Brasil
Edição 140 > A guerrilha do Araguaia nos palcos e telas
A guerrilha do Araguaia nos palcos e telas
Em 2015, abriram-se as cortinas dos palcos para as peças Guerrilheiro Não Tem Nome e Guerrilheiras ou Para a Terra Não Há Desaparecidos, enquanto a luz tênue dos projetores de cinema iluminou as telas para o gigantismo do Osvaldão, o comandante negro da guerrilha. 2016 promete manter vivo o espetáculo da luta guerrilheira pelo país
Desde 17 de outubro de 2014, quando estreou, na 38a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, Osvaldão, documentário dirigido por Vandré Fernandes, Ana Petta, Fabio Bardella e André Michiles, lota o Espaço Itaú de Cinema, surpreendendo a plateia com imagens inéditas do “herói revolucionário negro”. Desde então, o filme passou por Manaus e Campinas (SP), deslanchando no finzinho de novembro em salas de cinema de São Luís (MA), São Paulo (SP), Porto Alegre (RS), Rio de Janeiro (RJ) e Caxias do Sul (RS).
Foram duas semanas inteiras em cartaz em salas de São Paulo, Rio e Porto Alegre, uma façanha para um documentário, visto que a maioria não consegue distribuição e se restringe a festivais. Fernandes diz que um ineditismo deste filme é seu vínculo direto com os movimentos sociais e a militância de esquerda que contribuiu para a sua realização e distribuição. A garantia do filme no cinema comercial, devido ao apoio das doações pela internet, possibilitou em todas as cidades que veículos de imprensa divulgassem reportagens, entrevistas e críticas. Em 2016, o filme estreou já no início do ano em Belo Horizonte (MG) e Salvador (BA).
Em carne e osso
Um grande mérito do filme é dar corpo a um líder comunista que viveu num momento de profunda clandestinidade, em que até mesmo fotos eram um risco para a vida dessas pessoas. O filme partiu da busca de Eduardo Pomar, amigo de Osvaldão, por um documentário feito em 1962, na antiga Tchecoslováquia, quando ambos estudavam engenharia num intercâmbio. O filme traz ainda imagens documentais sobre a Guerrilha, e depoimentos de pessoas que o conheceram.
O trabalho de “guerrilha” dos realizadores para que Osvaldão chegasse ao público teve um dos seus momentos mais simbólicos durante as ocupações de escolas públicas paulistas por alunos, contra o fechamento anunciado pelo governo estadual, no segundo semestre de 2015. Mesmo com a precariedade estrutural para a exibição, Fábio Bardella disse que sentiu “o clima mudar dentro das salas”. “Porque estávamos mostrando um espírito de luta para jovens lutadores. Falei: ‘passamos o filme para que vocês encontrem o Osvaldão dentro de vocês’”, conta ele. A atenção dos alunos, ovacionando o filme, e de curiosos sobre o tema, mostrou para Bardella que, “de alguma forma, o Osvaldão esteve ali”. “Este é o nosso sonho para o filme, e ele não poderia estar em melhor lugar do que nas escolas ocupadas pelos estudantes”, acrescentou Ana Petta.
Conforme ressalta Adalberto Monteiro, depois do documentário Camponeses do Araguaia, a guerrilha vista por dentro, a Fundação Maurício Grabois, que ele preside, dá um passo a mais no resgate do valor histórico daquele movimento de resistência, com o lançamento de Osvaldão. “A Grabois se associou a um elenco de jovens de talento para levar às telas a história de um herói do povo brasileiro, amado pelo povo da Amazônia até os dias de hoje”, disse.
Osvaldão é uma produção independente que levou dois anos para ser realizada. Os processos de pesquisa, filmagem, montagem e finalização, com gravações no Rio de Janeiro, Pará, Tocantins e Minas Gerais, são uma realização da Fundação Maurício Grabois, Clementina Filmes e Estrangeira Filmes.
box 1
REPERCUSSÃO
“O filme não é um registro jornalístico. Impossível cobrar ‘objetividade’ ou ‘isenção’. No conceito ‘fordiano’, (...) quando a lenda supera a realidade, o que faz o jornalista- No Homem que Matou o Facínora, Edmund O’Brien publica a lenda. A grandeza dos derrotados. Osvaldão permanece vivo na lembrança. Os povos da mata contam sobre ele histórias que perpetuam o mito. (...) Osvaldão recoloca seu personagem na história. Não é pouca coisa”, escreve Luiz Carlos Merten, em O Estado de S. Paulo.
“Osvaldão faz o que pode para reconstituir a história daquele incrível personagem através de rastros documentais, correspondência e depoimentos. (...) disposição sincera para levantar a trajetória de um herói menos lembrado do que merece”, afirma o crítico de cinema Carlos Alberto Mattos (RJ).
“Dos filmes acerca da resistência do Araguaia, é dos melhores documentários que eu já vi. Precisamos criar as condições para que a memória venha à luz do dia. Uma nação sem memória não tem futuro. Essa não é qualquer questão, essa é a força de uma nação. É um despertar de que é preciso que as novas gerações conheçam o que foi a história de resistência e luta desse país. A liberdade não se consegue simplesmente no diálogo e na conversa, é luta dura, com muita gente morrendo. Se não se conhece isso, não se conhece nada”, disse Renato Rabelo, ex-presidente do PCdoB, após a sessão de pré-estreia.
