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Edição 142 > Entrevista com Luis Fernandes
Entrevista com Luis Fernandes
Guinada à direita da política externa prejudica interesses nacionais.

Como em 1964, a política externa volta a ser um dos pontos essenciais do golpe em andamento.
A avaliação é de Luis Fernandes, membro da direção do Partido Comunista do Brasil (PCdoB), cientista político do Instituto de Relações Internacionais da PUC-Rio, ex-diretor da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj), ex-secretário executivo do Ministério de Ciência e Tecnologia e ex-presidente da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep).
Nesta entrevista exclusiva para Princípios, ele afirma que a opção do atual chanceler, José Serra, pela volta do alinhamento aos polos dominantes do sistema de poder mundial, em processo de enfraquecimento com o peso dos circuitos rentistas de acumulação financeira, rompe com a evolução estrutural de multipolarização com a emergência de novos polos marcados por maior dinamismo econômicoA seguir, a entrevista com Luis Fernandes:Princípios - Essa virada na política externa brasileira está inserida na tendência política à direita no mundo- Luis Fernandes - Eu creio que sim.
O contexto do prolongamento da crise econômica e financeira internacional, já bastante prolongada, tem gerado deslocamentos políticos, que se expressam no resultado de eleições num conjunto de países.
De maneira geral, esse deslocamento tem se processado mais à direita, na medida em que distintos arranjos de governos com perfil e orientação socialdemocratas entram em impasses.
Quem tem conseguido capitalizar mais o desgaste dessas experiências - uma espécie de convívio de resquícios do estado de proteção social com políticas econômicas liberalizantes fortemente entrelaçadas com o circuito de acumulação financeira - tem sido a direita, com o recrudescimento de forças conservadoras que procuram alternativas criticando os processos de integração no qual os países estão envolvidos, sobretudo na Europa, nos marcos da construção da União Europeia, com a perda de autonomia para implementar políticas próprias, anticíclicas, diante da crise.
É claro que há algumas exceções.
Na Grécia tivemos a eleição do Syriza, embora também com impasse em relação à construção de um caminho alternativo de desenvolvimento.
Assim como o aparecimento da esquerda em Portugal, que viabilizou a composição de um governo do Partido Socialista, com o apoio do Partido Comunista e do Bloco Esquerda.
E o fortalecimento de uma alternativa à esquerda, via Podemos, na Espanha.
Pode-se até dizer que houve certa clivagem à esquerda mais moderada também no processo da eleição americana, com o surgimento da candidatura do Bernie Sanders no Partido Democrata, que até surpreendeu pela força da sua pré-candidatura, em oposição à Hillary Clinton.
Mas, em geral, a principal tendência tem sido a viragem mais à direita.
Essa tendência também se manifesta na América Latina-No caso da América Latina, eu acho que, embora ela componha o mesmo quadro internacional, tem particularidades bastante distintas.
Estamos vivendo uma reação conservadora à viragem progressista do continente nos últimos quinze anos.
Tem um componente um pouco diferente: ao contrário da virada conservadora na Europa, que não é muito bem vista do ponto de vista da agenda externa dos Estados Unidos, aqui ela claramente atende a interesses estratégicos norte-americanos.
O que está em curso são movimentos de desestabilização de governos progressistas.
O processo de impeachment da presidenta Dilma Rousseff e a profunda instabilidade dessa evolução política asileira estão inseridos nessa lógica.
Não há como afastar essas mudanças dos movimentos políticos mais conservadores, de uma agenda que se alinha aos interesses estratégicos dos Estados Unidos.
Há uma particularidade na evolução da América Latina, que é o fato de o Brasil ser a coluna vertebral da viragem progressista, por seu porte capaz de consolidar uma agenda de desenvolvimento alternativo ao alinhamento automático com os Estados Unidos.
Por sua capacidade econômica, pelos processos de investimento que ele pode financiar na integração da infraestrutura física da região, pela influência que ele detém nos fóruns internacionais.
Reverter, derrubar ou inviabilizar o governo progressista no Brasil talvez seja peça-chave para desmontar esse realinhamento que a América Latina viveu nesses últimos quinze anos.
É nesse contexto que os movimentos pelo afastamento da presidente Dilma Rousseff se inserem.
Mas volto a dizer que não é uma iniciativa isolada.
Ela se dá paralela ao processo de desestabilização do governo da ex-presidente Cristina Kirchner, na Argentina, que levou à eleição do conservador Maurício Macri; [paralela] à tentativa de desmoralização do governo de Evo Morales, na Bolívia; e ao processo que vem conduzindo a Venezuela para uma situação de conflagração interna.
