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Edição 153 > Guerra na Síria perto do fim. O fator determinante russo que os EUA, França e Reino Unido tentam reverter
Guerra na Síria perto do fim. O fator determinante russo que os EUA, França e Reino Unido tentam reverter

A Síria tem sido o grande palco do confronto entre as potências mundiais no tabuleiro geopolítico do planeta desde o início desta que é a segunda década do século XXI. Situamo-nos também, sem dúvida, no período de maior avanço e desenvolvimento dos instrumentos de inteligência, informação e difusão de dados em termos de comunicação humana, já presenciado. No entanto, devido a forte manipulação midiática, a esmagadora maioria da população mundial desconhece os meandros da guerra, seus bastidores e possíveis desfechos. O exemplo é o último ataque com mísseis sobre a Síria, realizado pela trinca EUA, França e Reino Unido, na sexta-feira 13 de abril de 2018, e que fez o mundo inteiro temer por uma escalada da violência e se perguntar com angústia até onde vai o conflito. O ataque, que teve por justificativa o suposto uso de armas químicas pelos sírios, foi uma tentativa de neutralizar o papel da Rússia no desfecho da guerra e o consequente arrefecimento da crise rumo à estabilização.
Bashar al-Assad é o décimo nono presidente da Síria e assumiu seu mandato em julho do ano 2000 substituindo seu pai, Hafez. Naquela época, na virada do milênio, Vladimir Putin assumia o poder na Rússia e George Bush nos Estados Unidos. O mundo logo seria marcado pelo incidente mundial “número um” da nova era. O ataque às torres gêmeas de Nova Iorque em 11 de setembro de 2011, que perduraria como parte importante do entendimento do jogo de peças na balança de poder mundial do século XXI. Na sequencia do ataque e sob o comando do presidente norte-americano George Bush seria desatada uma “guerra ao terror” e uma cruzada contra o mundo árabe, que culminou com a instalação da Guerra do Iraque em 2003 e definiu o tipo de presença, vis a vis ao que fez Bush pai na década anterior com Kwait e Afeganistão, norte americana na região nos anos que viriam.
Passada uma década, em 2011, começaram os conflitos internos na Síria, no contexto da Primavera Árabe. O que inicialmente foi propagado como uma onda de protestos contra o governo se transformaria na principal guerra do novo século.
Foi em Túnis, capital da Tunísia, no norte da África, que iniciaram os protestos de 2010 que viriam a ser rotulados como Primavera Árabe. Este nome, plasticamente bonito e que ajudou na narrativa ocidental de que era preciso salvar os árabes de seus ditadores, foi dado pela imprensa ocidental. A pauta de reivindicações da população era muito semelhante à de qualquer outro povo oprimido pelo modelo capitalista que vivemos atualmente em nível mundial, contra o desemprego, as precárias condições de vida, pela melhoria dos serviços básicos de saúde, transporte, educação e por renovação política. Em Túnis os protestos foram capazes de deslocar o ex-presidente Zine El Abidine Ben Ali e instalar um processo constitucional por uma nova república, com novas eleições. O mesmo tentou ser feito em outros países da região, mas não se pode esquecer como estas pautas foram sequestradas pelo ocidente que viu ali uma oportunidade de impor seus interesses inconfessáveis sobre populações soberanas quanto ao seu destino.
Como bem disse o jornalista especialista em Ásia e Oriente Médio, Pepe Escobar, se a primavera foi Árabe, o verão foi Jihad (guerra santa islâmica, promovida pelo Estado Islâmico e a al-Qaeda, financiadas por americanos). Se for assim, consideremos que o outono foi dos EUA, mas o inverno está sendo da Rússia. Não é de hoje que os russos dão as cartas quando outros resultados parecem óbvios nas batalhas mundiais. A analogia com os vitoriosos invernos russos cabem perfeitamente, estejamos ou não falando de condições climáticas e meteorológicas. Lembremo-nos das guerras napoleônicas do início do século XIX e do desfecho da segunda guerra mundial na primeira metade do século XX. Hoje, sete anos após o início do conflito de grandes proporções e complexidades, que ficou conhecido como “a Guerra da Síria”, o fim parece próximo e seu principal fiador é o líder russo Vladimir Putin, com o apoio de seu homólogo iraniano.