“A ditadura militar no Brasil é uma coisa que temos imensa dificuldade de rediscutir, reorganizar a memória para que isso possa ser esclarecido, enfrentar a tortura e o assassinato. Em alguns momentos, a arte cumpre o papel da Justiça”, diz Regina Helena Alves da Silva, professora de História da UFMG, por ocasião da pré-estreia em Belo Horizonte.
“O filme emociona e faz um belo registro da história do Brasil. A memória de Osvaldão faz parte do tesouro histórico de nossos heróis e as novas gerações precisam conhecer”, afirmou Sônia Maria Haas, irmã do guerrilheiro João Carlos Haas Sobrinho.
“O filme é uma cabível e justa homenagem ao guerreiro Osvaldão. Aqueles que deram suas vidas por melhores condições de vida para o povo brasileiro devem ser homenageados. Emocionei-me bastante, pois tive o privilégio de ouvir a voz daquele que ouço dos camponeses da região, lembrando da época que conviveram com Osvaldão”, diz Diva Santana, irmã de Dinaelza Santana Coqueiro, guerrilheira desaparecida em 1974.
No palco sagrado do teatro, guerrilheiros(as) estão vivos(as)!
Pelo menos duas iniciativas teatrais fizeram guerrilheiros e guerrilheiras do Araguaia ressurgirem dentre os mortos e desaparecidos políticos, ainda que na forma da encenação sagrada que a dramaturgia teatral é capaz, já que a luta interminável dos parentes daqueles jovens para encontrar seus corpos continua inglória.
Cezar Xavier
O Exército brasileiro empreendeu um esforço brutal para apagar os vestígios da Guerrilha do Araguaia e de seus protagonistas. Mas não conseguiu apagar o heroísmo daqueles homens e mulheres da mente de camponeses, militares, parentes, amigos e índios. O impacto de sua luta na história e no fenecer da ditadura também torna-se cada vez mais evidente e difícil de negar. Os militares também não foram capazes de impedir que a poesia eternize aqueles agentes históricos sob a luz da ribalta e os aplausos e emoção das plateias.
Ambas as peças nascem sob o signo da perplexidade da juventude atual com a coragem e ousadia daqueles militantes comunistas em seguir para a selvageria da floresta e enfrentar a violência em seu estado absoluto e requintado. Não há barbárie maior que a tentativa de apagar da memória coletiva, por meio da violência e da burocracia estatal, a luta de resistência de um povo. O que leva um jovem no auge de suas potencialidades a entregar-se a uma luta tão desigual- Esta é a faísca que cintila da curiosidade de Anderson Zanetti, Airá Fuentes Tacca, Leonardo Oliveira e Vanessa Biffon, do Grupo Mata!, em Guerrilheiro Não Tem Nome, e de Gabriela Carneiro da Cunha, Grace Passô e Georgette Fadel, em Guerrilheiras ou Para a Terra não Há Desaparecidos, ambas já bem recebidas pelo público por onde passou, e agora dispostas a percorrer os palcos pelo país, desde o início deste 2016.
Tudo feito pela primeira vez, com urgência e coragem, pelo diretor Anderson Zanetti, numa pesquisa e criação coletivas com os atores Leonardo Vieira, Vanessa Biffon, Airá Fuentes Tacca, e o cenógrafo Luiz Felipe Macalé, o primeiro trabalho do grupo estreante foi recebido com boas vindas pelo Proac Primeiras Obras (Programa de Ação Cultural de São Paulo), que os contemplou com treze apresentações, entre a estreia em 5 de junho e o encerramento da temporada em 18 de julho, passando por São Paulo, Diadema, Santos e Campinas. Com o 3º Prêmio Zé Renato de apoio à produção e ao desenvolvimento da atividade teatral para a cidade de São Paulo, a peça volta em nova temporada paulistana de 20 apresentações, entre 12 de março e 29 de maio de 2016, em teatros da capital paulista, em Cidade Tiradentes (ZL), Vila Nova Cachoeirinha (ZN), Barra Funda (Centro), Santo Amaro (ZS), Vila Formosa (ZL) e Liberdade (Centro).
O objetivo parece ser adentrar o imaginário e ideário dos guerrilheiros, dando a mão à plateia e trilhando simbolicamente a mata densa do Araguaia, para tentar alcançar racional e sensorialmente o desejo profundo daqueles jovens por liberdade e democracia.
A pesquisa estética envolveu a poética brechtiana, a partir de esquetes que se sucedem sem linearidade, mas sempre muito claros e inteligíveis. O debate dialético é uma busca permanente nos confrontos entre personagens e situações. Há confrontos dramatúrgicos contínuos entre camponeses e militares, delatores e guerrilheiros, militantes clandestinos e policiais infiltrados, major Curió e Comissão da Verdade, José Genoíno e Joaquim Barbosa, ou mesmo entre guerrilheiros, sempre debatendo motivações pessoais e destinos históricos. Imagens do cotidiano na cidade e no campo, situações extremas e rituais da vida que se reproduzem de forma inusitada e perigosa nas condições clandestinas da luta armada compõem o escopo de cenas. Os saltos entre a guerrilha urbana e rural revelam a claustrofobia daquela geração entre a apatia e a inevitável luta radicalizada.
