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Edição 153 > A expansão chinesa recente e novas determinações do imperialismo no século XXI
A expansão chinesa recente e novas determinações do imperialismo no século XXI
É fundamental situar a China dentro de um contexto de novas formas de imperialismo caracterizadas por formas de submissão e exploração através principalmente, mas não apenas, da expansão da acumulação financeira e da redução do papel do Estado. E nesse sentido específico, o padrão de acumulação chinês, fundado sobretudo na preponderância do Estado, seria na verdade um contraponto a este modelo e não uma expressão dele

Os impactos da expansão chinesa no mundo vêm sendo discutidos e analisados tanto no meio acadêmico como na imprensa. De um modo geral, é possível identificar perspectivas que inserem o fenômeno como parte do quadro maior de exploração de regiões periféricas pelas economias centrais, entendendo a expansão da China como um caso típico de uma economia capitalista que procura novos espaços de exploração, principalmente de recursos naturais (1). Além disso, identificam-se autores de orientação mais crítica dentro do campo marxista que analisam o caso da expansão chinesa e seus impactos como um fenômeno inserido nos marcos do imperialismo ou novo imperialismo. (BOND, 2014; ROUSSET, 2014; MARTINS; GOLDONI, 2014).
Partindo da análise da realidade concreta do processo de expansão chinesa e contrapondo-o a apontamentos teóricos da perspectiva marxista do imperialismo (LÊNIN; POULANTZAS) e do novo imperialismo (HARVEY; WOOD), nossa hipótese é a de que a expansão chinesa representa um caso novo e peculiar que em muitos sentidos contrapõe-se ao modelo neoliberal imperialista recente, refletindo contradições próprias relacionadas ao regime de acumulação chinês.
Após uma trajetória de expansão econômica contínua que já dura mais de 30 anos, a marca fundamental do crescimento chinês é o padrão de acumulação fortemente centrado no Estado e nos investimentos (MEDEIROS et al, 2013), e uma transição gradual da economia socialista que manteve o Estado como elemento central e como liderança no processo de acumulação. Mesmo diante de uma transformação da propriedade e da ascensão de uma burguesia cada vez mais rica, o Estado e o Partido Comunista Chinês (PCC) continuam moldando as principais direções do crescimento e também sua projeção externa.
Desde o início do século XXI a China entrou em um novo ciclo de crescimento baseado na expansão dos investimentos em infraestrutura, indústria pesada e construção que, por sua vez, ampliaram o uso de insumos primários, desde matérias-primas para indústria, como minério de ferro e cobre, até recursos energéticos essenciais, como o petróleo. Mais recentemente, após a crise de 2008, os investimentos internos continuam, mas abrem espaço para o aumento dos Investimentos Diretos Externos em todo o mundo, ligados não apenas à busca por recursos primários, mas também a setores de infraestrutura, energia, tecnologia e outros.
A globalização destas empresas chinesas tem sido desde sempre fortemente influenciada por fatores institucionais, com o governo chinês desempenhando um papel ativo no patrocínio e no apoio às empresas para se tornarem globais. (BRAUTIGAM, 2009).
Como aponta Cheng (2016), para alguns autores a expansão da China estaria ligada à necessidade de mercados externos para exportar seus produtos, pois haveria um mercado interno de baixo consumo. Assim, a China estaria se expandindo para estabelecer relações assimétricas com países mais pobres e ter acesso aos produtos primários, em uma clássica ação de tipo imperialista. No entanto, Cheng ressalta que esta expansão é conduzida pelo Estado por meio de projetos de longo prazo que não visam ao lucro rápido, e fazem parte de uma estratégia de crescimento que não estaria ligada a problemas internos de superprodução ou excedente de capitais. (CHENG, 2016).
Desde o início do século XXI, o aumento da demanda chinesa por bens primários e o aporte de empréstimos e investimentos tiveram implicações importantes para a conjuntura mundial, contribuindo para o aumento dos preços dos artigos primários comercializados internacionalmente, produzidos principalmente por países periféricos. Além disso, o grande volume e as melhores condições de custo da produção chinesa contribuíram para a manutenção dos preços internacionais de bens manufaturados a níveis baixos.
