatou Mazzucchelli.
Ele destacou que o conceito de capital, grande âncora da exposição marxista, “é valor que se valoriza através da apropriação do trabalho não pago. E, mais ainda, no processo de desenvolvimento das formas mais abstratas”, uma construção que culmina com o capital a juros, quando o dinheiro passa a ter o “dom natural de se multiplicar”. Assim como a pereira dá peras, o dinheiro dá juros, comparou.
Segundo o economista, Marx fez uma crítica devastadora da economia política clássica, alheia ao fato de que, por detrás do dinheiro dando mais dinheiro, existem sempre conexões internas, sociais, que possibilitam que isso ocorra.
“A grande luz que se vê na análise do Marx é a forma como ele desvenda a compreensão banal que a economia política clássica tinha da realidade capitalista. Isso vai na análise do fetichismo, o fetichismo da mercadoria que se converte no fetichismo do capital e do dinheiro, enquanto as conexões sociais vão sendo ofuscadas pelas formas de apresentação do capital”, disse.
“O capital é revolucionário”
Partindo do conceito do capital como um “valor que se valoriza”, Marx captou o caráter revolucionário do capitalismo, defendeu Mazzucchelli.
“Revolucionário em que sentido? Ele destrói as formas pretéritas de produção e leva ao limite o desenvolvimento das forças produtivas. O capital é por definição revolucionário. Ele jamais trata um modo de ser, um modo de produzir, como algo dado eterno e perene. E, ao se apropriar da ciência, leva ao paroxismo a capacidade de produzir uma infinidade de coisas”, afirmou.
O conferencista citou o conceito de destruição criadora do economista e cientista político Joseph Schumpeter. “Pois bem, o Schumpeter segue literalmente aquilo que o Marx falou sobre o caráter revolucionário do capital (...), um caráter que rompe com a idolatria da natureza, destrói a mesquinhez dos sistemas anteriores.”.
De acordo com ele, trata-se de algo que já estava posto no Manifesto Comunista. “As revoluções industriais estão aí para mostrar [esse caráter revolucionário do capital]”, apontou.
Ele mencionou que, na primeira revolução industrial, centrada na Inglaterra, a destreza saiu das mãos do homem para as máquinas, o que multiplicou a produtividade do trabalho; na segunda, no final do século 19, início do século 20, EUA e Alemanha se desenvolveram com base em um novo paradigma dentro da indústria química, farmacêutica, de petróleo e aço; na terceira, incorpora-se o uso de tecnologias avançadas ao sistema de produção industrial; e, na quarta, a nanotecnologia.
“Tudo isso o que é? É fruto do capital”, resumiu. De acordo com ele, contudo, cada etapa de desenvolvimento tem implicado cada vez mais a redundância da mão de obra humana. “Você joga o trabalho fora e aumenta ilimitadamente a potência da produção com esse processo permanente de inovação”, colocou.
A internacionalização do capital
Segundo Mazzucchelli, conexa a esse caráter revolucionário está a internacionalização do capital. “O capital se expande porque é valor louco, ele é valor ensandecido. Ele revoluciona. Aumenta a produtividade e abarca todas a regiões do globo. Faz parte da natureza do capital”, enfatizou.
O economista se contrapôs então a Rosa Luxemburgo, segundo a qual o imperialismo seria consequência da busca de mercado consumidor por parte dos grandes conglomerados capitalistas, uma vez esgotadas as possibilidades internas de realização. Os principais países capitalistas então levariam, naturalmente, seus produtos industriais a praças pouco exploradas.
“Não é como dizia Rosa Luxemburgo: ‘ele [o capital] não consegue realizar mais ali, então vai para fora.’. Não, disse Lênin, ele vai para fora porque ele é assim, porque é poderoso, abarca a totalidade das regiões do planeta. E submete essas regiões do planeta ao seu desiderato: que é valorizar o valor, é se expandir.”
Nesse sentido, o economista defendeu que o caráter internacional do capital está posto em seu próprio conceito. “Aí está o negócio de Marx. Ele monta um conceito que, quando você olha, realmente está dando conta do que está acontecendo.”