A mudança de governo, com o afastamento temporário da presidenta Dilma Rousseff, tem essa nova política externa como um dos seus principais objetivos-Esse processo no Brasil, corretamente caracterizado como golpe porque golpeia o princípio básico da democracia que é a soberania popular, ainda está em curso, mas o governo de Michel Temer já fez um conjunto de anúncios descabidos, por sua natureza interina.
Ele assumiu com um discurso muito duro, voltado para a reversão global das iniciativas que mais marcaram a viragem progressista dos governos Lula e Dilma.
Claro que algumas dessas proposições estão no nível das intenções e poderão não ter força para ser implementadas.
Mas seu sentido é oposto ao do programa do governo que foi eleito.
E aí se destaca uma forte guinada, pelo menos discursiva, na política externa, em lugar da consolidação dos processos de integração sul-americana, provocando tensionamento nas relações com países vizinhos e aliados, em particular a Bolívia, o Equador e a Venezuela.
Além de proposições de enfraquecimento do Mercosul [Mercado Comum do Sul] a favor de maior flexibilidade para o Brasil firmar acordos comerciais bilaterais, em especial com os Estados Unidos.
Essa é uma mudança fundamental na política externa e anuncia o retorno à orientação estratégica do governo do PSDB, do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (FHC), com a formulação cunhada na época como -autonomia pela integração-.
Alinhar com os polos dominantes para encontrar, nesse alinhamento, nichos que promovam o desenvolvimento e a autonomia do Brasil.
A orientação que predominou nos governos Lula e Dilma partiu da constatação de que esses polos de poder estão se enfraquecendo no sistema internacional.
E o que caracteriza a evolução desse sistema é um processo profundo e estrutural de multipolarização, de emergência de novos polos marcados por maior dinamismo econômico, justamente em função do peso cada vez maior de circuitos rentistas de acumulação financeira no funcionamento das economias centrais.
Essa foi a aposta fundamental da política externa dos governos Lula e Dilma, que vinculou o interesse nacional a uma diversificação das relações econômicas, procurando novas parcerias, dando prioridade à integração sul-americana em todas as suas dimensões - econômica, física, política, diplomática e inclusive militar, com a constituição do Conselho de Defesa da União de Nações Sul-Americanas (Unasul).
Por outro lado, se valorizou a aproximação com os novos polos de poder em ascensão no sistema internacional e, através da iniciativa dos BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul), buscou-se uma agenda mais reformista no sistema internacional, de questionamento das estruturas de poder existentes na governança mundial, que já não expressam mais a correlação de forças global, a começar pelo Conselho de Segurança da ONU, passando pela composição das institucionais de Bretton Woods, como o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial, entre outros.
Aqui há uma ruptura grave que, a meu ver, representa um retrocesso, porque não capta as potencialidades que estão sendo abertas pelo processo de transição em curso na ordem mundial, reforçado pelo impacto da própria crise econômico-financeira internacional.
Qual o impacto dessa opção para a política comercial brasileira- A diversificação amplia mercados em áreas que estão justamente com maior dinamismo na economia mundial.
Nesse período, a China se tornou a maior parceira econômica do Brasil.
É claro que em parte isso se deve à demanda chinesa por commodities, mas ter diminuído a participação de bens de alta tecnologia na pauta de exportações foi um problema do Brasil por não ter dado consequência plena às políticas industriais que nos governos Lula e Dilma conviveram com fortes heranças e mecanismos de acumulação financeira, que acabaram não permitindo o pleno aproveitamento das possibilidades que a política industrial abria ao país.
Há um problema nessa pauta comercial para o Brasil.
Ao ser absolutizada, ela nos conduz a um processo de reprimarização, pelo menos na nossa pauta de exportações.
No âmbito da integração sul-americana, acho que há uma pauta exportadora do Brasil em que os produtos com alto conteúdo tecnológico têm uma participação maior.
O problema é que isso vai além da questão comercial; tem a ver com a política nacional de desenvolvimento.
O fato é que nesse período mais recente o Brasil passou por três versões de política industrial, vinculadas a um esforço de reconstrução do projeto nacional de desenvolvimento, mas que durante todo esse período conviveram com persistências na estrutura da economia do Estado brasileiro de mecanismos do período neoliberal, fortemente marcados por circuitos de acumulação financeira.
Seu principal mecanismo é a dívida pública.
Isso tolheu o pleno desenvolvimento do Brasil, tolheu as iniciativas promotoras da inovação nacional e não gerou êxito em termos de promoção do ciclo industrial nacional que se esperava.
