História
Edição 140 > Pequena história de um século da Grande Revolução de Outubro
Pequena história de um século da Grande Revolução de Outubro
Nesta sexta parte da série de 10 artigos sobre a Revolução Russa, o jornalista Bernardo Joffily aborda a invasão do território soviético pelas tropas da Alemanha nazista durante a Segunda Guerra Mundial.
Foi a mais dura prova que a experiência socialista soviética já enfrentara.
A vitória do Exército Vermelho, comandado por Stálin, sobre as tropas de Hitler, custou 27 milhões de vidas, na maioria de civis (contra 7,5 milhões de mortos na Alemanha em toda a Segunda Guerra), mas mudou a correlação de forças no mundo6.
A Grande Guerra Patriótica e a vitória sobre o nazi-fascismoA fase de ascensão do nazi-fascismo

Desde 1922, a onda revolucionária iniciada com a vitória bolchevique refluiu.
Pelo menos na Europa, teve início uma longa fase - duas décadas - de descenso da revolução e, pior, de franco avanço da contrarrevolução.
O marco inicial dessa fase foi a Marcha sobre Roma na Itália, em outubro de 1922, que levou ao poder o Partido Fascista de Benito Mussolini.
Nos anos seguintes, partidos e movimentos de tipo fascista tomaram o poder na Bulgária, Hungria, Portugal, Romênia, sempre em feroz oposição ao comunismo.
Porém, a vitória realmente estratégica foi em janeiro de 1933 na Alemanha, com a chegada ao poder do Partido Nazista (Forma abreviada de Nacional-Socialista) de Adolf Hitler.
Em 1936-1939, a Guerra Civil Espanhola foi o teatro da contenda, vencida pelo fascista Francisco Franco com ajuda de tropas e bombardeios ítalo-alemães.
No posto de chanceler (primeiro-ministro), Hitler logo no mês seguinte aproveitou o Incêndio do Reichstag (Parlamento Alemão), ao que tudo indica uma provocação nazista, para varrer com as liberdades democráticas e instaurar uma ditadura aberta.
O novo regime acusou os comunistas de autores intelectuais do incêndio e prendeu dezenas de milhares deles, entre estes o dirigente búlgaro Georgi Dimitrov (1882-1949).
Dimitrov defendeu-se acusando o nazi-fascismo.
Enfrentou Goebbels e Goering no tribunal e o fez com tal maestria que tornou-se mundialmente famoso e teve de ser libertado no ano seguinte.
Em seguida, assumiu a secretaria geral (principal função) da Internacional Comunista.
A linha de frente única antifascista A ascensão do nazi-fascismo aproveitou-se em certa medida dos pontos débeis da linha da Internacional de -classe contra classe-.
Aprovada no 6º Congresso da IC, de 1928, ela na prática excluía qualquer unidade de ação com a social-democracia, para não falar das forças políticas convencionais da burguesia.
Isolados, os PCs, inclusive o possante PC da Alemanha, não tiveram como opor resistência eficaz ao avanço dos seus mais ferozes inimigos.
Ao assumir a direção da IC, Dimitrov convocou o seu 7º Congresso e aprovou uma nova linha, de frente única antifascista.
Embora sem fazer concessões ideológicas à social-democracia, ele defendia a unidade de um amplo leque de forças contra -o pior inimigo da classe operária-, -a ditadura aberta da burguesia-, o nazi-fascismo.
A linha da frente única orientou a União Soviética e o conjunto do movimento comunista - inclusive no Brasil - nos cruciais embates da guerra.
Porém, as potências capitalistas ocidentais não se mostravam dispostas a combater efetivamente o nazi-fascismo.
Pelo contrário, no Acordo de Munique (setembro de 1938), elas entregaram alegremente a Hitler a região tcheca dos Sudetos, esperando que ele voltasse seus apetites belicosos contra a URSS.
Diante disso, e do fracasso das tentativas de aliança antinazista com os britânicos e franceses, a República dos Sovietes tomou a iniciativa de concluir com a Alemanha o tratado de não agressão conhecido como Pacto Germano-Soviético, ou Pacto Molotov-Ribbentrop (agosto de 1939).
Em 1º de setembro o 3º Reich iniciou a Segunda Guerra, ocupou a Polônia, e a seguir a França, Bélgica, Holanda e Luxemburgo.
