• Home
  • Nossa História
    • Nosso Time
  • Edições
    • Principios de 101 a atual
    • Coleção Principios - 1 a 100
  • Índice Remissivo
  • Contato

Revista Principios

  • Home
  • Nossa História
    • Nosso Time
  • Edições
    • Principios de 101 a atual
    • Coleção Principios - 1 a 100
  • Índice Remissivo
  • Contato

Capa

Edição 149 > Elementos sobre a questão nacional em alguns pensadores marxistas

Elementos sobre a questão nacional em alguns pensadores marxistas

Julio Cesar Vellozo
Twitter
FaceBook

A questão nacional sempre foi um tema de grande complexidade para os marxistas. Apesar dos processos revolucionários do século XX terem tido a questão nacional no centro, as elaborações dos marxistas sobre o assunto não estão no mesmo nível das que foram realizadas sobre outros temas de menor transcendência histórica

Introdução 

Marx e Engels, teóricos que forneceram a base para esses inúmeros processos revolucionários (1), não chegaram a se debruçar de maneira sistemática sobre a nação e o nacionalismo. A tarefa acabou ficando para seus continuadores do século XX, que encararam o desafio com teses que não gozavam da força legitimadora de terem sido formuladas pelos fundadores dessa corrente de pensamento. Desse modo, homens e mulheres de uma mesma geração de revolucionários como Otto Bauer, Vladimir Lênin, Rosa Luxemburgo e Stálin encararam a questão sem grandes parâmetros teóricos que pudessem organizar o debate, buscando generalizações ao passo em que formulavam programas concretos para as diversas formações econômico-sociais específicas nas quais exerciam sua militância política.

Mais tarde, premidos pela centralidade que o nacionalismo adquiriu no século XX, outros revolucionários se debruçaram sobre o assunto, tanto a partir de perspectivas construídas nos países do capitalismo central quanto de olhares vindos dos países que sofriam as mais diversas formas de dominação imperialista. Embora este texto não se proponha a sanar essa dívida, é importante ao menos reconhecer que há uma evidente obliteração das obras e contribuições teóricas dos revolucionários à frente das lutas de independência fora da Europa, África, Ásia e América.
 
O que este texto busca discutir, dentro dos limites que o espaço nos coloca, são três momentos específicos desse debate. O primeiro são as elaborações feitas por Marx e Engels, onde tentamos demonstrar que os autores apenas tatearam a questão, geralmente abordando-a de forma subordinada a objetivos mais gerais da luta pela revolução. O segundo são as elaborações de contemporâneos de Lênin cujas obras se relacionavam à dele – revolucionários que a ele foram coetâneos e cujas obras se relacionaram com a do marxista russo. O terceiro será uma abordagem rápida da contribuição de Gramsci ao tema, em geral pouco considerada, dada a apropriação interessada que os seus escritos sofreram no Brasil.

O que faremos aqui é um modesto sobrevoo sobre o tema, sem pretensões maiores do que inventariar uma parte desse debate a fim de incentivar estudos mais verticais sobre o tema.

Marx, Engels e a questão nacional 

A nação e o nacionalismo foram um tema capital do século XIX e do início do século XX, a começar pelos movimentos românticos alemão e italiano, que forneceram o substrato ideológico para o processo de unificação dos dois países, colocando a questão na ordem do dia (2). Além deles, movimentos pela independência realizados tanto na Europa — a exemplo da Polônia e da Irlanda — quanto em outros continentes transformavam a nação em questão nodal no período.

Apesar disso, nem Marx e nem Engels elaboraram de forma sistemática sobre o tema da nação. Quando abordaram a questão, o fizeram de forma bastante imediata, subordinando as reivindicações de autonomia e as lutas contra colonizadores e ocupantes estrangeiros ao desenvolvimento mais geral do processo revolucionário, visto como algo que tinha como palco as nações do capitalismo central. Apesar das exceções – como as que aparecem nas cartas trocadas por Marx com revolucionários russos sobre a situação daquele país –, foi esse o tratamento geral que os fundadores do marxismo deram ao tema (3).

Parece-nos que a explicação para essa omissão parcial esteja em sua visão de como se daria o processo revolucionário. Eles enxergaram a superação do capitalismo como uma derivação do desenvolvimento das contradições do sistema. Estas ocorriam de forma mais acabada e aguda onde ele se encontrava mais desenvolvido, ou seja, nos países onde o capitalismo havia desenvolvido um proletariado mais numeroso e significativo. O devir histórico tinha como força propulsora fundamental o processo de desenvolvimento do capitalismo, visto como algo transnacional, como uma força objetiva.
 
