Cinema
Edição 134 > Êxodo: como Hollywood e o sionismo alteram o passado
Êxodo: como Hollywood e o sionismo alteram o passado
Como tudo o que Hollywood produz sobre o Oriente Médio, Êxodo: Deuses e Reis, de Riddley Scott (2014), não foi lançado sem intenções. Ele assume claro posicionamento de defesa ideológica do plano sionista de Israel de colonizar a Palestina, sob o véu de um mito religioso comum a judeus, cristãos e muçulmanos. Para fazer isto, converte a história em estória e redesenha o passado para servir a seus interesses no presente

"Quem controla o passado controla o futuro.
Quem controla o presente controla o passado"
(George Orwell)
No cinema, o público ávido por devorar sacos de pipoca hipnotiza-se com uma tela gigante e por isto raramente interpreta as mensagens explícitas e subliminares, transmitidas entre detalhados cenários 3D com marcantes efeitos especiais. Assim, enquanto pensa estar entretendo-se, o expectador assimila a visão de mundo que o filme objetiva passar. Na condição passiva, com toda a atenção voltada ao filme enquanto mantém um comportamento ritmado comendo, ondas hipnóticas enviam-lhe mensagens, informações sutis ou abertamente expostas. Logo, ele manifestará na vida aquilo que lhe foi conscientemente embutido e inconscientemente assimilado.
Percebendo o poder do cinema, os Estados Unidos costumam fazer com que os filmes de Hollywood sirvam a seus intentos políticos. O personagem Moisés já havia sido explorado no épico Os Dez Mandamentos, de 1956, que cumpriu o papel de colaborar na propaganda ideológica capitalista no contexto da Guerra Fria. O filme associava a -tirania- de um -ditador- ao Faraó, e o líder hebreu apresentava-se como um típico galã estadunidense. Este era o contexto da divulgação do relatório de Kruschev incriminando Stálin pelo -terror- na União Soviética.
Recentemente, Guerra ao Terror (2008) e Argo (2012), ambos ganhadores do Oscar de -melhor filme-, trataram da temática dos conflitos no Oriente Médio. Tais filmes expuseram a posição dos Estados Unidos acerca da Guerra do Iraque (2003-2013) e da Revolução Iraniana (1978), justificando perante a -opinião pública- suas políticas de conflito e hostilidade. Isto na conjuntura em que os Estados Unidos operam o projeto -Grande Oriente Médio-, que visa a redesenhar o mapa político da região, a fim de assegurar-lhes e a seus aliados, posições geopolíticas estratégicas para controle do petróleo e do gás natural (1). Israel tem papel central nesta articulação, o que demanda que ele consolide-se como Estado e garanta um amplo território que assegure sua expansão demográfica. Para realizar tal empreendimento, Israel faz uma limpeza étnica com os palestinos e avança anexando territórios (2).
Assim, em 2014, após um massacre de Israel em Gaza, que vitimou mais de 2,2 mil palestinos, em um contexto no qual o Estado sionista de Israel avança na colonização e ocupação da Cisjordânia e de Jerusalém, surge um filme que fala em -terra prometida- de um -povo de um deus-, somando-se às inúmeras campanhas publicitárias da guerra israelense pela tomada da Palestina.
Hebreus, judeus, israelitas, sionistas ou israelenses- Filisteus, árabes, cristãos, muçulmanos ou palestinos-
O filme Êxodo começa referindo-se a -um deus que nunca abandonou seu povo-, -um povo que não abandonou seu deus- e -que nunca se esqueceu de sua terra-.
Tais slogans não são simples histórias bíblicas. São as bases da ideologia sionista, criada por Theodor Herzl no século XIX para implantar um Estado só para judeus na Palestina, num lugar onde propagandisticamente encontrariam -uma terra sem povo para um povo sem terra- (3). No entanto, quando Israel foi fundado, em 1948, havia 2 milhões de palestinos habitando o território, doqual 700 mil foram expulsos, numa operação de limpeza étnica onde se começou a construir o Estado sionista. Os sionistas invadiram, ocuparam e colonizaram as terras palestinas, em um lugar que, mesmo segundo seu livro sagrado, pertencera a outros povos, mas que conquistaram e instalaram o efêmero reinado de Israel.