Esta reversão dos termos de intercâmbio, principalmente a partir dos anos 2000, permitiu que diversos países ampliassem sua participação no comércio global e observassem uma melhora no quadro macroeconômico que se deu principalmente via relaxamento do Balanço de Pagamentos. Ao contrário dos anos 1990, nos anos 2000, diversos países periféricos conseguiram, mesmo seguindo doutrinas macroeconômicas ortodoxas e neoliberais, ampliar suas taxas de crescimento via exportações e políticas internas. Os impactos foram relevantes em termos de melhora da renda (no caso do Brasil, por exemplo) e redução da pobreza (caso do Brasil e também de vários países africanos).
Claramente estas mudanças não levaram a transformações estruturais dos países periféricos, com ampliação da indústria ou melhora expressiva da desigualdade. Esta constatação levou muitos autores a defenderem a tese de que a dificuldade de mudança estrutural e a baixa industrialização, tanto na América Latina como na África, seriam causas diretas da competição com as manufaturas chinesas e a forte demanda externa por bens primários. (KAPLINSKY, 2008; KAPLINSKY, MCCORMICK; MORRIS 2007, 2010).
No entanto, como sugere Dic Lo (2016), a dificuldade dos países em desenvolvimento em se industrializarem deve ser pensada em um contexto marcado pelo baixo investimento, relacionado às políticas macroeconômicas ortodoxas tipicamente neoliberais, resultantes de uma conjuntura fundada na financeirização.
Ao contrário desta orientação política, a China segue um caminho absolutamente distinto, aumentando os investimentos produtivos com aumento de produtividade (2), o que o autor chega a denominar de “era de ouro”. (IDEM).
Assim, o impacto da China nos países em desenvolvimento deve ser entendido em um contexto que desde os anos 1990 esteve marcado pela globalização e pela expansão do setor financeiro, além dos programas de ajuste estrutural impostos pelas organizações multilaterais que levaram a expansão das dívidas e condições macroeconômicas adversas aos países periféricos. Assim, a entrada da China, principalmente a partir do século XXI, deve ser vista como representando um elemento que se contrapõe àquele contexto de imperialismo neoliberal.
Claramente, apesar da constatação da especificidade da expansão chinesa, trata-se de um fenômeno que se apresenta de forma contraditória. É inegável a dificuldade que os países periféricos enfrentam com relação à industrialização e ao avanço nas cadeias globais de valor em um contexto em que a China ocupa posição fundamental em diversos ramos e setores. No caso das economias africanas, por mais que tenham sido favorecidas pela melhora do quadro macroeconômico e pelos empréstimos e fluxos chineses, após mais de uma década a participação da sua indústria no valor agregado total no continente africano como um todo permaneceu a mesma: em 2000 era de 33% e em 2014 essa parcela correspondeu a 32%. (UNCTADSTAT, 2016).
Além disso, ao se aproximarem de países com vasta disponibilidade de recursos primários, em muitos casos os chineses atuam de forma a estabelecer relações de troca vantajosas para si próprios, mas que são prejudiciais para os países exportadores. Por mais que a China não imponha condições e condicionalidades, como o modelo de financiamento do Banco Mundial ou FMI, ela procura atender seus próprios objetivos quando estabelece relações com outros países. Além disso, o alto volume de empréstimos, segundo alguns autores, pode colocar os países periféricos reféns de uma nova forma de endividamento externo.
O Imperialismo como conceito e categoria criados a partir dos teóricos marxistas do início do século XX manifesta-se a partir de diversas dimensões da realidade e reflete um fenômeno intrinsecamente ligado à expansão de um modelo de vida, o modo de vida capitalista. Esse parece ser o sentido profundo da categoria em suas mais diversas abordagens.