Já as reivindicações nacionais eram vistas pelos fundadores do marxismo ou como manifestações típicas do atraso de regiões pré-capitalistas — geralmente compreensíveis e justificáveis diante das odiosas violências cometidas pelo colonizador —, ou como manifestações na superestrutura das mudanças que o capitalismo vivia em seu processo de desenvolvimento. Em ambos os casos, tratava-se de fenômeno secundário que seria superado quando as contradições do próprio sistema e as lutas do proletariado (também delas oriunda) se manifestassem em sua plenitude, permitindo que as batalhas decisivas fossem a um só tempo sintoma e condição da transição ao socialismo.

Embora dessem ao tema um caráter secundário, é possível citar três casos específicos em que Marx e Engels se posicionam de forma clara em relação a lutas por independência.
 
O primeiro caso é o da Irlanda, cujo tratamento é recorrente em seus textos e pronunciamentos. Marx considera que, dentro da classe operária que vive em solo britânico, existe – para além das contradições e dos desafios naturais da assunção de uma consciência de classe para si – o ódio em relação ao irlandês. Essa comunidade de operários católicos funcionava como parte do exército de reserva que forçava o preço da mão de obra dos trabalhadores para baixo, dificultando de maneira considerável as possibilidades de os operários ingleses barganharem melhores salários. Isso provocava o ódio do trabalhador inglês, que considerava o irlandês uma espécie de pária, alguém disposto a qualquer coisa por migalhas. Para além disso, Marx notava um forte preconceito contra os irlandeses, oriundo de um orgulho nacional ignorante que perpassava preconceitos religiosos e redundava em uma postura abertamente racista. 
Marx estabelecia uma analogia clara entre as relações travadas por ingleses e irlandeses e o racismo vivido pelos Estados Unidos pós-abolicionista, comparando os trabalhadores da Inglaterra a seus pares brancos da América (4), reconhecendo que a superação desse preconceito era parte do processo de construção da unidade da classe trabalhadora em solo inglês e de sua tomada de consciência.
 
Para além dessas questões de ordem mais estratégica, Marx tinha um pensamento mais imediato, pragmático e concreto. Para ele, a Inglaterra era o “país mais importante para a revolução proletária” porque era a “metrópole do capital” e a “potência dominante no mercado mundial”. Em sua visão, tratava-se do “único país em que as condições materiais de tal revolução se desenvolveram até um certo grau de maturidade”, de modo que “o mais importante objetivo da I Internacional seria “acelerar a revolução social na Inglaterra”.
Não havia, na visão do autor de O Capital, meio mais eficiente de realizar esse processo do que estourar uma luta decisiva da Irlanda por sua libertação nacional, de modo que: “a tarefa específica do Conselho Central em Londres é despertar na classe operária inglesa a consciência de que a emancipação nacional da Irlanda não é, para ela, uma questão de justiça abstrata ou de sentimentos humanitários, mas sim a primeira condição de sua própria emancipação social.”.

Marx acreditava que uma rebelião irlandesa teria grande poder de desestabilizar o poder do governo inglês, quem sabe possibilitando a emergência de lutas decisivas por parte da classe operária daquele país. Incentivar um levante dos trabalhadores irlandeses era um passo para romper a couraça do governo inglês, cujo poderio vinha sendo colocado em xeque pela ascensão dos Estados Unidos, marcadamente após o fim da guerra civil e o desfecho da guerra contra a Espanha.

Um segundo tema sobre o qual Marx se posicionou foi em relação à luta independentista da Polônia. Desde os momentos iniciais de sua atividade política, manifestou posição favorável à luta pela retomada da independência do país, assim como apoiou os movimentos políticos que agiam naquela direção. Esse posicionamento estava relacionado à avaliação de que a luta nacionalista polonesa poderia enfraquecer os poderes do czarismo russo. Enfraquecer o czar teria como consequência a perda de força da Santa Aliança, da qual o país era o principal esteio. 