Para o judaísmo, cristianismo e islamismo, Abraão é o patriarca dessas tradições religiosas e seus filhos Ismael e Isaac são considerados os antepassados dos árabes e hebreus, respectivamente. Segundo a Torá judaica (o Velho Testamento bíblico), há referência a povos que habitavam a Palestina antes dos hebreus. Originário de Ur na Mesopotâmia (atual Iraque), Abraão teria mudado para Canaã (Palestina), onde teria sido morador na terra dos filisteus, os ancestrais dos atuais palestinos (4). Na Bíblia, um Deus se apresenta a Abraão e promete a ele a terra de Canaã, pedindo em troca o sacrifício de uma novilha, uma cabra, um carneiro, uma pomba branca e uma rola (5). Esse Deus teria revelado a Abraão que seus descendentes ficariam por 400 anos oprimidos numa terra estrangeira e depois voltariam a Canaã, onde tomariam as terras entre o Rio Nilo no Egito e Eufrates na Babilônia, pertencente a outros 11 povos mencionados (6).
Segundo a versão bíblica, José, um descendente de Abraão, foi vendido pelos irmãos como escravo e levado ao Egito. Lá, ele passou a interpretar sonhos e ganhou a confiança do Faraó, que o elevou a um alto posto administrativo e, após falecer, foi mumificado segundo os costumes egípcios (7). Depois, os filhos de Israel (pai de José) teriam passado a habitar o Egito, onde supostamente multiplicaram-se, mas um novo Faraó que não conhecera José passou a oprimi-los (8). Neste momento começa o livro Êxodo e o próprio filme, que descreve a hipotética saga de Moisés para a libertação de seu povo que, ao final, teria saído do Egito em busca da -terra prometida- pelo Deus a Abraão. Contudo, ao pesquisar a historiografia judaica, o professor da Universidade de Tel Aviv, Shlomo Sand, mostra que essas narrativas não podem ser interpretadas como fatos históricos, mas como mitos religiosos. Tais livros não foram escritos por Moisés ou por seus contemporâneos, mas séculos depois, quando viria a surgir a cultura judaica até então embrionária (9).
Nas escrituras bíblicas, após a morte de Moisés, Josué teria liderado uma invasão a Canaã, onde são citadas 7 nações que viviam na -terra prometida- (10). Ao chegar às margens do Rio Jordão, Josué ataca Jericó, onde realiza um massacre: -E tudo quanto havia na cidade destruíram totalmente ao fio da espada, desde o homem até à mulher, desde o menino até ao velho, e até ao boi e gado miúdo, e ao jumento- (11). Entretanto, de acordo com Finkelstein e Silberman (2003), as evidências históricas e arqueológicas apresentadas por diversos acadêmicos apontam que os hebreus não teriam conquistado Canaã, pois a maior parte deles já estava ali: eles eram os cananeus que desenvolveram uma nova cultura, contrariando a Bíblia, que afirma que os mesmos haviam sido expulsos e dominados pelos hebreus.
Na versão bíblica, o reino de Israel é descrito como de grande importância. Mais uma vez, arqueólogos e historiadores divergem da versão religiosa. A estela de Meremptah é a única menção a Israel até agora encontrada em um documento egípcio. Ela narra um massacre cometido pelo Faraó. Segundo Dijk (2000, p. 294), a estela refere-se a Israel como tribo e não como país ou cidade. Ou seja, a antiga Israel foi, na verdade, uma pequena confederação de tribos. A própria Bíblia conta que tal reino foi efêmero, pois duraram apenas os reinados de Saul, Davi e Salomão. Ou seja, poucas décadas, vindo a fragmentar-se após a morte do último (12).
Segundo a historiografia judaica, com a conquista da Palestina, os hebreus foram aprisionados e tornados cativos na Babilônia e depois na Pérsia. Ao deixarem o Egito, eles eram primitivos e ignorantes (13), mas na Pérsia estudaram e aprenderam a religião local, a vida civilizada e a ciência. A partir deste momento, sistematizam o judaísmo como a religião dos hebreus. Portanto, ao retornarem à Palestina, agora possuíam um sistema religioso baseado na lei mosaica e que até o presente são as bases do judaísmo entendido como religião de um povo exilado.