Segundo Zanetti, todas as personagens reais (e vivas) são problematizadas na peça por suas posturas e seus discursos conhecidos publicamente. Porém, mais admiráveis são a ausência de neutralidade política e o modo como a peça aproxima o tema da atualidade. Afinal, os corpos continuam desaparecidos, os criminosos continuam impunes, as famílias das vítimas continuam a esperar por respostas e, mais do que isso, lembra Zanetti, as práticas políticas e intervenções de Estado praticadas no período da Guerrilha são comuns hoje.
GEORGETTE FADEL:
“Não tem como não se apaixonar e querer que essas figuras ocupem seu devido lugar na história”
O poema cênico que homenageia
as mulheres que entregaram as
suas vidas na luta contra a ditadura na região do Araguaia encerra temporada de sucesso em São Paulo. Em entrevista à Princípios, sua
diretora expressa a impropriedade
de manter essa história enterrada, após ver com todos os sentidos a
força da ação revolucionária
exercida pelos guerrilheiros entre
os camponeses daquele lugar longínquo do país
Por Ana Petta e Cezar Xavier
Tudo é pensamento, quando Georgette fala de Guerrilheiras ou Para a Terra não Há Desaparecidos, sua direção, idealizada pela atriz Gabriela Carneiro da Cunha, com dramaturgia de Grace Passô. A passagem da peça por São Paulo, após temporada no Rio de Janeiro, se encerrou no dia 14 de fevereiro, no Sesc Belenzinho. Sessões sempre lotadas, disputadas, com apresentações extras.
O poema cênico que se estruturou para homenagear as guerrilheiras do Araguaia causou sensação em São Paulo. Mas falar sobre ela, parece já ter se tornado passado. Georgette aponta a mira do facão de ideias para a frente, para a mata inexplorada de 2016, de costas para o ano em que o fascismo desabrochou encerrando o pensamento em frases feitas.
Por meio de um diálogo entre ficção e documentário, a peça é um poema cênico criado a partir da história de 12 mulheres, de sua luta e da memória do que elas viveram e deixaram naquela região. Após a pesquisa sobre o tema, a companhia realizou uma viagem ao sul do Pará de onde trouxeram elementos.
Em cima ou embaixo das camadas de terra, as guerrilheiras revivem sua entrega, numa dança universal compreensível a qualquer sociedade que já tenha vivido a barbárie da guerra e das ditaduras. O contraste de elementos reforça a dissimulação dos usos do discurso nacionalista, o que contextualiza a geopolítica da época, evitando a localização regional e datação do tema.
Leia a seguir, trechos da fervilhante entrevista com a diretora, ainda mergulhada na paixão pelas mulheres que desenterrou do Araguaia para homenagear de forma a eternizá-las e a seu ideário de luta pela democracia:
O dialogismo guerrilheiro & camponês
O que eu acho mais maravilhoso nesta história toda é o trabalho que eles fizeram, o pensamento, o fato de ir para perto dos camponeses. Conhecer esse povo, essa gente ligada à terra. Começar a ter um trabalho de humanização dessas relações; de entendimento de um país, entendimento de direitos, entendimento do que era violência, uma valorização das mulheres, a valorização do trabalho. Levando cura, levando um tipo de educação. Levando afeto de uma classe para outra, da classe média universitária para o camponês. Os camponeses falavam: mas aquela gente tão diferente, tão bonita, querer ser igual a nós... Para a gente que é artista, intelectual, classe média, essa é uma história que toca, porque a galera larga tudo, mesmo, e vai.
Radicalidade da entrega
A gente não se identifica enquanto radicalidade de ação, porque elas foram mesmo, elas morreram mesmo. Então, para a gente, elas se tornaram heroínas. Esse nível de ação que a gente precisaria para sustentar uma transformação, a gente tem muito pouco. Isso conseguiram matar; conseguiram matar as pessoas que portavam essa chama num momento crucial, que essa chama estava levantada.
Em todas as cartas que elas escrevem, elas falam de algo que lembra muito os discursos da Rosa Luxemburgo falando para os pais: “espero que vocês entendam o que está acontecendo aqui, que vocês entendam que a gente está aqui lutando, justamente pelo que vocês ensinaram a gente, pelo que é mais óbvio que é todo mundo ter um pedaço de terra, todo mundo poder viver”.
Ideais muito claros, muito óbvios, justos e amorosos... Não tem por onde pegar. Você pode pegar o quê- O fato de elas terem um 38 na mão e estarem dispostas a pegar um outro ser humano e meter no paredão, como elas fizeram, talvez, até com um camponês que estava delatando-
A gente fez questão de colocar os 27 pontos no programa da peça; as reinvindicações da Guerrilha. Tudo muito claro, tudo muito direto. Então, não tem como não se apaixonar ou querer que essas figuras da nossa história venham e ocupem o devido lugar.