O terceiro caso é o da Índia, no qual as posições de Marx oscilaram ou, olhando por outro prisma, foram mais complexas e multilaterais, tendo se modificado de acordo com diversas circunstâncias. Por um lado, ele viu as possibilidades de uma luta colonial de libertação — bem pouco verossímil naquele momento — como algo que poderia dar uma nova contribuição para o enfraquecimento da Inglaterra, o que poderia resultar em um fortalecimento da luta da classe operária daquele país frente a um governo mais desacreditado. Por outro — e essa posição se repetiria em muitos outros casos de lutas de povos menos desenvolvidos do ponto de vista econômico —, Marx considerava que as relações de produção que os ingleses implantavam nas colônias, ainda que violentas e opressoras, eram mais avançadas dos que aquelas vivenciadas tradicionalmente pelos indianos (5). É interessante ler as suas palavras a esse respeito: 

“Ora, por mais triste que seja para o sentimento humano testemunhar estas miríades de organizações sociais industriosas, patriarcais e inofensivas desorganizadas e dissolvidas nas suas unidades [constitutivas], atiradas para um mar de sofrimentos, e os seus membros individuais a perderem ao mesmo tempo a sua antiga forma de civilização e os seus hereditários meios de subsistência, não podemos esquecer que estas idílicas comunidades aldeãs, por muito inofensivas que possam parecer, foram sempre o sólido alicerce do despotismo oriental, confinaram o espírito humano ao quadro mais estreito possível, fazendo dele o instrumento dócil da superstição, escravizando-o sob o peso de regras tradicionais, privando-o de toda a grandeza e de toda a energia histórica (...) A Inglaterra, é verdade, ao causar uma revolução social no Indostão estava movida pelos interesses mais vis e era estúpida na sua maneira de os impor. Mas não é disso que se trata. A questão é: pode a humanidade cumprir o seu destino sem uma revolução fundamental no estádio social da Ásia? Se não, quaisquer que possam ter sido os crimes da Inglaterra, ela foi o instrumento inconsciente da história ao provocar essa revolução (6).”.

Vê-se no texto de Marx um tom geral bastante típico do século XIX que nos soa incômodo ou francamente etnocêntrico. É preciso, no entanto, compreendê-lo para que não nos percamos na crítica a-histórica e anacrônica e acabemos por deixar de lado o prisma teórico no qual Marx está se baseando. Essa compreensão é decisiva para o raciocínio que faremos adiante.

Naquele momento, a revolução social era vista pelo materialismo histórico como uma razão direta do desenvolvimento do capitalismo enquanto sistema que desconhecia ou que secundarizava qualquer tipo de fronteira para sua expansão e domínio. No devir histórico, o socialismo era o desenvolvimento, a consequência, o desenrolar do processo de estabelecimento do predomínio do capital e da mercadoria. É por isso — e não por qualquer outra razão de ordem chauvinista ou racista, como as que moveriam outros pensadores daquele tempo — que a vanguarda do processo histórico se desenrolaria nos países de capitalismo mais avançado. Ninguém mais do que Marx zombou das pretensões de superioridade que emergiram nas obras dos românticos alemães e de seus congêneres franceses, naquele momento ocupados em construir ficções históricas que justificassem movimentos políticos nacionalistas conservadores ou intentos coloniais.   

Lênin e seus contemporâneos 

Os desafios concretos impostos pela luta socialista em dois locais provocariam a necessidade de um aprofundamento da discussão e a sua realização, pela primeira vez, em um nível mais abstrato e teórico. O primeiro caso deu-se no Império Austro-húngaro, através da obra de Otto Bauer, que publicou, em 1907, um texto que passaria a pautar o debate do tema daí por diante (7).

O texto não pode ser separado do ambiente austríaco ou, para ser mais específico, vienense, da época. Conforme demonstrou Carl Schorske em seu belíssimo livro sobre Viena naqueles anos, tratava-se de um contexto no qual as questões subjetivas eram trazidas à tona de forma nova, em um ambiente fortemente marcado pela modernização. Sigmund Freud, o pintor Gustav Klimt, o teatrólogo Arthur Schnitzler e o arquiteto Otto Wagner eram expressões desse momento no qual Bauer estava inserido (8).

Foi nesse contexto que ele escreveu um livro no qual, pela primeira vez, o sentimento nacional é valorizado como algo positivo, que transcende as noções individualistas típicas da sociedade da mercadoria. Ele afirmará, seguindo ideias expressas por autores românticos de diferentes posições, que as nacionalidades são “comunidades de destino”, agrupamentos nos quais os indivíduos se enxergam como vindos do mesmo lugar por serem detentores de um passado que os une e como indo a um mesmo lugar por fazerem parte de um grupo com o qual os acontecimentos futuros serão partilhados.