Quanto à diáspora, segundo a historiografia judaica tradicional, ela foi desencadeada pela expulsão dos judeus da Palestina pelos romanos após a Revolta de Bar Kokhba no século II d.C. Isto explicaria o porquê de haverem tantos judeus espalhados pelo mundo. Mas esta versão é contestada pelo professor da Universidade de Tel Aviv, Shlomo Sand (2009), que verificou que conversões em massa ao judaísmo ocorreram na Europa durante a Idade Média. Esta é a tese central de sua obra A invenção do povo judeu, que derruba a ideia de o judaísmo ser uma religião de um povo que guarda uma mesma herança genética. Para o autor, no século XIX, no contexto em que os países europeus inventavam seus mitos fundadores nacionais, começam a surgir judeus que passaram a associar a ideia de povo hebreu a uma nação. É neste contexto em que é cunhado o termo -israelita- àqueles que seguiam a -religião de Moisés- e que consideravam a palavra -judeu- como carregada de conotação negativa (14). No filme, um erro anacrônico aparece quando Moisés menciona o significado de israelitas, 3 mil anos antes de o termo ter sido criado.
Assim, no I Congresso Sionista Mundial, ocorrido em 1897 na Basileia, teve início um movimento nacionalista judaico que objetivava a criação de um Estado para judeus. O sionismo escolheu colonizar a Palestina. Com a ascensão do nazismo na Alemanha, aumentaram as levas de judeus imigrantes à Palestina e, após o fim da Segunda Guerra Mundial, com o mundo chocado com as revelações sobre o holocausto, o movimento sionista conseguiu força suficiente para aprovar na ONU a partilha da Palestina em 1947 e a criação do Estado de Israel no ano seguinte.
No filme Êxodo, na ocasião da fuga de Moisés com os hebreus do Egito, a ideia de um povo -retornando à sua terra- aparece com força. As cenas sugerem uma analogia às imagens da saída dos judeus sionistas da Europa como sobreviventes do nazismo. Para tornar ainda mais apelativo, aparecem cenas de o Faraó egípcio exibindo-se como um autoritário descontrolado, ordenando por ódio queimar os hebreus, empilhar seus corpos e enterrá-los em valas comuns. Uma cena comum na Auschwitz nazista, muito improvável no Antigo Egito, porém útil aos fins propagandísticos da película. Afinal, cada vez mais o holocausto é evocado a fim de que Israel justifique suas práticas, tão covardes quanto as dos nazistas (15).
Mas quando os judeus sionistas chegaram à Palestina, havia um povo que possuía raízes ainda mais remotas que a dos próprios hebreus. Um povo de cultura árabe, predominantemente muçulmano, mas também formado por cristãos e judeus que viviam na -Terra Santa-. Mas o sionismo jamais se dispôs a criar um Estado que incorporasse os habitantes nativos. Enquanto a história bíblica sobre a invasão, ocupação e expulsão dos habitantes de Canaã pelos hebreus é apenas um mito religioso, a invasão, ocupação e expulsão dos habitantes da Palestina atual pelos sionistas começou no século XX e continua no XXI, com violentas atrocidades até maiores que as bíblicas.
Em suma, apesar de o sionismo ser uma ideologia nacional baseada num mito religioso, tal narrativa choca-se com a realidade quando a Bíblia é contraposta a fontes históricas e descobertas arqueológicas. Mas o filme Êxodo parece estar pouco interessado em recontar a história baseada em fatos, preferindo reforçar os caracteres que venham a legitimar o projeto sionista de colonização da Palestina.
Antigo Egito da egiptologia x Antigo Egito da Bíblia e do filme
Um breve estudo de egiptologia mostra o quão distante está o filme e a própria Bíblia do que se passou de fato no Egito de Ramsés II.
Primeiro: as pirâmides que aparecem no filme foram erguidas nas 3ª e 4ª Dinastias faraônicas (século XXIV a.C.) (16), enquanto a história do filme é ambientada na 19ª Dinastia (século XIV a.C.). Ou seja, mil anos separam as pirâmides do Faraó Ramsés II (17). No período em questão, a capital egípcia era Per Ramsés e não Memphis. Na cena do funeral de Seti I, ele aparece velado em Abu Simbel que, na realidade, foi construído décadas depois, a milhares de quilômetros ao sul da capital. A batalha de Kadesh, descrita no começo do filme, ocorreu no reinado de Ramsés II e não no de Seti I. Outro erro, segundo alguns rabinos, é que na Bíblia cristã há uma tradução mal feita de Yam Suph (---- ---), traduzido do hebraico como -Mar Vermelho-, quando o correto seria -Mar de Juncos-. Portanto, Moisés não teria aberto o Mar Vermelho, mas atravessado o vale de juncos das alagadas regiões do Delta Egípcio. Isto desmontaria uma das cenas principais do filme, de que Moisés teria aberto um mar, quando no máximo teria cortado um atalho entre os juncos.