O conferencista acrescentou que, para que se desenvolvam as forças produtivas, para que se expanda a capacidade de produção, é fundamental aliciar recursos que estão dispersos no sistema. “Daí a relevância do sistema de crédito na mobilização do capital”, disse.
Ele lembrou que Marx assinala que a acumulação seria impensável sem a interposição do sistema de crédito, que é vital para ampliar as escalas de produção, para concentrar capital. “A tendência à concentração e à centralização está posta já na discussão no primeiro livro de O Capital e conexa à interposição do sistema de crédito”, indicou.
De acordo com o economista, já em O Capital está posta a questão da oligarquia, de que são poucos os que controlam os grandes fluxos de capital. “A isso dá-se o nome de centralização. E a interposição do sistema bancário é central nisso. Quem diz é Marx e é completamente atual”, avaliou.
Um regime fundado na exploração
Mazzucchelli ressaltou que, se, por um lado, Marx “endossou” as realizações do capitalismo – a exemplo de sua capacidade de desenvolver a ciência e colocá-la a seu dispor –, por outro, ele apontou que o regime do capital faz isso por meio da apropriação do trabalho não pago, da exploração.
“Então o capitalismo faz tudo isso se contrapondo de modo hostil e antagônico ao trabalho. O capitalismo se funda no trabalho, mas despreza o trabalho. É o regime calcado na exploração. Do mesmo modo que ele se funda na apropriação do trabalho, ele nega o trabalho. Ele torna o trabalho redundante para fins da produção e cria e recria um exército de reserva. Ele [Marx] chega a falar da pauperização crescente”, colocou.
Valores liberais
O economista fez referência ao livro O capital e suas metamorfoses, do professor da Unicamp Luiz Gonzaga Belluzzo, elogiando o fato de mostrar como Marx destrói os mitos criados pelo próprio regime do capital, pela própria ideologia burguesa.
“Nos pórticos da modernidade, se proclamava a autonomia do sujeito: é o iluminismo. Ele vai mostrar que, ao invés da autonomia do sujeito, o que se tem é a mutilação do indivíduo. O capitalismo prometeu, mas não cumpriu. Os ideais que estão escritos na Revolução Francesa – liberdade, igualdade e fraternidade – foram apropriados pelo capital, mas o capital produz o contrário disso”, declarou.
Segundo Mazzucchelli, ao invés da liberdade, o que há é a “ficção jurídica” de que o trabalhador é livre, pois, na verdade, ele não tem nada, a não ser a sua força de trabalho. Nesse sentido, não existiria portanto liberdade. Tampouco há igualdade, uma vez que a renda está cada vez mais concentrada. E fraternidade “jamais”, porque no próprio conceito de capital estariam postas a ideia de antagonismos e a disputa ferrenha entre empresas e entre países pelos espaços de valorização. “É um jogo, como diz o Belluzzo, de promessas e negações. Você promete, só que você não cumpre”, afirmou.
Para ele, a “fórmula salário”, por um lado, dá a impressão de haver um contrato de iguais. “Aqui não é feudalismo, não é escravismo. Eu sou livre. Eu te contrato, você é livre. Então é um contrato de livres. Só que não são iguais, isso é uma aparência de igualdade. Isso Marx já coloca desde o início.”.
Por outro lado, o capitalismo, por definição, exacerba o individualismo e faz da destruição dos nexos de solidariedade um produto permanente. Portanto, não tem sentido exaltar a fraternidade como um valor do regime do capital.
“Você tem a mutilação do indivíduo e pessoas que nem são mais desempregadas, são excluídas. E, se você quiser avançar ainda mais, o capital destrói tudo, inclusive a natureza. Essa é uma discussão importante da economia. O capital produz e reproduz miséria e exploração. Ou por acaso as cenas de gente atravessando e se afogando no Mediterrâneo são o quê? Quem é que está produzindo isso?”, questionou, em referência aos refugiados e migrantes que tentam chegar à Europa.