Para ele, a nacionalidade é fundamentalmente um sentimento de pertencimento, uma psicologia social. Sem desconsiderar o que o sentimento nacional tinha de construção realizada pelas elites, Bauer considerava que havia elementos históricos reais comunitários, vivências profundas e laços sociais de solidariedade que, através de muitos anos, haviam solidificado essa sensação de pertencimento. 
É importante notar que a ênfase que Bauer dá à história o afasta do racismo científico, fortíssimo à época. Na medida em que Bauer sustenta que “a nação é aquilo que é histórico em nós” (9) ele recusa de forma clara e contundente todas as abordagens que se baseiam em critérios biológicos (10). Dito de outra maneira, contrapõe a história à biologia na explicação dos laços que unem os diferentes povos, operando na contramão do que sustentava boa parte do nacionalismo de sua época.

Bauer considera que o sentimento nacional seja um dado forte demais para ser desconsiderado pelos socialistas. Uma postura cosmopolita, que desconsidere essa psicologia coletiva, seria sempre opressora. Em um mesmo sentido, Bauer vê as nacionalidades e o sentimento nacional como uma resistência que se afirmou de maneira perene contra o individualismo típico do liberalismo, que desconsidera as comunidades e pensa a sociedade civil como uma mera coleção de indivíduos.
   
O socialista austríaco constrói uma interpretação do sentimento nacional baseada em critérios que são basicamente subjetivos, não enxergando a necessidade de que uma nacionalidade habite um território determinado, nem tenha relações econômicas independentes. É essa interpretação de nação enquanto sentimento de pertencimento, sensação de partilhamento de um destino comum, manifestado em uma comunidade de cultura, que faz com que, para ele, o elemento mais importante da luta de uma nacionalidade não esteja ligado à existência de um Estado nacional independente, mas sim à existência de uma série de liberdades e franquias que garantam o exercício pleno dessa autonomia. Desde que estejam garantidas as condições para que uma nação viva e frua de modo livre da sua cultura, o direito à nacionalidade estaria garantido.
 
Ainda que essa posição seja profundamente teórica e que detenha um tipo de abstração inédito nessa discussão, ela também estava ligada a uma tática concreta do partido de Bauer. Tratava-se de conduzir um processo revolucionário no qual o grande Império Austro-húngaro não se desfizesse, pois isso resultaria em jogar o proletariado de outras nacionalidades nas mãos de sua elite nacional, muitas vezes mais reacionária do que a austríaca. Como Lênin sempre se preocupava em lembrar, o Império Austro-húngaro sofrera um processo de constitucionalização após 1848 que consistia em um trunfo do qual os socialistas não deveriam abrir mão. O pensamento de Bauer se dirigia para a constituição de uma federação socialista com forte autonomia federativa na qual fosse garantida às nacionalidades a mais ampla liberdade de viver e fruir de sua cultura nacional. 

O pensamento expresso em sua obra de 1907 exerceu enorme influência e, na prática, pautou o debate sobre o assunto desde então. É muito interessante notar que mesmo os que construíram as críticas mais duras contra o texto do marxista austríaco o faziam a partir das questões levantadas por ele, de modo que é preciso reconhecer a força e a importância dessa contribuição, original, criativa e erudita.
 
O primeiro combate contra as posições de Bauer virá de Kautsky, que apesar de considerar que a obra tinha méritos indiscutíveis, sustentava que lhe faltava uma análise mais estrutural, que se baseasse no materialismo histórico. O líder da socialdemocracia alemã ressaltaria o caráter transitório da nação enquanto forma política própria de uma fase específica do desenvolvimento histórico e como um fenômeno próprio do capitalismo. Dessa maneira, tanto a nação quanto o sentimento nacional seriam superados pela revolução proletária, não constituindo, como Bauer pensava, uma espécie de direito natural dos povos que persistiria após a vitória do socialismo. 
  
Para Luxemburgo, o desenvolvimento do capitalismo havia transformado as reivindicações de autonomia nacional em uma pauta ultrapassada. Ainda que se devesse, como pauta secundária, defender a autonomia cultural dos trabalhadores, sustentando, por exemplo, o direito dos operários poloneses de usarem sua língua, essa questão não deveria tomar um lugar central. Para ela, não deveria fazer parte da pauta dos revolucionários dotar um povo de algum tipo de aparato estatal, luta que lhe parecia estranha aos objetivos dos socialistas.
 