Sob o rótulo da primavera foram colocadas todas as atividades populares e seus desdobramentos políticos ocorridos em maior ou menor grau no Egito, na Líbia, no Iêmen, no Bahrein, no Marrocos, na Jordânia, na Argélia, na Arábia Saudita, em Omã, no Djibouti, na Somália, no Sudão, no Iraque e no Kuwait. Parece muito fácil, aqui no ocidente, jogar todas estas realidades em um grande saco e dizer que todas as revoltas, em todos estes países, tinham como propósito o desejo do bálsamo da democracia liberal. Uma espécie de pauta padrão para a opinião pública ocidental de combate às armas químicas e instalação da democracia que justifica qualquer conflito no oriente médio. E foi exatamente isso, mais uma vez, que os EUA fizeram com o único e conhecido propósito de reverter a situação de instabilidade a favor de suas empresas e do aumento de seu domínio na área. Isso sem falar das contradições internas próprias entre os governos em exercício na região e o crescimento das forças de oposição fundamentalistas islâmicas, que ganharam postos de poder como se observou no Egito em eleições presidenciais recentes de 2018.
Toda esta região do oriente médio depende profundamente das exportações de petróleo e gás, produtos sujeitos às variações do mercado mundial, consequentemente voláteis. Sendo que todos os grandes exportadores (Conselho de Cooperação do Golfo) dependem dos EUA para sua sobrevivência e segurança. Tudo que a Arábia Saudita fatura, por exemplo, com o comércio do petróleo, está investido em títulos do tesouro do EUA e em bancos norte-americanos. A Síria é detentora de grande quantidade de petróleo, gás e jazidas de ferro. Historicamente uma das maiores exportadoras de gás para a Europa, sendo que seu gasoduto está em um entroncamento entre Síria, Irã e Iraque. Aqui cabe lembrar a semelhança com a crise na Ucrânia pela mesma motivação da exportação de gás à União Europeia, provocando um dos mais emblemáticos embates diplomáticos desta década entre o então Secretário de Estado dos EUA, John Kerry, e o até hoje Ministro das Relações Exteriores da Rússia, Sergey Lavrov.
Quando todos observavam o enfrentamento entre americanos e russos sobre a Ucrânia, crescia outro enfrentamento que se revelaria mais tarde, desta feita sobre a condução da guerra na Síria. De modo sintético e correndo o grande risco das omissões inerentes às sínteses, pode-se dizer que aproveitando o contexto da primavera árabe e o posterior crescimento do jihadismo, os EUA apostaram que a Síria poderia ser uma nova Líbia, que sofreu intervenção militar por iniciativa de Obama e hoje está dividida em três partes. Ocorre que a Síria não poderia tornar-se uma nova Líbia. Seus 3 mil anos de história como berço das primeiras sociedades humanos pesou, para além de todas as diferenças entre os dois países - desde as estruturas sociais e econômicas às milenares distinções culturais. A Rússia entrou fortemente em sua defesa, a Liga Árabe não se posicionou contra Assad, como fez contra Gadhafi e a Líbia não teve o hezbollah, os curdos, os governos iraniano e chinês em seu apoio. Geograficamente a Síria está em uma posição muito mais imbricada do que a Líbia, perto demais de Israel. O ocidente encontrou na Síria um Estado estabilizado, com um exército ativo e um considerável apoio popular ao clã Assad.