Nesse sentido, a discussão sobre as expressões mais recentes do imperialismo não pode se esgotar na análise das variáveis econômicas e nem estritamente políticas, como já esclarecia Lênin. Assim, mesmo em autores como Wood e Harvey, cabe apontar críticas com relação à desconsideração de alguns aspectos do imperialismo hoje, como a militarização e as guerras, que também devem ser objeto de investigação com relação ao tema específico da expansão da China em futuras análises.
Nos termos estritos aqui analisados, entende-se que a expansão chinesa deve ser analisada com cautela antes de ser conceitualizada como imperialista, principalmente pelo fato de que a China se apresenta como uma economia capitalista, mas tem sua trajetória histórica e perspectivas futuras marcadas pelo socialismo.
A opção chinesa para alcançar o socialismo vem se dando através da abertura e inserção em um modelo capitalista, apoiando-se em processos de acumulação de capital que, embora liderado pelo Estado, representa formas de acumulação capitalistas. A trajetória chinesa é então marcada por diversas contradições internas que colocam constantemente o desafio de ampliar e aprofundar um modelo mais equitativo, e ao mesmo tempo enfrentar as contradições típicas de uma economia capitalista.
Estas contradições internas projetam-se nos dias atuais também externamente a partir da expansão da China, na medida em que manifesta tanto um contraponto à lógica imperialista então vigente, quanto a ação de uma economia que busca atingir suas metas em termos de crescimento e acumulação de capital.
Nesse sentido, é preciso contrapor as teses imperialistas clássicas e também as formulações mais recentes em torno do “novo imperialismo”, considerando estas novas determinações inscritas na experiência recente chinesa, para fugir do senso comum de que a China representa apenas mais um caso de expansão imperialista.
A perspectiva clássica leninista inscreve-se na ideia de que o imperialismo representa uma etapa do capitalismo que se expressa tanto pelas contradições econômicas como pela ação da burguesia nacional dos grandes centros. Com relação à China recente, se é possível avançar em termos conclusivos, pode-se dizer que em muitos sentidos alcançou um nível de acumulação de capital no qual de fato impõe-se a necessidade de exportação de capitais.
Esta exportação de capitais vem ocorrendo mediante a ação, principalmente estatal, através da expansão das empresas chinesas na busca sobretudo de acesso a recursos naturais. Nesse ponto, a forma que esta expansão vai assumir coloca a China em um grande dilema: avançar nos objetivos estratégicos do Estado, sem recorrer a práticas e ações típicas das economias capitalistas, como por exemplo a ação violenta e militarizada, típica das experiências do imperialismo na África ou mesmo na Ásia.
A expansão chinesa, entendida nestes termos, reflete um processo que se diferencia do chamado imperialismo clássico, também na medida em que, tal como sugere Poulantzas, não existiria uma burguesia autônoma que lidera os processos de expansão, já que por mais que esta burguesia tenha um papel cada vez maior na China, ela ainda não lidera a orientação da acumulação de capital e as decisões de expansão global. Assim, trata-se de um processo em que a burguesia não exerce uma ação política no sentido de orientar a ação do Estado.
No que se refere às formulações em torno do chamado novo imperialismo, encontram-se também ponderações que colocam o caso chinês muito mais como contraponto à ordem neoliberal do que como mais uma expressão do imperialismo. Como apontado anteriormente, é fundamental situar a China dentro de um contexto de novas formas de imperialismo caracterizadas por formas de submissão e exploração através principalmente, mas não apenas, da expansão da acumulação financeira e da redução do papel do Estado. E nesse sentido específico, o padrão de acumulação chinês, fundado sobretudo na preponderância do Estado, seria na verdade um contraponto a este modelo e não uma expressão dele. A projeção externa do país refletiria, assim, a expansão de um modelo de desenvolvimento que se diferencia amplamente do modelo neoliberal.