Para a líder revolucionária polonesa, o desenvolvimento do capitalismo havia agudizado a luta de classes, especialmente nos países mais desenvolvidos, de modo que era preciso estabelecer um programa mais finalista, ligado diretamente aos enfrentamentos decisivos da luta de classes. Ela considerava equivocadas as ideias de Bauer de que os socialistas deveriam defender, fortalecer e valorizar as comunidades nacionais mesmo depois da tomada do poder. Para ela, a visão de Kautsky de que o porvir socialista formaria uma comunidade cosmopolita dos “homens cultos” era a mais correta nesse ponto. 

Luxemburgo também combateria o programa da socialdemocracia russa, que defendia a chamada autodeterminação dos povos. Dessa maneira, através da grande influência e do enorme respeito de que gozava no movimento revolucionário internacional, a líder polonesa polarizaria a opinião de um setor dos socialdemocratas da Rússia, que sustentaria suas posições. Isso provocou um importante debate no qual Lênin combateu a posição de Luxemburgo e de seus aliados em solo russo (11).

Lênin, por sua vez, teria uma posição bastante mais matizada sobre o assunto, refletindo uma sensibilidade maior para a questão nacional. O revolucionário russo não aceitaria a visão positiva de Bauer a respeito do sentimento nacional porque este era baseado exclusivamente em aspectos subjetivos ou, em seus dizeres, “psicológicos”. Também se contraporia à visão paradoxal do marxista austro-húngaro que, apesar de sustentar o caráter positivo do sentimento nacional, não defenderia que as nacionalidades oprimidas constituíssem Estados independentes. A posição de Lênin a esse respeito seria clara como o dia: “por autodeterminação das nações entende-se a sua separação estatal das coletividades nacionais estrangeiras, entende-se a formação de um Estado nacional independente.” (12).

Entretanto, como demonstram de forma cabal seus textos de combate ao chauvinismo grão-russo, ele jamais se confundiria com o cosmopolitismo de Kautsky. Embora não tenhamos referências a esse respeito, é preciso notar que diversos escritos de Lênin apresentariam uma visão positiva a respeito do sentimento nacional. Em sua renhida batalha contra o orgulho nacional dos grão-russos, ele falaria repetidamente de um justificado “orgulho dos russos”. Inúmeras vezes, em sua defesa permanente, depois da tomada do poder, dos direitos culturais das nacionalidades que integravam a União Soviética, vê-se que Lênin considera que estas são receptáculos de cultura, ecoando, nesse particular, as posições que já haviam sido sustentadas por Otto Bauer.
   
Em uma de suas polêmicas com Rosa Luxemburgo, Lênin defende que a reivindicação nacional das burguesias das nações oprimidas pode ter um caráter eminentemente democrático. Ainda que o faça ressaltando que o proletariado deve fazer parte dessas lutas preservando seus interesses e colocando-os acima das outras questões, ele se coloca claramente em defesa das lutas por autonomia nacional. Dessa maneira, Lênin tira a discussão de marcos metafísicos, sem colocá-la em termos meramente instrumentais. Para ele, é preciso analisar o processo mais amplo de desenvolvimento das nações, distinguindo as experiências do capitalismo central, que concluiu seu processo de constituição plena entre 1789 e 1871, daquelas que ainda não o haviam realizado. Nesse texto de 1914, no qual enfrenta as posições de Rosa Luxemburgo, já está desenhada a ideia do elo mais fraco da cadeia, que ele desenvolveria mais tarde:  

“Na Europa Ocidental, continental, a época das revoluções democrático-burguesas abarca um período de tempo bastante determinado, aproximadamente de 1789 a 1871. Foi exatamente esta a época dos movimentos nacionais e da formação dos Estados nacionais. No fim desta época a Europa Ocidental tinha se transformado num sistema de Estados burgueses, e regra geral Estados nacionalmente homogéneos. Por isso procurar agora o direito à autodeterminação nos programas dos socialistas europeus ocidentais significa não compreender o abecê do marxismo. Na Europa Oriental e na Ásia a época das revoluções democrático-burguesas não fez mais do que começar em 1905. As revoluções na Rússia, na Pérsia, na Turquia, na China, as guerras nos Bálcãs — eis a cadeia de acontecimentos mundiais da nossa época no nosso “Oriente”. E nessa cadeia de acontecimentos só um cego pode deixar de ver o despertar de toda uma série de movimentos nacionais democrático-burgueses e de aspirações à formação de Estados nacionalmente independentes e nacionalmente homogéneos. Precisamente porque e só porque a Rússia, juntamente com os países vizinhos, atravessa essa época é que nos é necessário o ponto relativo ao direito das nações à autodeterminação no nosso programa.” (13).

