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Teoria

Edição 134 > O materialismo analisado do ponto de vista cosmológico e evolucionista (1)

O materialismo analisado do ponto de vista cosmológico e evolucionista (1)

Michel Paty
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Escolhi para o título deste artigo “O materialismo analisado do ponto de vista cosmológico e evolucionista”,mas eu bem poderia, do mesmo modo, ter optado por inverter a posição das expressões – e seria mantido o mesmo sentido: “A cosmologia e a evolução analisadas de um ponto de vista materialista”... Na verdade, o ponto de vista “cosmológico e evolucionista” científico, característico da ciência de hoje, é mantido por uma perspectiva materialista (aquela que se pode chamar de “materialismo científico”, segundo o qual a matéria –quer dizer, isso de que se constitui o mundo –é cognoscível pela ciência, sem restrição ou impossibilidade a priori). Ou, ao mesmo tempo, esse ponto de vista científico da ciência atual obriga o materialismo a não ser redutor, e o requer para tomar o lugar todo dela nas especificidades dos diversos estados de organização (dos diversos níveis) da matéria inanimada, das formas vivas e dos seres pensantes. Essa dupla (e dialética) consideração constitui a orientação de minha proposta.
Um primeiro tema de interesse, nessa perspectiva, é aquele da constituição “natural” do conhecimento do mundo pelos seres pensantes, que dele fazem parte e que continuam a lhe pertencer, acompanhado de uma reflexão sobre ele; reflexão que em nossa cultura chamamos de “filosófica”. Hoje, nós colocamos os problemas gerados pela confrontação desses conhecimentos e dessa reflexão em termos de “ciência e filosofia”. Nas diversas etapas da evolução e da história dos seres humanos e das sociedades, essas relações puderam ser colocadas de diversas maneiras. A humanidade não esperou chegar “a ciência” – no sentido em que a entendemos hoje – para se dedicar ao conhecimento dos objetos e dos fenômenos do mundo, para nele gerar novos com a sua marca e para conceber os modos de relação entre os humanos e o resto do mundo. Os saberes “objetivos” sobre a natureza foram obtidos, inseridos nos sistemas de crenças, formados a partir das dimensões filosófica e social (em uma base biológica) dos seres humanos que vivem em grupos ou povos. A imanência de nossa condição, que caracteriza o ponto de vista materialista, nos torna sensíveis a este aspecto: o conhecimento prático, teórico, da matéria do mundo, e a reflexão sobre ele e sobre o mundo em geral, e sobre a situação do homem no mundo, acompanham a hominização e a socialização, neles se carregando progressivamente de conteúdo, para as aquisições sucessivas e as transformações (aqui se incluem também as rupturas entre os sistemas de pensamento). E isso da pré-história à ciência contemporânea (que é decididamente “objetivo”), passando pelos sistemas assaz diferentes de conhecimento (míticos etc.).
Agora se deveria indicar o que nos ensina a ciência contemporânea – e isso será feito aqui em poucas palavras suficientemente sugestivas: a estrutura da matéria, a organização do ser vivo, a materialidade do pensamento (suas bases materiais neuronais), as particularidades do intersubjetivo e do social que fazem a história humana (e que contribuem também para a constituição do pensamento). O conhecimento científico visa a capturar a objetividade do mundo, isto é, a materialidade do mundo sob todos os aspectos, a unidade da matéria na diversidade de suas formas, mas também seu caráter evolutivo. Esse caráter, já é conhecido no que se refere às sociedades, pela história, igualmente no que se refere aos seres vivos, pela sua gênese e seu destino (com referência aos indivíduos do nascimento até a morte). Há bem pouco tempo também se sabe disso em relação à “biosfera” (evolução das espécies) e ao universo em sua totalidade (cosmologia evolucionista), sem mencionar o lugar de nosso nascimento e que nos abriga, o nosso nicho, nosso mundo (há pouco tempo “o Mundo” significa a Terra, dos Antigos até Magellan e a Júlio Verne), ou nossa nave (a “nave Terra”) no oceano cósmico (a Terra se transforma, como todos os outros corpos celestes: ver a ciência recente da tectônica das placas oceânicas e continentais do manto terrestre).
Nesse quadro, nesse painel do nosso conhecimento, há um arranjo natural entre todos os estados de organização e das formas da matéria, da matéria inanimada ao homem pensante e social, mesmo se a chegada desse último pareça bastante “improvável” (por causa do caráter único, singular – para o momento e em referência a um conhecimento totalmente empírico – do surgimento da vida): o fato é que esse acontecimento ocorreu, em ao menos um lugar do universo, e se instituiu atribuir-lhe causas naturais, isto é materiais, atualmente objeto de ativas pesquisas na confluência de várias disciplinas científicas (química, biologia, planetologia, “exobiologia” etc.). Esse acontecimento foi possível em outro lugar, sem dúvida segundo modalidades variadas, mas que devem – como deve ser – se unir, de uma maneira ou de outra (em razão da unidade da matéria), àquela que constatamos por nós mesmos.