Mazzucchelli classificou ainda o capital como contraditório. “Ele é fundado na apropriação privada. E os seus objetivos são sociais. Ele produz para a sociedade, mas com vistas a um ganho privado.”.
Crises, não derrocada
O economista fez uma crítica aos autores que acham que, em si, o capitalismo é inviável, em oposição a Marx, para quem se trata de um regime de produção factível e possível, desde que haja uma proporcionalidade entre os setores de produção.
Como exemplo, ele citou, mais uma vez, Rosa Luxemburgo. “Ela diz: ‘esse regime não é possível. Na verdade não é possível realizar a mais-valia dentro das fronteiras do capitalismo, você precisa de zonas não capitalistas. Você precisa se projetar para o exterior em busca de outras áreas que passem a realizar a mais-valia, ou através dos gastos militares. Porque ele, em si, não é factível.’. Então o que é que está posto? Está posta uma tendência ao colapso.”.
Dessa premissa decorreriam as ideias de que o capitalismo é inviável, tende ao militarismo e à guerra, e ali, ao lado, estaria o socialismo. “Então, é só a gente fazer assim que ele [o socialismo] já vem. É uma maluquice isso. Porque induz a um erro político crucial. Você estará partindo de uma premissa para justificar sua construção”, contestou.
O conferencista então exaltou a obra O Desenvolvimento do Capitalismo na Rússia, de Lênin, que também se contrapõe à ideia de que há problemas na realização da mais-valia, e falou sobre as crises do regime do capital.
“Marx falava: esse é um regime de produção fundado na anarquia. O Lênin fala nessa ideia de anarquia. As decisões são privadas, não há coordenação das decisões dos capitalistas. É absolutamente plausível que dessa descoordenação, dessa anarquia de decisões, surjam crises”, relatou.
Sobre o assunto, o economista britânico John Maynard Keynes “pôs o dedo na ferida”, ao ressaltar que as decisões capitalistas são tomadas em ambiente de incerteza e de desconhecimento radical em relação ao futuro.
“Se eu fico com o dinheiro ou se eu compro um ativo fixo, as decisões em relação à posse da riqueza levam a que, por vezes, os capitalistas reduzam a acumulação”, explica o economista. Conforme sua explicação, quando se reduz a acumulação, reduz-se o investimento e cai a demanda. É neste momento que surge a crise de superacumulação de que Marx fala. Ou seja, há uma estrita convergência entre a crise de superacumulação, tal como Marx colocou em O Capital, e a crise de realização dinâmica, discutida por Keynes e por Michal Kalecki, escritor polonês. Desta forma, diz Mazzucchelli, parece simples acreditar que o capitalismo vai à derrocada, mas não é o que ocorre.
Segundo Mazzucchelli, as crises surgem não porque haja uma impossibilidade estrutural do capitalismo ou porque haja um subconsumo crônico das massas. “É porque as decisões de investimento são problemáticas, e a variável central nesse plano da discussão é a decisão de investimento, tomada em um ambiente nebuloso. É uma aposta. É um cálculo prospectivo sobre o futuro”, explicou.
Quando o cenário parece desfavorável e os agentes econômicos decidem não investir, cai a demanda. Porque, no capitalismo, o que determina a renda é o gasto.
“Pois bem, isso foi discutido pelo Marx”, afirmou ele, defendendo que o gênio alemão, portanto, não é “tão velho assim”, quando se analisa a atualidade de seu pensamento. “O caráter progressista do capital, o caráter antagônico, o caráter contraditório, crises e mais crises... isso é atual ou não é atual?”, indagou, de forma retórica.
Capitalismo não agoniza
Já no fim de sua apresentação, o economista sublinhou que existe uma discussão no marxismo de que o capitalismo tende a perder o seu ímpeto e vitalidade para chegar à estagnação. “Será que está mais difícil valorizar o valor pressuposto? Será que nós estamos assistindo a uma agonia no capitalismo? A minha tendência é dizer que não. Não é isso. Não tem agonia. O que tem é folia”, ironizou.