A ciência e a religião também não falam a mesma língua acerca do destino do filho primogênito de Ramsés II. Estudos forenses têm demonstrado que a ossada encontrada na tumba KV5 no Vale dos Reis é pertencente a Amun-her Khepeshef (18), o filho primogênito de Ramsés II. Segundo os resultados da análise cranial que levaram à reconstrução facial (19), ele morreu por um golpe no crânio, provavelmente um ferimento em uma batalha e não por uma praga de um -anjo da morte-, como descrito na Bíblia (20). Ao contrário do que mostra o filme, o filho de Ramsés não era uma criança, mas, pela conclusão dos peritos, um homem com idade entre 25 e 30 na ocasião do óbito. Segundo as inscrições egípcias, ele era comandante dos exércitos e responsável pela administração pública, agindo como uma espécie de primeiro-ministro de Ramsés II. Portanto, nada indica que seu falecimento tenha alguma relação com a mitologia bíblica.
Por fim, o maior de todos os erros: a questão da suposta escravidão dos hebreus. De acordo com Malek (2000, p. 94), na Oxford History of Ancient Egypt, a economia egípcia não era baseada no trabalho escravo. Estudos contemporâneos em escavações e documentos da época atestam que a escravidão jamais foi uma relação social importante no Egito faraônico, prevalecendo relações do tipo -modo de produção asiático- nas quais o Estado planejava e administrava a economia, sendo o principal empregador, com sua rede de palácios, templos e complexos militares. Nesta economia inexistia dinheiro, sendo os salários pagos com alimentos, bens, terras e títulos. Devido ao caráter redistributivo da economia a partir do Estado, o excedente agrícola era comprado com outros bens manufaturados de diversas naturezas, tendo o mercado um papel secundário (21).
Isto fica claro com os estudos derivados das escavações dos túmulos dos operários, pedreiros e arquitetos das pirâmides de Giza, realizadas por arqueólogos da Universidade de Chicago em parceria com a Universidade de Harvard. Neles, foram revelados fatos surpreendentes, como a forma de recrutamento, assalariamento e bonificações aos trabalhadores das construções. Construir as pirâmides de acordo com a mentalidade do Antigo Egito era participar de uma obra nacional, para a qual era requerida qualificação especial, e que espiritualmente significava trabalhar para os Deuses, pois o Faraó era um Deus na Terra. Os títulos, bens e propriedades registrados nos túmulos dos operários mostram que este tipo de trabalho era, além de muito bem-remunerado (22), um orgulho a ele, à sua família e à vila que o -cedia- à construção deste empreendimento gigantesco que mobilizava todas as províncias do reinado.
No entanto, como a construção das pirâmides ocorreu em cerca de um milênio de distância do reinado de Ramsés II, as relações sociais de produção poder-se-iam ter sido alteradas. Mas as escavações na vila operária de Deir Al Medina (23), que compreendeu o período em questão, demonstram que pedreiros, pintores, escultores e cavadores de tumbas ainda viviam em condições sociais muito melhores do que as da maior parte da população egípcia da época: os camponeses.
Assim, a egiptologia moderna cada vez mais se afasta da narrativa bíblica sobre a suposta escravidão dos hebreus no Egito. Até porque não há menção, em documentos egípcios da época, à existência de um povo -hebreu- habitando o país, muito menos de um irmão adotivo de Ramsés II que se chamava Moisés. Isto não quer dizer que Moisés não tenha existido nem que os hebreus jamais tenham habitado as terras egípcias. Há uma hipótese de que Moisés talvez tenha sido um seguidor da religião monoteísta do Faraó Akhenaton (18ª Dinastia), a qual guarda muitas similaridades com a religião hebreia. A relação entre Moisés e Akhenaton foi proposta por Sigmund Freud (24). Moisés não teria sido líder de um povo, mas de uma religião que em algum momento fundiu-se com a dos seguidores do deus de Abraão.
Há que se destacar que no Antigo Egito havia facilidade de integrar estrangeiros na economia em momentos de apogeu como fora no reinado de Ramsés II. Segundo o professor de egiptologia da Universidade de Cambridge, Toby Wilkinson, é altamente provável que trabalhadores falantes da língua semita foram empregados na construção da nova capital, Per Ramsés, mas eles eram mais próximos de trabalhadores imigrantes do que de escravos (25). Considerando que os hebreus eram beduínos, em tempos de fome eles podem ter buscado emprego no Egito que absorvia mão de obra nas obras públicas. Por eles serem imigrantes de pouca formação, a maioria ocuparia trabalhos pesados, numa relação de assalariamento e não de escravidão.