Esse debate seria reconfigurado na segunda metade da década de 1910 em função de dois elementos. O primeiro deles foi a publicação de uma obra que faria história: Imperialismo, fase superior do capitalismo, escrita por Lênin em 1916 e publicada em 1917, antes da Revolução de Outubro. O outro seria a emergência da Primeira Guerra Mundial — ela própria a grande fonte geradora do texto de Lênin —, com todas as imensas consequências que trouxe. Em muitos sentidos, a questão nacional e, por que não dizer, o nacionalismo, seria o grande tema do conflito. Foi ele que esteve por trás da decisão dos partidos da II Internacional de votarem os chamados créditos de guerra, que levaram Lênin a decretar a falência da organização; que produziu os fenômenos de barbárie e de heroísmo aos quais se assistia no front e que seriam decisivos para o pensamento ocidental, que viveu verdadeira inflexão desde então; que precisou ser combatido para que a atitude derrotista pregada pela minoria revolucionária da socialdemocracia pudesse levar a propaganda bolchevique a ganhar o exército para fazer Revolução de Outubro. Em suma, publicado Imperialismo, fase superior do capitalismo e realizada a Primeira Grande Guerra, que chocou a todos por sua violência e escala destrutiva, não era possível continuar discutindo o tema da nação da mesma maneira. Não temos possibilidades, neste espaço, de desenvolver o debate que se deu naquele momento. 

Gramsci como teórico da questão nacional 

Gramsci não costuma ser visto como pensador da questão nacional, especialmente no Brasil. A esquerda brasileira que mais cedo se interessou pela obra do marxista sardo, leu-a, nos parece, de modo bastante interessado, voltando-se, fundamentalmente, a retirar dela subsídios à chamada questão democrática. 
 
Parece-nos, no entanto, que Gramsci, ao buscar a construção de um caminho italiano para o socialismo, enxergou a questão nacional como elemento central da luta dos comunistas de seu país. Seus estudos sobre o risorgimento, o processo histórico de unificação da Itália durante o século XIX, viam esse processo como algo inacabado, incompleto na medida em que a revolução pelo alto que havia sido realizada no país não havia ido longe no processo de construção da unidade nacional.
 
Para Gramsci, os líderes da unificação italiana haviam se adaptado às demandas de setores da burguesia mais atrasados, tanto do norte quanto do sul, o que resultou na manutenção de estruturas fundamentais do período anterior. A mais importante delas teria sido a relação subordinada entre o norte e o sul do país, que colocava a região meridional e aquilo que ele chamava de “as ilhas” em uma condição periférica.
  
Essa incompletude da revolução vinda de cima seria um dos principais elementos que marcavam a realidade do país, e os comunistas deveriam considerá-la algo central em seu programa, deixando de lado visões metafísicas e cosmopolitas e concentrando-se na especificidade da formação econômico-social italiana. Ele nominaria esta incompletude que não permitia que a unificação se completasse como “a questão meridional” (14).

A centralidade da questão meridional enquanto incompletude no processo de formação da Itália só pode ser vista como uma questão nacional. Trata-se, fundamentalmente, de identificar em uma incompletude da nação a questão nodal a ser superada pelo partido, ou a questão capaz de constituir o bloco histórico que superaria os setores burgueses que estavam no poder desde que a guerra de reunificação foi concluída.
 
Essa percepção de centralidade da questão nacional fica clara em vários momentos de sua obra. Ela se apresenta, por exemplo, no debate a respeito do nome do jornal do partido. Gramsci, na ocasião, afirmou que era necessário: “dar importância especialmente à questão meridional, isto é, à questão em que o problema das relações entre operários e camponeses se coloca não apenas como um problema territorial, isto é, como um dos aspectos da questão nacional.”.

Em que pese sua importância, a questão meridional era apenas uma parte das preocupações de cariz nacional de Gramsci. A constituição plena da Itália como nação, tarefa decisiva que deveria vetorizar a luta dos comunistas italianos, era multifacetada. Para o revolucionário sardo, não havia um sentimento de identidade constituído entre o povo que lhe permitisse a unidade necessária para lutar por seus objetivos de forma eficiente ou, para usarmos as suas formulações, para constituir um novo bloco que substituísse aquele que detinha o poder no país. 