Tal “folia” decorreria do desenvolvimento do capital fictício. “Depois da estagflação dos anos 1970, progressivamente romperam-se as normas de regulação preexistentes, deu-se livre curso às inovações financeiras. E a riqueza financeira fundada em títulos, que representam, ou não, o verdadeiro capital, o capital fictício na definição rigorosa de Marx, cresceu a uma velocidade exponencial – o que tem impacto sobre o sistema. Construiu-se um castelo financeiro enorme, veio a crise [financeira de 2008], e o castelo continua aí.”.
Setor produtivo na berlinda
Para mostrar como a financeirização da economia continua firme e forte, Mazzucchelli citou dados do também economista Marco Cintra, segundo os quais estima-se que os ativos financeiros representem hoje quatro vezes o Produto Interno Bruto (PIB) mundial. “Todos, empresas, trabalhadores, assalariados, são portadores de valores financeiros. De um jeito ou de outro. Claro que muito mais os empresários.”.
A consequência disso é que as variáveis de gastos, que determinam a renda, passam a estar sobredeterminadas pela variação de preço dos ativos financeiros. Ou seja, antes de investir na ampliação de sua capacidade produtiva, o capitalista pondera se não será mais lucrativo aplicar em títulos da dívida pública ou em bônus privados.
“O exemplo americano recente foi brutal.”. Ele exemplifica que o trabalhador comprou imóveis e esses imóveis serviam de lastro na captação de empréstimos. Depois, esses empréstimos foram securitizados e passados adiante. Com isso, foi possível captar mais empréstimos, o que expandiu o consumo. “Dessa forma, o consumo não dependia só da renda, mas era fruto da pirâmide financeira que foi sendo construída”, apontou.
Nesse cenário, a lógica do sistema está sobredeterminada pela variação do preço dos ativos. E as empresas produtivas hoje estão submetidas a uma lógica financeira. Mazzucchelli demonstra isso ao contar que, ao estabelecer uma espécie de sociedade entre os acionistas e os administradores, o fundamental passa a ser a valorização das ações e a distribuição de dividendos para os acionistas, e o stock option, que é a remuneração dos administradores pelo valor das ações. Com isso, os lucros financeiros, em vários momentos, superam os lucros operacionais. “O crédito, que é a alavanca do sistema, vai cada vez mais para financiar ativos já existentes”, observou.
Segundo ele, um problema novo, derivado desse quadro, está relacionado ao que fazer com essa massa financeira, que condiciona o gasto e a estratégia das empresas, faz aumentar brutalmente a importância dos bancos e dos intermediários financeiros da economia, e amplia a instabilidade.
Socialismo, ideal a ser perseguido
“A sucessão de crises de origem financeira, dos anos 1980 para cá, é brutal. Algo que não houve no pós-guerra. Mas é que eles olhavam para o lado e tinha, lá, um bigodudo, o Stálin”, brincou ele. Com isso, ele quer dizer que o capitalismo domesticado do pós-guerra trazia em si as marcas da grande depressão, da guerra, mas trazia também o temor da União Soviética, da expansão dos partidos comunistas no mundo. “Isso tudo foi por água abaixo nos anos 1980.”.
O economista destacou ainda as próprias transformações produtivas que acontecem no mundo. A Ásia se converteu na oficina do mundo, que já foi a Inglaterra, e depois os Estados Unidos. Isso tem implicações evidentes, porque se fragmentou o processo produtivo. “Montou-se um complexo sino-americano e tem questões de geopolítica absolutamente relevantes que precisam ser tratadas”, anunciou.
Na sua avaliação, portanto, o capitalismo que Marx discutiu permanece vivo, porém transformado pelo peso das finanças e pela nova reordenação produtiva mundial. “Marx é um autor atual. As tendências centrais do regime de produção são as mesmas. O capitalismo é progressista, é contraditório, é antagônico, ele se transforma. Agora, o socialismo não é inevitável. Ele é um ideal a ser perseguido. E só será alcançado pela remissão à política. Não há nada automático, determinista, que leve ao socialismo ou à melhoria das condições de vida da população. Isso remete à política”, encerrou.
Joana Rozowykwiat é repórter do portal Vermelho