A tentativa de apagamento como limite dialético
A gente tentou por todo lado “dialetizar”; tentou colocar o soldado morto, dizendo: “Quem me matou- Foi o amor que me matou- O amor pela pátria me matou- Foi uma classe média que nunca passou fome, que está lutando contra a fome- Mas eu sou um soldado, eu passei fome.”
Tudo bem, dá para você “dialetizar” na instância do soldado ou até do [major] Curió. Mas, quando vai para uma instância superior, daqueles generais, do presidente da República... a gente não conseguiu falar nada. “Alguém vem limpar essa sujeira aqui!” Não tem como representar com alguma lógica esse raciocínio de eliminar a diferença.
A percepção mais forte durante o laboratório no Araguaia
O mais forte para a gente, durante a viagem, foi esse sentimento que a gente tentou tirar deles... qualquer possibilidade de um “eles impuseram para a gente um pensamento”, ou, “chegaram aqui cantando de galo e botaram a gente numa violência que a gente não queria ser colocado...” E os depoimentos que a gente achou, todos lamentavam como “eles” [os guerrilheiros] poderiam ter ficado mais tempo. “A gente estava começando a aprender; antes a gente nem sabia que a gente estava viva, depois, nós, as mulheres, a gente descobriu que estava viva”. Só por causa dessa integração verdadeira. Teve uma relação ali.
Só não conseguiram fazer mais porque o Exército chegou com uma violência sem precedentes, estuprando um monte de meninas. Tem filho de soldado a dar com pau. A gente não põe [esse assunto] na roda porque não sabe o que pode acontecer lá. Tem um relato de um militar de alta patente chegando e falando: “segurem suas éguas, que meus garanhões estão à solta!” Isso na cidadezinha de Xambioá (TO). Meninas com 12 anos...
Então, os caras chegaram fodendo tudo, torturando os “negos”, porque, se não, esses camponeses iam ficar muito do lado dos guerrilheiros. Com toda certeza!
O desafio teatral do Araguaia
Hoje em dia, já está um desafio você conseguir ser interessante no teatro. Conseguir abarcar esse todo. Eu acho muito difícil fazer teatro. A priori, tem a dificuldade do teatro que é essa criação que, se for verdadeira, é coletiva. Agora, colocar esse tema no teatro significa ter que fazer uma escolha muito radical. A gente fez a escolha por fazer uma homenagem, um poema.
Embora o meu objetivo inicial fosse fazer uma aula: O que é uma guerrilheira falando em liberdade, o que é um velho falando em liberdade, o que é uma pessoa que está à beira da morte..., a minha vontade era botar pensamento na roda.
Os arquétipos femininos chegam à floresta
O [dramaturgo Luís Alberto de] Abreu diz que a primeira estampagem da heroína feminina é ser a mãe do homem, que é o guerreiro. Depois, a segunda estampagem dos dois é o(a) amante e a terceira é trocada entre eles. O homem passa a ser o pai e a mãe passa a ser a guerreira. Quando o homem assume o arquétipo do pai, ele é pai de um povo, é o rei. Quando ele resolve cuidar, o homem cuida de uma coletividade.
A estampagem terceira da mulher seria a guerreira; aquela que vai para a guerra por uma causa. Ela não vai para a guerra porque ser guerreira é sua primeira estampagem. Ela vai porque tem uma causa maior; então, ela vai com mais força do que o guerreiro, porque é uma estampagem mais madura dela. Assim como o pai, no homem, é uma estampagem mais madura dele. O que para a mulher é a primeira, instintiva, a proteção do filho; quando o homem se torna o pai ele cuida do filho dele, do outro, ele é capaz de cuidar de um país.
De uma maneira geral, uma mulher que vai para a guerra, você logo pensa numa Joana D’Arc. Naquela que entrega até o filho para o sacrifício, porque não interessa mais a estampagem da mãe.
Uma mulher que abre mão do feminino e se iguala. Isso é muito desafiador para um homem. Do mesmo modo que uma mãe se assusta diante do homem que assume a estampagem do pai.
A gente tem que redefinir esses mitos; botar na roda as nossas heroínas; todos os aspectos do feminino encobertos. Tirar da mulher brasileira o aspecto da sensualidade excessiva e trazer a força das outras estampagens, não só da amante ou da mãe, mas também das grandes guerreiras desse país. A gente não honra essa força madura da guerreira. De uma maneira geral, para ser uma boa brasileira, você precisa ser “tesuda”, você precisa ter uma questão sexual desenvolvida.
Se você tem pensamento, você passa a ser homem. Uma mulher que pense o Brasil não necessariamente traz a sensualidade e não é honrada como mulher. Ela passa a ser um inimigo.
O povo brasileiro luta por justiça-
Eu acho que o povo brasileiro luta muito por justiça, mas é um povo esmagado. Uma mídia tenebrosa, assassina, opressão de todas as espécies.
Acho que o povo brasileiro está muito longe de ser esse um povo cordial... “A nossa independência não teve guerra... a gente vai dando um jeitinho”. Por isso que a gente fala do Sul do Pará, onde estão muitas dessas lutas. É um lugar especial, porque isso continua.