Daí sua grande preocupação com aspectos como a ausência de uma verdadeira literatura nacional, capaz de dar substância a essa identidade e de fomentar um autorreconhecimento. A consequência prática dessa ausência era que o povo “sofre a hegemonia intelectual e moral dos intelectuais estrangeiros, que se sente mais ligado aos intelectuais estrangeiros do que aos patrícios, isto é, que não existe no país um bloco nacional intelectual e moral, nem hierárquico nem muito menos igualitário.” (15).

Como a burguesia não havia completado a tarefa de constituição da nação, cabia aos operários, marcadamente aos do norte e do centro do país – já que no sul o que havia eram camponeses – liderar esse processo. Para isso, eles deveriam, através de uma luta de longo curso, demonstrar sua capacidade de se constituírem enquanto classe dirigente, enquanto classe nacional. Ou seja, de ser a classe que transforma seus interesses em interesses de todos. O que distinguia os operários era, na verdade, essa característica decisiva: a de poder deixar de lado os seus interesses egoístico-passionais, que em muitos casos eram obstáculos à consecução dessa aliança decisiva, e encarnar o papel dirigente de um bloco mais amplo, que realizasse as tarefas que haviam ficado para trás.
 
Essa tarefa, como dissemos, nada mais era do que uma tarefa nacional na medida em que significava completar o processo de formação da nação que o Partido da Ação, polarizado por sua ala moderada, havia deixado incompleta. Tratava-se, em muitos sentidos, de formar a Itália, unificando-a. 

Consideramos que a visão de Gramsci guarda alguma analogia com a luta pelo socialismo no Brasil. Se por aqui a formação da nação do ponto de vista de sua cultura e unidade avançou muito, os entraves para que o país realize suas potencialidades de forma plena são os obstáculos decisivos. Também aqui há uma incompletude, a de um país que não pode, em função da ação do imperialismo e dos setores majoritários das classes dominantes a ele associados, realizar a plenitude de suas potencialidades. É essa realização que permitirá que as questões popular e democrática sejam levadas a cabo plenamente, já que sem desenvolvimento da nação não há saída para a primeira, enquanto o imperialismo e seus agentes são elementos permanentes de tolhimento da segunda.
 
A questão nacional no Brasil, que em nossa visão pode ser resumida à ideia de realização plena das potencialidades da nação, adquiriu caráter transicional: só pode ser realizada plenamente em um processo que abra caminho em direção ao socialismo. Esse caminho será mediado por uma série de fases, cada uma delas a ser realizada por um bloco de alianças formado por diversas frações de classe. São os chamados aliados provisórios, de Gramsci (16).

Também aqui é preciso que os trabalhadores construam, de forma paciente, em um processo de acúmulo revolucionário de forças, a hegemonia, demonstrando que são a força dirigente capaz de conduzir um bloco mais amplo de interessados no sentido de realizar o Brasil plenamente enquanto nação.

* Julio Cesar Vellozo é historiador, mestre em culturas brasileiras pelo Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo, doutor em história social pela USP, professor universitário.

 