Rapidamente, toda a Europa continental, afora a URSS e um ou outro enclave neutro, caiu em poder do Eixo (a coalizão militar germano-ítalo-nipônica durante a Guerra) e seus aliados.
A URSS, com o Pacto, ganhou dois anos para se preparar para a agressão que todos julgavam inevitável.
Desde o Acordo de Munique, a indústria bélica soviética foi prudentemente remanejada para lugares seguros, além dos Montes Urais.
Mais de 2.
600 fábricas foram convertidas em componentes do esforço de guerra.
O Exército Vermelho, sob o comando do general George Jukov, aprestou-se para o combate.
A maior agressão da históriaEm 22 de junho de 1941, a Alemanha violou o tratado de não agressão e invadiu o território soviético.
Com o nome de código Operação Barbarossa, foi a maior operação militar que a humanidade já conheceu, envolvendo 3,8 milhões de soldados - quando todo o resto do exército de Hitler, incluindo as forças de defesa da Alemanha, somava 3,4 milhões de soldados.
A Operação Barbarossa começou com fulminantes sucessos, no melhor estilo da blitzkrieg (guerra relâmpago).
Em seis meses as tropas de Hitler ocuparam um milhar de quilômetros de território soviético.
A ofensiva se dava em três fronts: o Sul, a partir dos Bálcãs, rumo ao petróleo do Cáucaso, o Central, mais importante, a partir da Polônia ocupada, ameaçando Moscou, e o Norte, com apoio da Finlândia aliada do Reich, assediando Leningrado (atual Petersburgo).
Durante esse ataque, 2 milhões de soviéticos foram massacrados, sendo 1 milhão de judeus.
A SS assumiu o comando da zona ocupada, com ordens para matar todos os judeus, matar todos os membros do Partido Comunista e reduzir a -raça eslava- à escravidão.
O general Wilhelm Keitel, comandante das Wehrmacht, respondeu a um subordinado atônito que na Operação Barbarossa -a concepção militar de uma guerra cavalheiresca- não tinha lugar, pois tratava-se -de destruir uma concepção de mundo-.
A Grande Guerra Patriótica Stálin usou contra Hitler a mesma estratégia militar que derrotara Napoleão Bonaparte na invasão da Rússia em 1812 - e que Leon Tolstói descreveu com gênio em Guerra e paz (1869).
Ele arregimentou para o combate o patriotismo do povo russo, o heroísmo do seu Exército Vermelho, mas também as colossais dimensões de seu território e o rigor implacável do seu inverno.
Com efeito, a Wehrmacht foi detida, em pleno inverno russo (5 de dezembro), com um tapete de um metro de neve e temperaturas de 20º e até 30º negativos, a apenas 30 quilômetros de Moscou.
O plano de Hitler era arrasar a capital soviética, fazendo no seu lugar um lago artificial.
Para isso, ele concentrou 1,8 milhão de soldados na Batalha de Moscou.
Mas em 22 de janeiro o invasor foi rechaçado, perdendo 615 mil homens.
Foi a primeira grande derrota da Alemanha nazista.
Enquanto o invasor permaneceu às portas de Moscou, uma parte da cidade foi evacuada.
Indústrias, repartições governamentais, tesouros artísticos e até a Rádio Moscou - peça-chave do esforço de guerra dentro do país e internacionalmente - foram transferidos para a Sibéria.
Stálin, porém, permaneceu na sua residência num cantinho do Kremlin, o antigo palácio imperial czarista, bem no centro da capital.
Em 7 de novembro, dirigiu-se ao povo, na Praça Vermelha, por motivo do 23º aniversário da Revolução Bolchevique.
Apela a -toda a pátria- e admite que esta vive -uma ameaça-, mas foi de um indizível otimismo: -O diabo não é tão terrível como o pintam.
Se examinarmos a verdadeira situação da Alemanha, não é difícil compreender que os invasores fascistas estão na iminência do desastre-, asseverou.
Muita gente deve ter feito um muxoxo de descrença.
Afinal, a Wehrmacht estava às portas de Moscou, e de Leningrado, e imperava sobre praticamente um continente inteiro.
Mas os céticos se enganavam.
Era Stálin quem tinha razão.