Intervenção militar, já!
Eles não sabem o que dizem! Só dá para dizer isso: um monte de gente que não pensa. Um bando de gente com muito medo de perder coisas que acha que tem. São pessoas que acham que aquilo que têm é o que elas são. E nesse medo, se cercam de um monte de frases feitas, porque é só o que elas têm acesso, e compõem um pensamento todo cruzado, sem sentido, mas com alguma coerência aparente.
Não é pensamento, por isso que é difícil lidar; não tem nenhuma racionalidade nisso. Talvez a melhor argumentação seja entrar na loucura dessa gente, dizer o que dizem, e fazer com que ouçam sua loucura e se deem conta de que é um pouco demais... E a gente poderia poupar energia, porque acho que a gente entrou num circuito de perder. Eu perdi parentes, perdi amigos, tentando entrar na disputa, tentando pensar junto, tentando entender. E não rolou, porque não é pensamento. Se você pensa, verdadeiramente, você cai na esquerda. A esquerda seria nós todos, juntos, vivendo bem, na paz.
Georgette foi entrevistada pela atriz Ana Petta, em 20 de setembro de 2015. A edição e comentários são do jornalista Cezar Xavier.
“A coragem para dizer as coisas precisa existir, correndo o risco que se tenha de correr. No momento em que no país se vive uma guerra de informação, a gente não pode esconder a cara, não pode ter medo de ser rotulado; a gente precisa dar nome aos bois e se posicionar”, afirma o diretor, justificando suas opções.
José Genoino:
Éramos uma geração emparedada entre a prisão, o exílio ou a luta armada
O ex-guerrilheiro reflete a partir do cinema e do teatro sobre o sonho que embalou sua juventude. “Falta-nos, hoje, o direito de sonhar com o futuro. Você tem que sonhar, ou não enfrenta as dificuldades do presente”. Para ele, essas obras artísticas têm um papel particular na luta contra a dominação política e ideológica da direita, que se materializa de forma simbólica
Cezar Xavier
Em meio à tensão da crise política que atinge o governo Dilma, tendo como alvo personalidades do PT, o ex-deputado federal José Genoino (PT-SP) evita dar entrevistas, ou mesmo ser fotografado, após a perseguição da mídia tê-lo envolvido num furacão de acusações, das quais foi absolvido, mas que deixaram cicatrizes em toda a família. Falar sobre a conjuntura política também está fora da pauta.
Foi nesse contexto que a revista Princípios encontrou-o em sua casa para falar de um assunto sobre o qual lhe agrada refletir, em particular neste momento de ataques aos valores da esquerda. Genoino queria relembrar Osvaldão e a Guerrilha do Araguaia, da qual foi um dos atores. Ele não perdeu nenhum dos espetáculos sobre aquele movimento de luta contra a ditadura militar. Opinou sobre o filme Osvaldão, sobre as peças Guerrilheiro Não Tem Nome e Guerrilheiras ou Para a Terra Não Há Desaparecidos, à qual foi assistir acompanhado da reportagem de Princípios e de sua companheira Rioco Kayano, também ex-guerrilheira. Leia trechos da entrevista:
É um grande mérito do filme “Osvaldão” o modo como resgata essa imagem inédita dele, falando e em movimento. Como foi ver o Osvaldão naquele filme tcheco-
Eu fiquei muito emocionado. Eu compreendo que a memória é transformadora, é revolucionária; como diz Leonardo Boff, é subversiva. A memória transforma o presente e o futuro. Esse movimento desses jovens, dessas pessoas que fizeram o filme Osvaldão e as duas peças, é um resgate fundamental da memória. Por isso, eu queria também parabenizar o apoio que o PCdoB, a Fundação Maurício Grabois, e outras instituições dão a essa iniciativa. Porque nós estamos rompendo com uma tradição no Brasil de esconder a memória, e matar a imagem dos líderes populares. Foi assim com Tiradentes, Zumbi, Antônio Conselheiro. Foi assim com Frei Caneca, foi assim com os índios. O que é a ideia de cortar a cabeça- Porque significa o pensamento, o futuro. E isso esteve presente no Araguaia.
Isso veio à tona quando eu estava vendo o filme, porque eu não conhecia as cenas de antes da guerrilha. Quando a gente tinha tempo, ele ouvia jogo do Botafogo pelo rádio e comentava que esteve na Tchecoslováquia. A gente sabia disso, mas não tinha as cenas.
Nesse sentido, o filme é muito interessante, porque traz a memória dele em vida. Não é uma memória morta ou parada no tempo. É uma memória que resgata uma figura humana que deu a vida de maneira heroica numa experiência política revolucionária.
Como eu morava no barraco dele, eu era seu sócio para efeito legal. Era um dos guerrilheiros mais conhecidos no Araguaia, um cara muito alegre em quem todos confiavam. Ele era uma espécie de conselheiro. Tanto, que na eleição de 1970, os Mutrans, que eram os representantes da oligarquia de Marabá, o convidaram para ser candidato pela Arena.