E o pensamento também foi produzido (e, com ele, o social) na, e pela, matéria de que é feito o mundo. Daí, entre parênteses, a legitimidade e a necessidade de ciências para todas as etapas ou níveis de organização da matéria, inanimada, viva, pensante.
O fio condutor que atravessa tudo isso é, então, a unidade da matéria do mundo; daí, aquela (em princípio) do conhecimento da matéria e do mundo, isto é, a unidade da ciência. Mas esta última não foi adquirida, nem concluída: ela não se obtém pela redução das ciências umas às outras (todas são construções do pensamento humano, de natureza simbólica, e nenhuma pode reivindicar um ponto de vista definitivo e absoluto). A unidade, se não da ciência, pelo menos entre as ciências, se deixa decifrar primeiramente, pela coerência dos encaixes das representações dos diferentes níveis de organização da matéria. Ao que parece – ao passo que os conhecimentos científicos avançam, malgrado a grande diversidade de objetos e de proximidades –,essa coerência é cada vez mais estreita, e é bem isso o que se deseja de um ponto de vista materialista. Dito de outra forma, se faz da unidade da ciência um programa: supõe-se que a ciência (desde que ela disponha de condições para seu desenvolvimento, que engloba a liberdade de pensamento e uma vontade comum no nível social) sempre esteja em dinâmica de progresso rumo à unidade, local e globalmente.
A humanidade, assim, forma progressivamente para si um conhecimento objetivo do mundo, em termos de objetos, fenômenos, de níveis de organização ou de estruturação, por meio de conceitos, e conforme as condições e condicionamentos que são de natureza material, técnica, cultural, sociopolítica etc. Essa formação de conhecimentos se efetua no modo simbólico. Por natureza, não há identificação “ontológica” entre o conhecimento e o mundo (Spinosa dizia: “O conceito de cão não late”). No trabalho de conhecimento é necessário, pois, evitar os reducionismos (de objetos da ciência a outros), que correspondam, na verdade, a uma identificação perfeitamente abusiva e ilusória entre a matéria e nossa descrição dela. As categorias de pensamento (filosóficas) mantêm esse esforço de inteligência em vista do conhecimento pelos conceitos e os sistemas estruturados de conceitos, que são as teorias: elas constituem, do mesmo modo, os requisitos que devem ser tomados em conjunto, e eventualmente ser redefinidos com esse objetivo – entre as quais, unidade, especificidades, variedades, emergências, adequação, objetividade, veracidade, realidade... e, é claro, matéria.
Pertencimento ao mundo e recuo ou distanciamento. Na história da filosofia, frequentemente se confronta a matéria ao espírito, a imanência à transcendência, a necessidade à liberdade, a objetividade aos valores. E onde encontrar lugar, em uma filosofia materialista, para a noção de significação? Matéria, liberdade, significação, valores: questões tradicionais, ou que surgem imediatamente após ao que dissemos antes. A matéria nega o espírito? A resposta é não, seguramente! Deveria se desenvolver sobre tais questões um trabalho de argumentação filosófica aprofundada. Eu ficarei aqui com algumas observações, propostas de maneira sintética como alguns tipos de aforismos.
Tomemos a “transcendência”: considerada de um ponto de vista materialista (em vez de negá-la), ela não seria mais entendida como fora do mundo, mas como uma tomada de recuo em relação à imersão no mundo; essa tomada de recuo é própria do homem. O homem, ser vivo e pensante, produzido pelo mundo material, mas com essa característica de poder se colocar à distância e que, assim sendo, descobre e instaura sua liberdade.
O que seria, em contrapartida, a imersão no mundo sem recuo? Certas organizações sociais e sistemas de crenças nos fornecem exemplos disso. O pensamento das sociedades xamânicas ou totêmicas não concebe a separação entre o sujeito e o objeto, entre o que nós chamamos de razão e seus efeitos. A maior parte das sociedades antigas, se não todas, não separa razão de mito. Isso também se aplica para as sociedades “históricas” que dispunham de escrita: na Babilônia do deus Baal, na Grécia ou na Roma antigas com seus deuses do Olimpo, ou nas sociedades dos antigos Mexicanos que praticavam sacrifícios humanos, o destino dos indivíduos (e das sociedades) seria marcado pela fatalidade sem escapatória, característica dessa imersão total. É também o caso, sob outras formas, das sociedades antigas – mas também de algumas contemporâneas – regidas por um único poder, constrangedor, de uma força guerreira, e, mais próximo de nós, de um Estado totalitário (que reina pela força policial e militar, apoiada por consenso, isto é, por uma submissão consentida). E ainda, sob as aparências de um individualismo de fachada, em nossas sociedades da atual “mundialização” em curso, o poder e o primado do dinheiro, e a economia liberal do mercado instituída como referência (o deus Mercado), como opressão inevitável das sociedades humanas: mas isso não passa – nós o sabemos – de uma ideologia revestida de aparências de uma pretensa ciência.