Vale notar que o discurso de Stálin falou da Revolução, do Partido Bolchevique e de Lênin, mas também invocou a pátria, -toda nossa pátria, todos os povos de nossa pátria- (já que a URSS é um Estado plurinacional).
Não por acaso a resistência ao invasor foi denominada Guerra Patriótica.
O poder soviético fez aqui uma flexão, na linha dimitroviana da frente única, buscando o mais amplo leque de alianças para rechaçar o invasor.
Um gesto neste sentido foi o encontro de Stálin com três altos dignatários da Igreja Ortodoxa Russa, em 1943, com a resistência aos ocupantes como pauta.
A inacreditável resistência de LeningradoO plano do nazi-fascismo era tomar Leningrado antes mesmo de Moscou.
A antiga capital imperial russa, cenário da Revolução de Outubro, dispunha do formidável sistema fortificado de Kronstadt e por isso o invasor decidiu vencê-la pela fome.
Cercaram-na, cortaram todas as linhas de abastecimento, submeteram-na a impiedoso bombardeio - 150 mil obuses, 100 mil bombas aéreas.
Mas Leningrado resistiu.
Pagou com 2,2 milhões de vidas pelos 900 dias de cerco - na maioria civis vítimas da fome.
Somente no pior mês, janeiro de 1942, foram 100 mil mortos.
As pessoas simplesmente caíam e morriam, no meio da rua, de fome e frio.
A ração diária fora reduzida para 200 gramas de pão para cada homem, 125 gramas para mulheres e crianças.
Depois disso, o Exército Vermelho conseguiu abrir uma precária linha de abastecimento, a -Linha da Vida-, na qual, em média, apenas um em cada três caminhões lograva atravessar a metralha inimiga.
Heróis e delatoresNa zona sob ocupação alemã, o poder soviético desde antes da invasão havia organizado um sistema de guerrilhas.
Assim como os comunistas franceses combatiam o nazismo nos Maquis e os italianos na Resistenza Partigiana, também os soviéticos, em boa parte da pátria socialista, estavam reduzidos a essa estratégia defensiva.
Mas foi impressionante a adesão voluntária: mais de 2 mil grupos de guerrilha se constituíram e não deram trégua ao inimigo, desorganizando sua retaguarda.
O romance A jovem guarda, de Alexandre Fadeiev (1945) pinta um vívido retrato dessa resistência clandestina.
Embora sendo uma peça de ficção, descreve com minúcias de repórter uma história real: seus heróis são um grupo de 80 militantes da Juventude Comunista, na cidade ucraniana de Krasnodon, que libertam os prisioneiros de um campo de concentração, queimam uma lista de cidadãos que devem ser deportados para trabalho forçado na Alemanha, e hasteiam oito bandeiras soviéticas nos prédios mais altos da cidade para celebrar o aniversário da Revolução de Outubro.
Porém A jovem guarda também descreve como a rede clandestina foi delatada, e aniquilada pelo ocupante, com requintes de selvageria.
Um fragmento da população colaborou com os ocupantes, em especial como hiwi (abreviatura da palavra alemã hilfswillige, auxiliar voluntário), fosse pela delação, como no livro de Fadeiev, fosse ajudando o extermínio dos judeus, fosse, inclusive, lutando de armas nas mãos.
Na própria Ucrânia, os netos ideológicos desses colaboracionistas iriam jogar um papel na mesma linha durante a crise que dilacerou o país a partir de 2014.
O esforço industrial de guerraEm boa medida a União Soviética venceu a guerra contra o nazi-fascismo não nos campos de batalha do Exército Vermelho, nem nas emboscadas das guerrilhas, mas no front do esforço industrial.
A produção de carros blindados dá uma ideia desse engajamento: em 1940 foram produzidas 358 unidades; no primeiro semestre de 1941, já prenunciando a invasão, 1.
503 unidades; no segundo semestre, imediatamente após a Operação Barbarossa, 4.
740 unidades.
Desde o fim de 1942, a URSS supera a Alemanha no fabrico de armamentos, embora o Reich ainda ocupe metade do território da Rússia Europeia.
A produção soviética de aviões e tanques passou a ser o dobro da alemã, a de canhões alcançou o triplo em 1944.
Uma grande parte do esforço produtivo foi realizado pelas mulheres, já que a população masculina fora convocada para o exército.