Nos treinamentos que a gente fazia, ele imprimia muita confiança, porque conhecia as técnicas muito bem; foi um dos primeiros a ir para lá e conhecia a mata como ninguém. E atirava muito bem, porque foi mateiro, caçador, garimpeiro e lavrador.
Não tinha tempo ruim. Estava sempre à disposição. Fazia tudo, era o primeiro. O Osvaldão aplicava aquela máxima da guerra do Napoleão. “Como você comanda uma tropa se tem possibilidade da derrota-” Ele disse: “Você tem que ir na frente.” Ele era assim. Estava sempre na frente.
Eu fiz uma viagem àquele cotidiano dos dois anos que eu vivi com ele. Inclusive, à noite, eu sonhei com aquelas imagens da guerrilha, dos companheiros, lá. A gente fazia treinamentos pesados de reconhecimento da mata, treinamento de emboscada, de natação, camuflagem, cavar buraco. Mas ao mesmo tempo a gente fazia cantorias, fazia festas, assava um porco queixada no mato, um veado, uma paca. E ele era muito alegre em todos esses momentos, porque ele era realmente um líder.
Desses depoimentos todos que as pessoas fazem no filme, amigos de infância, os camponeses, o que chamou a sua atenção- Teve alguma coisa que você não sabia ou que você lembrou-
Chamou-me a atenção o depoimento sobre o filho dele. Porque eu tenho algumas dúvidas se, realmente... Porque se não a gente saberia. Na guerrilha, no âmbito do destacamento e do grupo, o segredo era entre os destacamentos. O segredo era do ponto de vista militar, mas a nossa vida era muito conhecida. Então, eu fiquei assim meio... “Será-”. Eu fiquei com essa pergunta.
Os depoimentos apontam para um medo muito grande que os militares tinham do Osvaldão. Como é que isso era presente, Genoino-
Eu acompanhava isso como preso. Isso era presente nas histórias de como ele se escondia, nas histórias de que ele atirava bem. Tinha pacto com o Pai da Mata. Era fantasma. Tinha muitas histórias. Naquela região de selva existiam as histórias e as lendas. Quando eu estava lá, a gente assistia sessão de Terecô, uma espécie de macumba adaptada à selva, que nasceu no Codó do Maranhão. O Osvaldão ia nesses terreiros e era muito querido. A gente ia com ele, porque o Terecô aglutinava pessoas. Tirando a igreja de Marabá, não tinha mais nada do trabalho da igreja naquela região.
Inclusive, um lavrador ficou preso no mesmo buraco que eu e depois foi pra Brasília, porque ele era compadre do Osvaldão e não aceitava que falassem mal do compadre dele. “Ele não é isso que vocês estão falando não, é uma pessoa boa, que ajuda. Não tem nada disso.” E ficou preso por causa disso. As pessoas diziam: “Eles não são assim, não é isso.” E apanhavam, porque eles encaravam como se fosse uma defesa. E do Osvaldão falavam mais, porque era o mais conhecido.
Por isso que é interessante a gente notar que a dominação política ideológica se materializa além da força física, a força mental, a força simbólica. Por exemplo, por que é que era importante pendurar o corpo dele e sair da mata com o corpo dele pendurado- Para todo mundo ver que ele tinha morrido. Se não mostrassem aquilo, o pessoal ia achar que ele não tinha morrido. As pessoas ora tinham medo de falar bem dele, porque sofriam, ora tinham medo de falar mal. (risos)
Vocês devem ter imaginado um monte de coisas que podia ter acontecido. Que o exército podia aparecer, ou podiam passar por violência, tortura. Estavam preparados para algumas coisas. O que era o inimaginável, Genoino- Olhando agora para trás-
Ser preso.
Isso vocês não conseguiam conceber- Imaginavam que podiam morrer, mas...
Podia morrer... A gente dizia o seguinte: “Ou a gente volta morto, ou volta vivo para a cidade.” Como a gente conhecia muito a selva, treinava muito, apesar da precariedade de armamentos... A guerrilha sobreviveu dois anos e pouco não foi por acaso. A gente tinha uma autoestima muito grande, que produziu num primeiro momento uma subestimação do inimigo, porque a gente dominava a região.
Olhando para trás, vocês eram muito jovens, envolvidos numa situação inédita para vocês. Qual perspectiva era a mais presente- A vitória sobre a ditadura ou uma derrota violenta para o Exército-
Eu tinha 24 anos quando cheguei lá. E a gente era embalado por uma generosidade de fazer a revolução, que vinha da geração de 1968, que vinha de uma espécie de disponibilidade. Aquela geração foi emparedada, colocada contra uma parede de ferro. Ou ficava em casa e era preso, ou saía do país, ou então ia para a luta. Para a luta, naquele momento, nossa compreensão era a resistência armada. Da minha experiência no Araguaia, acho que é correto dizer que era uma geração que estava muito mais disposta, estava muito desprendida para morrer, do que para matar. Porque era um sonho que embalava. Então, naquele ambiente, que a gente já vinha de uma visão libertária de 1968, depois vem o AI-5, esse emparedamento. Eu acho que a resistência armada foi uma tentativa heroica de quebrar o emparedamento.