Considerando a hipótese de haver um fundo de verdade na história bíblica, poder-se-ia supor que, como não havia escravidão, os hebreus foram dispensados (e não libertados) no esteio de uma crise econômica, que poderia até ter surgido das tais pragas, entendidas como fenômenos naturais recorrentes na região. A água do rio pode ter se sujado de lama vermelha pelas fortes chuvas na cabeceira do Nilo. As rãs podem ter escapado das águas barrentas, deixando o terreno livre para moscas e piolhos causarem doenças nos animais, transmitindo sarna aos humanos. Uma chuva de granizo atinge as plantações, seguida de uma nuvem de gafanhotos que chegam com as tempestades de areia do deserto que cobrem o céu. Um ano difícil como este poderia justificar a dispensa de parte da força de trabalho do Faraó.
No contexto deste filme, a imagem da libertação de um povo de uma escravidão que nunca existiu procura reafirmar a matriz principal da propaganda de guerra israelense: que os israelitas sempre foram vítimas, desde os tempos do Antigo Egito, do imperialismo romano, do antissemitismo europeu, do nazismo alemão até finalmente chegar aos -perigosos terroristas palestinos que ameaçam a existência de Israel-. Ou seja, Israel, ao colocar-se sempre na condição de vítima, usa como recurso a ideia de que agride para defender-se, invertendo os papéis reais (26). Assim, o filme deixa de mostrar outras partes da Bíblia que poderiam comprometer a imagem de herói hollywoodiano de Moisés, como a seguinte:
-Pôs-se em pé Moisés na porta do arraial e disse: Quem é do Senhor, venha a mim. Então se ajuntaram a ele todos os filhos de Levi. E disse-lhes: Assim diz o Senhor Deus de Israel: Cada um ponha a sua espada sobre a sua coxa; e passai e tornai pelo arraial de porta em porta, e mate cada um a seu irmão, e cada um a seu amigo, e cada um a seu vizinho. E os filhos de Levi fizeram conforme a palavra de Moisés; e caíram do povo aquele dia uns três mil homens- (Ex. 32:26-28).
Em suma, o Moisés do filme precisou ser diferente do Moisés da Bíblia para tornar-se mais polido de sua imagem cruel que compõe o mito original, mas nenhum deles se parece com o Moisés que porventura possa ter existido.
Com relação a Ramsés II, o Grande, ele ficou conhecido como o maior de todos os Faraós do Egito. Terceiro Faraó da 19ª Dinastia, Ramsés viveu 90 anos, dos quais 67 comosoberano do Alto e do Baixo Egito. Foi o Faraó que mais obras construiu em toda a história; ergueu cidades, reformou e estendeu antigos templos como o gigantesco complexo de Luxor e Karnak, construiu novos centros religiosos, palácios e fortificações (27). De norte a sul do Egito, mesmo passados mais de 3 milênios de sua existência, seus monumentos são encontrados em pé, alguns muito bem-conservados, e suas colossais estátuas marcam uma das eras de maior prosperidade econômica.
Muito da abundância do período de Ramsés II deveu-se às suas conquistas militares e diplomáticas. Conseguiu um tratado de paz com os Hititas, abriu rotas comerciais com a Núbia e a Líbia, assegurou a presença egípcia em minas na África e no Oriente Médio e estendeu as fronteiras egípcias às maiores dimensões em toda a história, o que incluía o extremo-sul do Egito (Abu Simbel) e toda a Palestina (28). Em vida, construiu uma suntuosa cidade chamada Per Ramsés na região do Delta, que se tornou a capital do Egito. Seu templo funerário, o Ramesseum, é colossal, e séculos após sua morte continuou como local de peregrinação. Sua múmia foi enterrada no Vale Reis e hoje se encontra no Museu do Cairo junto de outros grandes Faraós. Ramsés II foi o símbolo de um período de glória, conquistando o que mais os egípcios almejavam: a imortalidade, a fim de que o nome jamais deixasse de ser lembrado.
Ramsés II pode ser considerado um dos maiores monarcas do mundo antigo e o Egito como uma das mais duradouras e prósperas civilizações na região do Oriente Médio. Não é surpresa, portanto, que outros povos tenham buscado suas referências nos egípcios afim de criarem seus próprios mitos. Influências que se estendem para até além das já estudadas teológicas, filosóficas, místicas, culturais e linguísticas.