Sobre esse ponto, concluímos então: transcendência e liberdade não estão em oposição ao ponto de vista materialista, entendidas no sentido que nós delineamos, e parece mesmo que isso seja exatamente o contrário. De resto, se constata igualmente que elas fazem parte das realidades do nosso mundo: nós as vemos se manifestar no ato, além dos testemunhos individuais, na sociedade e na história dos povos (ver, por exemplo, o que representa a figura de Antígona, para o que é a Antiguidade; ou, de um modo geral, os heroísmos, as recusas, tudo ao longo da história).
Ao mesmo tempo que a experiência da liberdade, o homem propõe a significação e declara abertamente que conhecer tem um sentido. O conhecimento implica a ideia de sentido, mesmo se os dois não se confundam. Compreender é, além de conhecer, além de saberes adquiridos, formar um sentido, e quando nós interiorizamos esse sentido os conteúdos do conhecimento nos tornam inteligíveis: nós nos apropriamos deles nos nossos pensamentos. E resulta uma diversidade de maneiras de compreender, conforme as particularidades individuais das pessoas, em torno de um mesmo núcleo de objetividade. Daí resultam as exigências a se levar em conta no ensino. Daí vem também a possibilidade de invenção e de criação tanto na ciência quanto na arte.
Pode-se também considerar o sentido em uma acepção mais global que a dos conhecimentos ou compreensões particulares, locais. Neste sentido, não pode ser elucidado totalmente e sua formulação parece ultrapassar o que se pode dizer ou analisar disso. É “metafísico”, às vezes ilusória e às vezes não. (A consciência de ser é indescritível: nascimento e justificação da poesia e da arte).
Precisamente, conhecer e compreender mostram que é possível formar a ideia de um sentido, mesmo nessa dimensão totalizante e valorizante que vincula à metafísica, sem relacioná-la a um Deus. Para Camus, com ou sem Deus, o mundo é absurdo: que um tal julgamento seja possível nos faz ver suficientemente que o sentido não se identifica a um Deus. O sentido ou o absurdo são julgamentos que se situam fora da matéria patente, certamente, mas nós podemos formulá-los sem o auxílio de nenhuma Revelação, por nossos próprios recursos (aqueles da inteligência humana).
Esses julgamentos manifestam simplesmente o recuo que o homem toma em relação à matéria que o constitui. O pensamento tem esse poder de reflexão sobre ele mesmo (de reflexividade), do qual uma forma intensa é a consciência, que é a referência da ética e da responsabilidade, e que é subjacente ao direito, regulador das sociedades, ao menos aquelas que sejam de uma forma ou de outra referência para a consciência e a responsabilidade. De um modo geral, o que se chama de “espiritual” pode ser abordado dessa maneira imanentista, sem ser rebaixado, e se mantendo valorizado.
Pode-se procurar razões naturais para a existência dessa dimensão de transcendência na imanência, a partir de uma única matéria (para bem além de um simples arranjo de neurônios: por exemplo, a revolta de um indivíduo ou o sofrimento diante da morte, que na verdade o faz tomar a direção oposta, e até inventar deuses: ritos e crenças cuja base é antes de mais nada social). Mas permanece o fato de que essas crenças, e as ações que a elas se relacionam, são formadas, formuladas, comunicadas, retomadas e escolhidas pelo ser humano material, e constituem daqui para frente uma referência para ele – referência de significação, de ação ou de justificação (daí a formação histórica dos valores).
Outras questões mereceriam ser lembradas e discutidas nessa mesma perspectiva. Vou me limitar, para concluir, a dois comentários sobre esse que é ou que não é –em última análise, de uma forma fundamental – o materialismo como posição filosófica.
O materialismo não é, e não pode ser uma religião, e aquele que professa uma filosofia materialista não pode se comportar como o detentor de uma fé doutrinária e apresentar a sua filosofia como um dogma. (Fé ou dogma, ela não seria mais uma filosofia, que pressupõe raciocínio e liberdade de espírito). É uma escolha voluntária, ponderada, fundamentada sobre uma aproximação da significação do mundo e de nossa situação no mundo. Essa escolha, ou essa decisão, pressupõe um pensamento crítico, que implica a ideia de sujeito, a consciência de ser sujeito (reflexividade e transcendência: consciência) e uma ideia da liberdade: sujeito e liberdade são mantidos por sua materialidade, que os colocou no mundo. As categorias que sustentam nossa reflexão não são fixas: nós devemos desenvolvê-las para que isso seja possível. Sem esse questionamento nosso entendimento de mundo e de nós mesmos poderia ser contraditório ou até monstruoso.
O materialismo não é uma ciência: é uma posição, antes de mais nada, filosófica, e também metafísica, aberta às contribuições das ciências, à ciência em sua diversidade e em sua unidade, e que permite se conceber o mundo em sua imanência.

* Michel Paty é diretor emérito de pesquisa, do Centro Nacional de Pesquisa Científica (CNRS), Laboratório Sphere do CNRS e da Universidade Diderot-Paris 7. 

Tradução de Maria Lucilia Ruy.

NOTA
(1) Texto original da conferência em espanhol, na Jornada de Estudos materialistas, “Introdução à História do Materialismo”. Arquivo e Biblioteca-Chile na Suécia. Estocolmo (Suécia): Livraria Latino-Americana, 15 de junho de 2007.

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