Quando a gente ficou sabendo que tinha sido descoberto, a gente não ficou num clima de apreensão e de preocupação. Eu estava lá, havia dois anos; tinha gente que estava havia três, cinco anos. Aquela vida da gente treinando, vivendo, trabalhando na roça. E quando é que ia, né- Então foi assim: “Finalmente!”
A própria vida, lá, a gente vivia de maneira feliz. Tanto que a gente começava a discutir entre nós que não podia haver uma adaptação excessiva. Porque a gente começava a gostar muito da selva. Tinha que gostar da selva, gostar dos rios, porque treinava nos rios; gostar da comida da região, das frutas e tal.
Mas você tem que aprender a sonhar. Eu acho que um dos problemas que nós estamos vivendo hoje é não sonhar com o futuro. Parece que falta o direito de sonhar com o futuro. Você tem que sonhar, porque senão você não anda, não enfrenta as dificuldades do presente. Eu acho que era aquilo que embalava uma visão ideológica, política, que tem esse sentido de resgate. Eu acho que é muito importante a gente resgatar para não cair na mesmice, na subserviência, nesse obscurantismo fascista, em que as pessoas não se rebelam, não se revoltam.
A gente está vivendo esse momento particularmente reacionário entre a juventude. Qual a importância desse conjunto de trabalhos sobre a Guerrilha do Araguaia aparecer nesse momento-
Nós estamos vivendo uma fase de restauração conservadora com graves consequências. Uma espécie de neofascismo, com um pensamento de direita destrutivo, que se baseia na destruição, na negatividade, na violência, no preconceito, na truculência. Um dos elementos importantes para a gente construir uma contra-hegemonia a essa restauração conservadora é resgatar a nossa história. Esses filmes, essas peças, têm um papel muito importante.
Tem uma memória que sempre foi negada ao povo brasileiro. A Lei de Acesso à informação foi muito importante para a gente acabar com o sigilo eterno. Você não pode negar a uma geração o direito à memória do seu país. O direito à memória e à verdade não pode ser negado. Porque nós temos a tradição no Brasil de negar. Canudos é conhecido por causa das reportagens de Euclides da Cunha e depois do livro de Vargas Llosa, que é mais recente. Você pega as rebeliões coloniais, as rebeliões populares, o fenômeno do cangaço, os 18 do Forte, a fundação do Partido Comunista, 1935. Há toda uma maneira de dominar e eliminar a memória. A eliminação da memória faz parte de uma ação no simbólico e na imagem. Porque a classe dominante brasileira sempre exerceu o seu domínio no simbólico, destruindo as referências. Não basta só matar, tem que destruir. Destruir o sentido da história, apagar. Eu acho que são muito importantes essas iniciativas naquilo que eu chamo de uma contracultura, de uma contra-hegemonia, a um risco que nós estamos vivendo de uma restauração conservadora.
Esse filme é muito especial, no sentido de que ele foi levado para a internet em busca de financiamento para garantir a exibição nas salas de cinema. Ou seja, é uma coisa inédita na esquerda, não-
Eu acho. A esquerda não pode se adaptar ao status quo que pressupõe a não compreensão política e uma certa covardia do bom mocismo. Você tem que trabalhar com uma atitude subversiva, de transformação. Essas iniciativas e o ineditismo delas mostram que tem um potencial; que se a gente coloca a cara, discute e forma, tem espaço. Agora, se a gente fica no adaptacionismo; se a gente fica no comodismo; se a gente fica no medo... O fascismo trabalha com a ideia do medo. A dominação capitalista, ao longo da história das dominações que vêm de antes do capitalismo, é da servidão. Tratar o ser humano dominado como um serviçal, como um indolente, como um povinho, que não tem autoestima. Assim, você não vai querer subverter a ordem, não vai querer levantar a cabeça. Esses jovens que estão com essas iniciativas merecem todo apoio. Você tem que furar o cerco.
Assim como era muito difícil imaginar, nos anos 1970, uma resistência heroica como foi a Guerrilha do Araguaia, é difícil, hoje, você sair do bom mocismo, do modus operandi, desse comodismo e não furar esses bloqueios. Porque há um bloqueio da dominação na política, na economia e na informação. O tripé do bloqueio. Quer bloquear essa tentativa de restauração conservadora – que é um fenômeno mundial de uma era- Pega nesses três pontos.
Qual sua impressão sobre a peça Guerrilheiras ou Para a Terra Não Há Desaparecidos-
Elas destacam o papel das mulheres, mas elas fazem isso dando uma ideia geral do que aconteceu na guerrilha, com o povo, com os guerrilheiros e guerrilheiras, e a situação da época, os discursos, os pronunciamentos. É muito interessante, porque ao destacar as guerrilheiras, e o papel das guerrilheiras, isso é feito dando uma visão ampla e global do que aconteceu lá. A repressão, a relação como o povo foi tratado, como as pessoas não sabiam do que acontecia lá. Através da participação das mulheres se resgata a memória de uma maneira muito viva, muito concreta e interessante.