As vacilações de Obama e Kerry e o fracasso dos EUA com os bombardeios de 2014 e a entrada da Rússia oficialmente no conflito em 2015 foram fundamentais para a mudança de rota do conflito. O que não se pode interpretar como uma derrota americana ou uma diminuição do papel do país no conflito, mas uma mudança na correlação de forças. As primeiras ações da Rússia na guerra foram duramente criticadas pela OTAN, cujos países se disseram chocados com os bombardeios promovidos contra alvos rebeldes a Assad em 2015. Na época, o ministro da defesa russo se pronunciou com relação às manifestações da OTAN dizendo que “não foram os ataques aéreos russos que causaram a crise na Síria, mas as ações sem sentido da OTAN que atiraram o Oriente Médio no caos. Há mais: antes da chegada das aeronaves russas na Síria, a OTAN ficou por três anos fingindo que estava destruindo o terrorismo internacional. Durante todo esse tempo, ninguém no Ocidente, e especialmente em Bruxelas (UE) fez menção a quaisquer negociações sobre a Síria. Todos estiveram apenas fazendo previsões a respeito de quando o país iria finalmente esfacelar-se, como a Líbia, onde os países da OTAN estiveram igualmente ocupados implantando a “democracia” à moda ocidental. Se existe alguém nesse exato momento preocupado com as aeronaves russas, são os terroristas. Nós gostaríamos de perguntar ao Sr. Stoltenberg (norueguês, secretário-geral da OTAN) o porquê de alguns países da OTAN estarem preocupados com as aeronaves russas na Síria”.
De 2015 a 2017 Vladimir Putin foi consolidando a posição de liderança russa como detentora das iniciativas no campo de operações da guerra na Síria e pouco a pouco ajudou Assad a neutralizar a ação do ocidente e dos grupos terroristas jihadistas. O crescimento do papel da Rússia gerou uma russofobia midiática presente hoje na formação da opinião pública, principalmente nos EUA e na Europa. O episódio mais recente e que chamou a atenção por ocorrer na véspera de um ataque aéreo ocidental sobre a Síria, foi a acusação do governo britânico de que os russos teriam envenenado um ex-agente de inteligência russo e sua filha, residentes no Reino Unido. Theresa May, Emmanuel Macron e Donald Trump vêm tentando desacreditar uma vitória da pacificação da Síria, que equilibraria a balança de poder com o campo onde estão Rússia, Irã e China.
Em tempos de espionagem eletrônica e uso de hackers, o caso do ex-espião russo Sergei Skripal e sua filha Yulia, encontrados inconscientes por envenenamento em Salisbury, deixou o mundo intrigado e muitos seguiram o suceder dos fatos como os capítulos de uma novela de tabloide inglês. A primeira ministra Theresa May deu importância significativa ao caso que redundou em acusações à Rússia de manipulação e sintetização do gás que provocou o envenenamento. Diplomatas russos foram expulsos de vários países e os russos revidaram expulsando diplomatas britânicos, norte-americanos e outros que apoiaram a onda de acusações. Bastante debilitada em sua gestão, com muita dificuldade para conduzir o processo do Brexit, de saída da Grã-Bretanha da União Europeia, a premier britânica deu sua cota de contribuição para a criação da atmosfera russofóbica ao tirar o foco de seus problemas domésticos através da alimentação de uma crise diplomática de grandes proporções no mesmo período em que a Síria era acusada de uso de gás químico, com apoio russo, nos ataques realizados em Guta Oriental.
Por seu turno, a França também tem jogado um papel importante na consolidação de uma frente ocidental desestabilizadora do processo de pacificação da Síria. Com os ataques terroristas sofridos em 2015, Paris se tornou um símbolo do pavor causado por grupos terroristas na classe média branca ocidental. Naquele episódio, cuja autoria foi reivindicada pelo Estado Islâmico, 129 pessoas morreram e 350 ficaram feridas. Quem executou os ataques não foram jovens árabes que habitam aos montes toda a França, mas franceses e belgas convertidos ao islã e ao EI, em uma clara provocação irônica do grupo terrorista, calculada para ser um tapa de luva nos xenófobos franceses. Já é sabido, amplamente, que tanto franceses como ingleses apoiaram jihadistas na Síria, facilitando sua entrada via Turquia no cenário da guerra. Quando Macron passou a ser primeiro ministro em 2017, ele veio na esteira de um processo eleitoral pautado por uma opinião pública sedenta por uma solução à situação da Síria, especialmente pela profusão da chegada aos milhares dos refugiados da guerra. Seu papel na trinca tem sido o de se aproximar, interpretar e minimamente influenciar as ações do seu homólogo Donald Trump. Foi Macron, por exemplo, que conseguiu reverter as afirmações de Trump retirada do exercito americano da Síria. O francês foi também o primeiro chefe de Estado a ser recebido na Casa Branca na era trumpiana há poucas semanas.