Todas as mulheres de 15 a 45 anos de idade foram convocadas.
Entre 1941 e 1945, a participação feminina na mão de obra industrial passou de 37% para 60%!StalingradoRechaçada em Moscou, detida em Leningrado, a Wehrmacht voltou-se para o sul, para os campos petrolíferos do Cáucaso, vitais para a URSS.
Tomou Rostov, na foz do Rio Don.
E a seguir lança-se sobre Stalingrado, que além de centro de armamento (fabricava o célebre tanque T34) e entroncamento ferroviário, tinha um nome que desagradava a Hitler.
No verão de 1942 os nazistas obtiveram êxitos iniciais.
Hitler chegou a dizer que -os russos estão acabados- e ordenou a tomada de Stalingrado.
Em setembro a cidade estava sob cerco alemão.
Os olhos da imprensa mundial concentraram-se naquele campo de batalha decisivo.
Porém uma encarniçada resistência vermelha conteve o ataque.
E quando Stalingrado estava quase toda tomada a tropa soviética cercou, por sua vez, os invasores.
A mobilização na cidade chegou perto de 100%, com garotas do Konsomol (Juventude Comunista) alistando-se para operar baterias antiaéreas e a população civil foi convocada para cavar trincheiras e antitanques, enquanto os operários recebiam treinamento militar nas -brigadas especiais-.
Seguiu-se um longo, penoso, extenuante, desesperado combate casa por casa na cidade em ruínas.
Residências eram remanejadas em fortificações, porões e esgotos em vias de comunicação, no que os alemães apelidaram Rattenkrieg (guerra de ratos).
Em 19 de novembro veio a contraofensiva soviética.
Os atacantes de antes, a fina flor do exército hitlerista, sob comando do general Friedrich Paulus, viram-se encurralados, exaustos, sem esperança de reforços, sem combustível para os tanques, sem munição, sem alimento.
Em 24 de janeiro de 1943 Paulus enviou uma mensagem a Hitler: -Colapso inevitável.
Exército solicita autorização imediata para rendição a fim de salvar vidas das tropas restantes-.
Hitler proibiu-o de render-se.
Mas em 2 de fevereiro o general alemão rendeu-se mesmo assim aos sitiantes soviéticos com os 94 mil sobreviventes de seu exército.
Não foi uma batalha qualquer.
Decidiu-se ali a sorte do conjunto da Segunda Guerra Mundial, maior confronto bélico que a humanidade já conhecera.
Não por acaso, na França, por exemplo, até hoje nove praças e 14 avenidas trazem o nome Stalingrado.
A contraofensiva soviéticaDepois de Stalingrado, a Alemanha hitleriana perdeu definitivamente a iniciativa estratégica.
O conjunto da ascensão nazi-fascista iniciada em 1922 chegou ao fim.
E o Exército Vermelho iniciou uma ofensiva que em outubro de 1944 já combatia em solo alemão, numa sucessão quase ininterrupta de vitórias.
Enquanto isso, a resistência antifascista ganhou ímpeto no conjunto dos povos sob o tacão nazi-fascista, formando verdadeiros exércitos de guerrilheiros partizans na França, Itália, Iugoslávia, Grécia, Albânia, sempre em frente única mas com forte predomínio comunista.
E os Aliados anglo-americanos, temendo os efeitos da avançada soviética, decidiram-se, por fim, abrir uma frente ocidental para acossar o Reich, com o Desembarque da Normandia, em 6 de junho de 1944.
O nazi-fascismo bateu-se desesperadamente até o fim.
Hitler, acantonado num complexo fortificado no centro de Berlim, o Führerbunker, proibiu rendições e decretou pena de morte para os transgressores.
Suicidou-se em 30 de abril de 1945, quando o Exército Vermelho já se encontrava na capital alemã, a algumas centenas de metros do bunker.
No mesmo dia, um soldado soviético hasteou a bandeira vermelha, da foice e do martelo, no teto do Reichstag.
Em 9 de maio entrou em vigor a rendição incondicional da Alemanha, assinada na véspera, no QG soviético de Berlim.
Com a vitória, devastadora e retumbante, a experiência socialista soviética entrou em sua fase de apogeu.
* Bernardo Joffily é jornalista, tradutor, colaborador de Princípios e autor do Atlas Histórico IstoÉ Brasil 500 anos