Notas

(1) O professor Paulo Visentini inventariou que, somente na década de 1970, dezesseis processos revolucionários vitoriosos se inspiraram, em maior ou menor grau, nas ideias de Karl Marx e de Friedrich Engels. Cf. VISENTINI, Paulo. 
(2) HERMET, Guy. História das nações e do nacionalismo na Europa. Lisboa: Editorial Estampa, 1996. SAFRANSKI, Rudiger. Romantismo, uma questão alemã. Tradução de Rita Rios. São Paulo: Estação Liberdade, 2010. SALIBA, Elias Thomé. As utopias românticas. São Paulo: Estação Liberdade, 2003. WINOCK, Michel. As vozes da liberdade: Os escritores engajados do século XIX. Tradução de Eloa´ Jacbina. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2006. LÖWY, Michael. Romantismo e messianismo: ensaios sobre Lukács e Walter Benjamin. Tradução de Myriam Vera Baptista e Magdalena Pizante Baptista. São Paulo: Perspectiva, 2008. 
(3) Conforme notou Rene Galissot, “(...) nem Marx nem Engels abordam o problema da nação enquanto tal: tomam o partido desta ou daquela nacionalidade e até a favor ou contra a sua própria existência, mas trata-se sempre de tomadas e posição de prática política. O marxismo, assim, permaneceu sem uma concepção de nação que coloque esta na lógica dos modos de produção e das lutas de classe, conquanto essas sejam indicadas como o fundamento da história, e na visão universal da revolução proletária, vista como seu devir.”. GALLISSOT, Rene. Nação e nacionalidade nos debates do movimento operário. In: HOBSBAWM, Eric (org.). História do Marxismo. Vol. 4. Tradução de Carlos Nelson Coutinho e Nemésio Salles. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2004, p. 174.
(4) “Em todos os centros industriais e comerciais da Inglaterra, existe agora uma classe operária dividida em dois campos hostis, proletários ingleses e proletários irlandeses. O operário comum inglês odeia o operário irlandês como um concorrente que faz baixar o nível de vida. Ele se sente diante deste último como parte da nação dominante e, justamente por isto, transforma-se em instrumento dos seus aristocratas e capitalistas contra a Irlanda, consolidando de tal modo o domínio deles sobre si mesmo. O operário inglês nutre preconceitos religiosos, sociais e nacionais em face do irlandês. Comporta-se mais ou menos como os brancos pobres em relação aos negros nos Estados outrora escravistas da União americana. O irlandês reage na mesma moeda. Ele vê no operário inglês o corresponsável e o instrumento idiota da dominação inglesa sobre a Irlanda (...). Este antagonismo é o segredo da impotência da classe operária inglesa, a despeito de sua organização.”. 
(5) Marx adotaria um posicionamento semelhante para o caso das relações entre o México e os Estados Unidos, o que não deixou de repercutir em ataques bastante anacrônicos contra ele.
(6) MARX, Karl. A dominação britânica na Índia. 10 de junho de 1853. Disponível em: . Consultado em 2 de agosto de 2017. 
(7) BAUER, Otto. The Question of Nationalities and Social Democracy (A questão das nacionalidades e a socialdemocracia). Tradução de Joseph O’Donnell. Minneapolis: University of Minnesota Press, 2010.  
(8) SCHORSKE, Carl. Viena Fin-de-siècle: Política e Cultura. Tradução de Denise Bottmann. São Paulo: Companhia das Letras, 1981. 
(9) SCHORSKE, Carl. Viena Fin-de-siècle: Política e Cultura. Tradução de Denise Bottmann. São Paulo: Companhia das Letras, 1981, p. 222. 
(10) Para ler mais sobre a centralidade da biologia como base para o racismo científico, ver: GOULD, Stephen Jay. A falsa medida do homem. Tradução de Valter Lellis Siqueira. São Paulo: Martins Fontes, 2014. 
(11) LUXEMBURGO, Rosa. A questão nacional e a autonomia. Disponível em: . Consultado em 20 de agosto de 2017. 
(12) LÊNIN, Vladimir. Sobre o direito dos povos à autodeterminação. Disponível em: . Consultado em 20 de agosto de 2017. 
(13) Apud. GALLISSOT, Rene. Nação e nacionalidade nos debates do movimento operário. In: HOBSBAWM, Eric (org.). História do Marxismo. Vol. 4. Tradução de Carlos Nelson Coutinho e Nemésio Salles. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2004, p. 174.
(14) GRAMSCI, Antonio. Escritos políticos. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004. 
(15) Citado por DURANTE, Lea. Verbete “Nacional Popular”. In: LIGUORI, Guido; VOZA, Pasquale (org.). Dicionário Gramsciano. São Paulo: Boitempo, 2017. 
(16) Como lembra Augusto Buonicore, citando Gramsci: “O camarada Lênin nos ensinou que, para vencer nosso inimigo de classe — que é poderoso, que tem muitas reservas à sua disposição —, devemos aproveitar qualquer rusga em seu seio e devemos utilizar todo aliado possível, ainda que incerto, vacilante e provisório. Ele nos ensinou que, na guerra dos exércitos, não se pode atingir o fim estratégico, que é a destruição do inimigo e a ocupação do seu território, sem ter atingido antes uma série de objetivos táticos tendentes a desagregar o inimigo antes de enfrentá-lo em campo aberto.”. BUONICORE, Augusto. A vida e a obra de Antonio Gramsci. Disponível em no Portal da Fundação Maurício Grabois . Consultado em 20 de agosto de 2017.

voltar

Editora e Livraria Anita Garibaldi - CNPJ 96.337.019/0001-05
Rua Rego Freitas 192 - República - Centro - São Paulo - SP - Cep: 01220-010
Telefone: (11) 3129-4586 - WhatsApp: (11) 9.3466.3212 - E-mail: livraria@anitagaribaldi.com.br