É fundamental considerar que a análise feita aqui não implica a conclusão de que a expansão chinesa representa o desenvolvimento de novas formas de relação entre os países baseadas na cooperação e no respeito mútuo. Mesmo que novas determinações devam ser incorporadas e que o caso chinês não se insira dentro das perspectivas clássicas do imperialismo, não significa que a China atue de maneira a não submeter as diversas economias com as quais se relaciona. Significa dizer, apenas, que estamos diante de novas formas de relação entre países, que refletem trajetórias distintas.
De modo ainda pouco conclusivo, a ideia é de que se trata de um fenômeno novo que carece de amplos estudos, em um contexto em que a posição da China na economia mundial é cada vez mais importante em termos econômicos e políticos.
* Valéria Lopes Ribeiro é professora adjunta do Bacharelado em Relações Internacionais e do Bacharelado em Economia, Universidade Federal do ABC (UFABC).
NOTAS
(1) Na imprensa ocidental essa perspectiva é bastante comum. Ver em: <http://www.newyorker.com/news/news-desk/china-in-africa-the-new-imperialists>;<https://www.nytimes.com/2015/07/26/business/international/chinas-global-ambitions-with-loans-and-strings-attached.html>;<http://diplomatique.org.br/a-china-e-imperialista/>. E também entre lideranças de países que vêm recebendo investimentos chineses, como na África. Ver em: <http://yaleglobal.yale.edu/content/chinas-african-safari>.
(2) A média da produtividade do trabalho na China cresceu a uma taxa de 9,3% ao ano no período de 2000 a 2014. (DIC LO, 2016).
REFERÊNCIASBOND, Patrick. (2014). Which way forward for the BRICS in Africa, a year after the Durban summit? (Qual caminho deve seguir o BRICS na África, um ano após a cúpula de Durban?). Pambazuka News. Disponível em: <https://www.pambazuka.org/governance/which-way-forward-brics-africa-year-after-durban-summit>. Acesso em: 25 de out. 2017.
BRAUTIGAM, Deborah. The Dragon’s Gift – the real history of China in Africa (O Presente do Dragão – a real história da China na África). Oxford Press, 2009.
CHENG, Sam-Kee. An alternative view on the anomaly of chinese capitalism (Uma visão alternativa sobre a anomalia do capitalismo chinês). Londres, 2016 (Texto não publicado).
HARVEY, David. O novo imperialismo. São Paulo: Loyola, 2004.
JABBOUR, Elias; DANTAS, Alexis. A economia política das reformas e a presente transição chinesa. Revista de Economia Política. Vol. 37, n. 4(149), 2017, p. 15-16.
KAPLINSKY, R. What does the rise of China do for industrialisation in Sub Saharan Africa? (O que a ascensão da China faz para a industrialização na África Subsaariana?). Review of African Political Economy, 35 (115): 7-22, 2008.
KAPLINSKY, R.; MCCORMICK, D.; MORRIS, M. The impact of China on Sub Saharan Africa (O impacto da China na África Subsaariana), IDS Working Paper n. 291, 2007. Disponível em: <http://www.ids.ac.uk/files/Wp291.pdf>.
_______. China and Sub Saharan Africa: impacts and challenges of a growing relationship (China e África Subsaariana: impactos e desafios de um relacionamento crescente). In: PADAYACHEE, V. (ed.). The Political Economy of Africa (A economia política da África). London: Routledge.
LENIN, Vladimir I. O imperialismo: fase superior do capitalismo. São Paulo: Global, 1987.
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LO, Dic. Developing or Under-developing? Implications of China’s “Going out” for Late Development (Desenvolvimento ou subdesenvolvimento? Implicações da “saída” da China para o desenvolvimento tardio). SOAS Department of Economics. Working Paper n. 198, London: SOAS, University of London, 2016.
MEDEIROS C. A. de; SERRANO, F.; FREITAS, F. The Decoupling of Economic Growth of the Developing Countries in the Last Decade (A dissociação do crescimento econômico nos países em desenvolvimento na última década). Paper elaborado para a World Keynes Conference at Izmir Economics University 26-29th of June 2013.
POULANTZAS, Nicos. As classes sociais no capitalismo de hoje. Rio de Janeiro: Zahar, 1978.
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