Conclusão
O filme Êxodo: Deuses e Reis mostra como a história pode ser invertida, modificada e adulterada para fins políticos. Ramsés II, o homem que gravou seu nome como o maior estadista de uma das mais longevas civilizações do mundo antigo, é descrito como derrotado por um líder religioso que jamais se soube se de fato existiu. Este líder teria inspirado a criação de um reino que na verdade era apenas uma confederação de tribos que durou algumas décadas, mas que justifica a implantação atual de um Estado sionista chamado Israel. Um Estado moderno que em nome de guerras de conquista de território, que supostamente ocorreram há 3 milênios, coloca-se no direito de cometer os mesmos métodos brutais do mundo antigo e realizar massacres bíblicos, como se isto fosse uma obra divina.
Se Moisés existiu, até agora a arqueologia não encontrou nada que o afirmasse. O fato é que a civilização egípcia, dada sua grandeza, inspirou povos como os gregos, romanos, mesopotâmicos e mesmo o islamismo, cristianismo e judaísmo. Mas como vivemos em tempos de manipulação de informação, qual dificuldade há em se dizer exatamente o contrário, quando isto atende aos poderosos interesses da oligarquia financeira, que financia o sionismo-
*Thomas Henrique de Toledo Stella é historiador pela FFLCH/USP, mestre em Desenvolvimento Econômico pelo IU/Unicamp e professor de Relações Internacionais da UNIP. É também Secretário Geral do Cebrapaz e membro da Comissão de Relações Internacionais do PCdoB
NOTAS
(1) Ver BANDEIRA (2013).
(2) Ver PAPE (2006).
(3) Ver FINKELSTEIN (2003).
(4) Gn. 21:34.
(5) Gn. 15:9-10.
(6) Gn. 15:13-21.
(7) Gn. 37-50.
(8) Ex. 1:7.
(9) Ver SAND (2009, cap. 2).
(10) Js. 3:10.
(11) Js. 6:21.
(12) Rs. 12:21-28.
(13) SAND (2009, p. 69).
(14) SAND (2009, p. 67).
(15) Ver FINKELSTEIN (2000).
(16) Ver MALEK (2000).
(17) Sobre o reinado de Ramsés II, ver DIJK (2000).
(18) Em egípcio, seu nome significa -Amon está com seu poderoso exército-. Sobre as descobertas na KV5, ver WEEKS (1998).
(19) BOYLE (2004).
(20) Ex. 11:5.
(21) REDFORD (2001, p. 422-436).
(22) MALEK (2000, p. 95).
(23) Ver REDFORD (2001, pp. 368-369).
(24) Ver FREUD (1939).
(25) Wilkinson (2010, p. 336).
(26) FINKELSTEIN (2003) fez uma análise do discurso sionista sobre o uso da linguagem da força a partir davitimização de Israel.
(27) Ver DIJK (2000, p. 291).
(28) WILKINSON (2010, p. 302).
Referências bibliográficas
BANDEIRA, Moniz. A segunda Guerra Fria. Civilização Brasileira, 2013.
BÍBLIA ONLINE. Disponível em . Acesso em 15-01-2015.
BOYLE, Alan. A Pharaoh firstborn son is resurrected.Publicado em 12/1/2004. Disponível em
DIJK, Jacobus. -The Amarna Period and the Late New Kingdom-. In: SHAW, Ian. The Oxford History of Ancient Egypt. Oxford University Press, 2000.
FINKELSTEIN, Norman. A Indústria do Holocausto. Rio de Janeiro: Record, 2000.
FINKELSTEIN, Norman. Image and reality of the Israel-Palestine conflict. London: 2003, 2ª ed.
FINKELSTEIN, Israel & SILBERMAN, Neil Asher. A Bíblia não tinha razão. São Paulo: A Girafa, 2003.
FREUD, Sigmund. Moses and Monotheism. Londres: Hogarth Press e Instituto de Psicanálise, 1939.
WEEK, Kent. The Lost Tomb. New York: William Morrow, 1998.
MALEK, Jaromir. -The Old Kingdom-. In: SHAW, Ian. The Oxford History of Ancient Egypt. Oxford University Press, 2000.
PAPPÉ, Ilan. The Ethnic Cleansing of Palestine. Oneworld, 2006.
REDFORD, Donald. Oxford Dictionary of Ancient Egypt. Volume I. Oxford University Press, 2001.
SAND, Shlomo. The Invention of the Jewish People.New left books, 2009.