Putin está no comando da Rússia desde 2000, Donald Trump chegou em 2017 ao comando dos EUA. Putin impôs uma retomada mundial do papel da Rússia ao assumir o país após a caótica década de 90, os anos subsequentes à derrocada da URSS. Um país assaltado pela máfia e sob o jugo das potências que acreditavam no esfacelamento e enfraquecimento duradouro do país. Ainda durante sua campanha presidencial, Trump chamou a atenção da mídia internacional pelo seu tratamento íntimo e afável em relação a Putin. Até hoje se especula que tenha ocorrido alguma interferência russa no processo eleitoral norte-americano que lhe deu a presidência. O contraditório Trump e seu irrefreável uso das redes rápidas de comunicação, principalmente o Twitter, entre 2013 e 2016, disse coisas tão absolutamente discrepantes, como a de ter estado pessoalmente com Putin (em Moscou, 2013) e a de nunca tê-lo visto ou ouvido pessoalmente antes de ser eleito (em campanha, 2016). Apesar de ser um novíssimo presidente, Trump utilizou a mesma retórica de seus antecessores sobre o uso de armas químicas para justificar um ataque a bombas sobre a Síria. Os alvos eram supostos locais de armazenamento de armas químicas. No bombardeio foi atingida, por exemplo, uma fábrica de produção de medicamentos contra o câncer.
No mesmo compasso em que lança uma ofensiva contra a Síria e a Rússia, no caso das supostas armas químicas, Trump investe no esfacelamento e inabilitação do acordo nuclear com o Irã. Nas próximas semanas o presidente americano pode enviar ao Congresso Americano, que provavelmente o aprovará, um projeto de retomada das sanções econômicas contra o Irã, o que significa um rompimento do acordo nuclear de 2015 que envolve ainda Reino Unido, França, China, Rússia e Alemanha. Na época o Irã concordou em desativar seu programa nuclear em troca do fim de pesadas sanções e o descongelamento de bilhões de dólares em ativos iranianos. Pelo acordo o Irã ainda poderia realizar pequenas atividades nucleares e manter estoques de uranio para pesquisas e projetos médicos. Existem documentos do Departamento de Estado norte-americano e da Agencia Internacional de Energia Atômica (AIEA) de que o Irã vem cumprindo o acordo. EUA e Israel, no entanto, assumiram uma linha argumentativa de que na verdade o acordo não impede o programa nuclear, mas simplesmente o adia. O argumento é complementado pela acusação de que o Irã teria um projeto nuclear secreto em desenvolvimento, realizado em instalações imunes às visitas da AIEA.
Este é o tipo de artigo extremamente difícil de concluir com um ponto final, pois tudo o que foi aqui tratado, em tão breves linhas, está em desenvolvimento no presente momento. Há elementos, por exemplo, que não exploramos e que deixam pistas importantes sobre como se desenha o desfecho desta crise. O encontro entre os presidentes da Rússia, Irã e Turquia para tratar do pós-guerra da Síria, que antecedeu os ataques de 13 de abril é um deles. As mudanças na linha política da Árabia Saudita, sua inédita aproximação com o Israel e o aceite de substituir tropas americanas na Síria é outro. De todo o cenário, o que se pode extrair para uma fotografia do momento é a evidência do papel de destaque da Rússia e a perplexidade do mundo diante da imprevisibilidade do novo presidente dos EUA que determinou sua própria caricatura ao fazer política externa via Twitter, mas que tem mexido em peças importantes do tabuleiro internacional, como a reaproximação das duas coreias. Vejamos o que vem a seguir.
* Ana Maria Prestes Rabelo é cientista política, integra a Fundação Maurício Grabois e a Direção Nacional do PCdoB.