Eu acho que, passada essa fase de instabilidade política, se retomarmos uma aliança progressista na direção do governo brasileiro, um exame dos limites que caracterizaram esse período terá que ser feito.
Por que nossas políticas promotoras de desenvolvimento não foram tão exitosas quanto elas poderiam ser, e tão sustentáveis quanto elas poderiam ser para efetivamente gerar maior dinamismo econômico no país, dando sustentabilidade às próprias políticas de distribuição de renda e inclusão social- Aqui há uma agenda de, digamos, reforma e adaptação do próprio projeto nacional que estava em construção.
O governo golpista rompe com essa agenda- A agenda anunciada pelo governo interino aponta numa direção inteiramente oposta.
Do ponto de vista da política de desenvolvimento, as medidas que eles anunciam enfraquecem uma das grandes conquistas dos governos Lula e Dilma, que foi o fortalecimento de um polo de investimento público para canalizar investimentos produtivos, permitindo a geração de riqueza para ser redistribuída no país.
Um dos mais graves é o anúncio de retração dessa ação, inclusive com a retirada do elemento que possibilitava ao Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) operar a taxa de juros de longo prazo como mecanismo efetivo de fomento do desenvolvimento do país.
Inclusive há dúvidas sobre a legalidade disso, porque implicaria antecipação de pagamentos de captações feitas pelo BNDES junto ao Tesouro Nacional no âmbito do Programa de Sustentação de Investimentos (PSI), um dos principais mecanismos adotados nos governos Lula e Dilma na sequência para enfrentar os impactos da crise econômica e financeira internacional.
Parece ser uma pedalada muito grave, porque estaria inviabilizando a própria missão institucional do BNDES como banco de desenvolvimento.
Da mesma forma, o anunciado fim do -Fundo Soberano- afeta fortemente o Banco do Brasil, o que implica também o seu enfraquecimento como polo de financiamento público da economia nacional.
Anunciam-se também mudanças que enfrentam muitas resistências no âmbito da legislação trabalhista e previdenciária, além de medidas como a dissolução inicial do Ministério da Cultura, que depois foi recomposto a contragosto em função da reação forte da sociedade (sobretudo da área artística), e a dissolução do Ministério das Ciências e Tecnologia.
É possível que esse retrocesso atinja até a política de defesa e a estratégia nacional de defesa, que foram consolidadas, ao longo dos últimos anos, com base em alguns princípios orientados pela compreensão de que o mundo está em transição e que o Brasil deveria buscar a integração com os vizinhos no entorno estratégico da América do Sul e do Atlântico Sul e a preservação de capacidade de dissuasão para proteger as suas riquezas e seu território, seja da chamada Amazônia Azul, onde estão localizadas as reservas do pré-sal, seja da região amazônica.
Essa política externa dos golpistas tem semelhança com a independência diplomática repudiada pelo golpe militar de 1964-A política externa dos governos Lula e Dilma - com mais destaque eu diria no governo Lula, quando a agenda externa teve uma centralidade muito grande - é claramente herdeira da política exterior mais autônoma desenvolvida no Brasil, sobretudo naquele período do final dos anos 1950 e início dos anos 1960.
Mesmo no regime militar, embora os Estados Unidos tenham respaldado o golpe de 1964, depois do alinhamento automático no governo Castello Branco houve um crescente distanciamento, expresso na participação do Brasil no Movimento dos Países Não Alinhados, no pioneirismo do reconhecimento do governo do Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA), no desenvolvimento de relações econômicas e políticas com os países nacionalistas no Oriente Médio influenciados pelo nasserismo, o pensamento do presidente egípcio Gamal Abdel Nasser.
Digo isso porque, assim como não durou muito a política de alinhamento automático com os Estados Unidos do governo Castello Branco, eu acho que a reedição disso, mesmo se consolidando o governo que no momento é interino, enfrentará múltiplas resistências.
O ministro das relações exteriores, José Serra, assumiu com um discurso muito forte de crítica à política externa, caracterizando-a de ideológica e partidarizada.
Esse argumento é falacioso.
O ministro falou em defesa do -interesse nacional- e apelou para -contribuições técnicas- para definir a nova orientação das relações exteriores, ignorando que toda política está entrelaçada com ideologia.
Não existe definição política desligada de valores, de ideologias.
Uma coisa é a ideologia que orienta com valores a política, outra é o contexto no qual essa política opera.
E, a rigor, existem duas interpretações sobre a inserção do Brasil no mundo e a realidade do século XXI, ambas ideológicas e partidarizadas.
A questão é saber qual delas atende melhor aos interesses nacionais.
*Osvaldo Bertolino é jornalista e escritor, editor do portal Grabois e colaborador da revista Princípios