Acho muito interessante o modo como elas misturam a linguagem teatral com a linguagem cinematográfica na peça. A terra é o centro da cenografia, fazendo que com que a compreendamos como a mãe dos desaparecidos e deserdados. A mãe-terra é um personagem importante da peça que nos envolve em muita emoção.
Ao colocar a questão da resistência, da luta, da rebeldia, da luta por causa e por ideais, numa situação daquela, bate muito no momento que a gente está vivendo hoje. Porque, hoje, há uma espécie de pessimismo, de senso comum de que não há alternativa, uma visão muito negativista. E, mesmo naquela situação extremamente difícil, você tem uma resistência muito grande, um heroísmo que esbanjava coragem, amor, valentia.
O maior gesto do ser humano é dar a vida por uma causa. A maior homenagem que a gente faz a quem dá a vida por uma causa é resgatar os valores e o ideário. Eu acho que eles foram felizes nesse sentido.
Em relação à peça de teatro Guerrilheiro Não Tem Nome, eu percebo um fascínio muito grande pelo major Curió. O modo como eles olham para esse personagem como a própria personificação do mal. O que você acha do modo como ele aparece na peça ou até no filme quando se fala dele-
Ali no Araguaia tudo era forte. Tudo era marcante. As lendas. A maneira como a guerrilha foi combatida. As torturas eram públicas. Os corpos eram tirados de helicóptero. Pessoas eram presas porque eram amigas da guerrilha. Eu fiquei com um jovem preso num buraco, e ele dizia: “Eu nunca imaginava que fazer mal a uma moça fosse me dar tanto sofrimento.” Ele tinha transado com uma menina, e estava fugindo para não se casar. E ele achava que era por isso que ele estava sofrendo. Eu disse: “Não é não!” Teve um outro que conheceu a modernidade através do arcaísmo medieval. Ele dizia que nunca tinha visto eletricidade, então ele perguntou: “O que é que tem naqueles fios que bota aqui [na orelha] e eu pulo como sapo-” Aí eu fui explicar a eletricidade, porque ele não conhecia a eletricidade, pois não tinha luz no Araguaia. Então, tudo lá era muito forte.
Fascinante, porque... Todo mundo foi marcado por uma coisa: “Esse é o Brasil!” As próprias lendas sobre a Transamazônica quando aquelas máquinas começaram a quebrar, a destruir aquelas árvores, o pessoal dizia: “Esse é o cão que está destruindo a selva.” Aquelas plataformas de abrir caminho. Helicóptero, o pessoal nunca tinha visto, eles chamavam de besouro! Aquele barulho que para chegar vai espalhando tudo.
Então, os personagens, de um lado e de outro, viveram intensamente aquilo ali. Marcou todo mundo, porque era muito forte. As condições sociais eram fortes, as condições econômicas estavam iniciando um processo que deu no que deu. Serra Pelada, a gente conhecia, a gente sabia que tinha ouro ali, a Serra das Andorinhas, a mata derrubada. Para nós, a castanheira, o mogno eram coisas sagradas. Aquilo não existe mais.
E como foi se ver como personagem na peça, no confronto com Joaquim Barbosa (ex-ministro do STF)-
Eu costumo dizer que os dois fatos da minha vida se cruzam sempre. Eu sinto que todas as escolhas que eu fiz na vida se cruzam. A minha experiência no Araguaia foi muito forte e se cruza com momentos que eu estou vivendo. É um cruzamento de coisas que não morrem. São eternas porque a gente jogou a vida para vivê-las. E tudo que você faz assim se eterniza.
Você tem que resgatar que toda essa história que a gente construiu a duras penas, com muito sangue, dor e sofrimento, valeu a pena. Tem várias maneiras de você sentir dor e sofrimento. Hoje, é mais sofisticado, mais burilado; naquela época era mais brutal, mais selvagem no sentido da força bruta. Então, tem uma mistura de sobressalto e botar os pés no chão, mas terminando tudo isso, valeu a pena essa vida que a gente construiu. Não são bens, riqueza, privilégio e vantagem pessoal, mas uma causa, um sonho.
Meu pai faleceu há quinze dias, 94 anos, e uma vez ele perguntou pra mim sobre coisas que, às vezes, embaraçam. Ele disse: “você queria sair da roça pra estudar, quando entrou na faculdade, a política lhe tirou e você voltou pra roça pra fazer guerrilha; você vira deputado famoso e não fica rico, e agora nessa situação”. Eu disse: “é, nós estamos lutando por uma causa que tem destino, que tem caminho, que tem pedras, que tem armadilha e que a gente tem que ser persistente”.
A esquerda jamais pode perder o sentido do caminhar, do sonhar, da luta, da solidariedade, da causa. Porque o que fica é isso. Isso fica! Os guerrilheiros do Araguaia se eternizam porque, naquelas condições, imaginar fazer aquilo que eles fizeram... Só se eternizam atos que têm causa, sonhos, e se colocam a vida.
Genoino foi entrevistado pelo jornalista Cezar Xavier, em sua casa, no Butantã, Zona Oeste de São Paulo, no dia 29 de janeiro de 2016. O Portal Grabois trará a entrevista completa em vídeo.