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Edição 148 > Americanismo e Tempos Modernos: as lentes de Gramsci

Americanismo e Tempos Modernos: as lentes de Gramsci

Marcos Aurélio da Silva
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Leituras do americanismo

Leituras do americanismo

É certamente fascinante pôr em relação o estudo que Antonio Gramsci dedicou ao tema do americanismo e do fordismo e a obra-prima que Charles Chaplin rodou sob o título Tempos Modernos. Autores de grande sensibilidade social, e muito atentos ao curso dos acontecimentos mundiais, ambos se dedicam ao tema mais ou menos no mesmo periodo – Gramsci redigindo seu caderno especial (1) no ano 1934, Chaplin dedicando-se às filmagens entre 1934 e 1935.

Na verdade, trata-se de uma temática que chamou a atenção de muitos intelectuais de esquerda ao longo do século XX, e isto nos mais diferentes contextos. Não é exagero dizer, porém, que no mais das vezes fora avaliada de modo abertamente condenatório, o que certamente se explica a partir desses mesmo contextos. Na Europa dos anos 1930, reagindo à onda do “modernismo reacionário”, positivista e apegado ao “mito da máquina” (2), vê-se o católico Pierre Pascal, entusiasmado com a Rússia soviética, glorificar uma sociedade em que existem só os “pobres e os muito pobres”; enquanto uma filósofa como Simone Weil, igualmente seguidora de Marx, reconhecia nas técnicas fordistas não mais que uma pura e simples “americanização”(3). Por sua vez, também o Brasil, já característico por “uma cultura popular” com enorme “presença na vida social” (4), irá encontrar, a partir da modernização aberta com o período ditatorial de 1964, meios de condenar, muito a seu modo, as mazelas da americanização: “Como o velho Chaplin”, dizia uma canção popular da época, “eu jogo na cara, tanta coisa podre.” (5).

Claramente distante da glorificação positivista da máquina, o filme de Chaplin certamente impõe dificuldades às tentativas de classificá-lo como simples reação niilista. Pensemos na advertência de David Harvey. No contexto do modernismo reacionário do entreguerras, enquanto muitos setores da arte e da cultura conhecem um processo que transforma “a rebelião artística em agressiva ideologia liberal”, o cinema, integrante dos “campos estéticos relativamente novos”, permanece ainda aberto a inovações (6). E eis um meio, segundo nos parece, pelo qual se pode estabelecer uma aproximação entre o programa gramsciano da hegemonia e a obra de Chaplin. Quando mais não seja porque, dando-se conta do “‘sucesso’ internacional do cinema modernamente”, e buscando relações entre “cultura, arte e linguagens artísticas”, nosso sardo chegou a se referir a este campo estético como uma área a requerer “observações ‘indispensáveis’ e ‘fundamentais’ ‘para uma política de cultura das massas populares’.” (7).

Estas páginas irão explorar esses dois ângulos do americanismo, no texto clássico de Gramsci e, marginalmente, no filme de Chaplin. Vale dizer, a crítica tanto de uma visão positivista do americanismo, quanto da sua negação tout court. A rigor, duas visões reacionárias, como nos recorda seja o futurismo, uma espécie de “romantismo contemporâneo” (8), ou “modernizante”, de “apelo frenético” ao “futuro” em nome da “liberdade individual”, mas sempre movido por uma rebelião “romântica, avidamente espontânea” (9); seja as posições de um filósofo como Heidegger que, tanto quanto Nietszche, “fonte primária daquela crítica da modernidade que estimulou a virada pós-modernista dos anos 1970” (10), condenou, no ano de 1942, o bolchevismo como “apenas uma variante do americanismo” (11). E não é questão menor, note-se, lembrar as ambiciosas expectativas que Heidegger depositava no nazismo, a “mais potente onda contrarrevolucionária da modernidade”, com sua “hostilidade à democracia e ao princípio da igualdade”, sua “negação da própria essência genérica humana”, e “a teoria e a prática do extermínio colonial” (12).

Dessas duas frentes de crítica, desdobra-se a questão da periodização do processo historico e da própria dialética espacial agora encarnada no devir historico – a rigor demarcado, após a vitória da Revolução de Outubro, por uma geografia do colonialismo. E diante da questão da periodização está também a da nova forma pela qual se apresentam as correntes reacionárias. Aquela que, segundo a redefinição que Gramsci deu a esta categoria no Caderno 10, figura não mais como contrarrevolução, mas um tipo de revolução-restauração, ou revolução passiva (13).

Iniciamos com as páginas do Caderno 22, intercalando, quando oportuno, passagens do filme de Chaplin.

Hegemonia e complicações catastróficas

No texto dedicado ao americanismo, a explicação para a encarnação tipicamente americana dos novos métodos de produção – e dos modos de vida que lhe são correlatos – é buscada por meio de uma comparação com as formas sociais prevalecentes na Europa. Em especial, com “a velha e anacrônica estrutura social-demográfica europeia” (14), tão bem encarnada nas zonas meridionais e que Gramsci, inspirado nas observações de Goethe, denominou o “mistério de Nápoles”. Segundo ele:

Nápoles é a cidade onde a maior parte dos proprietários rurais do Sul (nobres e plebeus) gasta sua renda da terra. É em torno de algumas dezenas de milhares destas famílias de proprietários, de maior ou menor importância econômica, com suas cortes de servos e lacaios diretos, que se organiza a vida prática de uma parcela significativa da cidade, com suas indústrias artesanais, com suas profissões ambulantes, com a enorme pulverização da oferta imediata de mercadorias e serviços aos desocupados que circulam pelas ruas. (...) A indústria “produtiva” (no sentido de que cria e acumula novos bens), é relativamente pequena, embora Nápoles seja incluída nas estatísticas oficiais como a quarta cidade industrial da Itália, depois de Milão, Turim e Gênova. 

Trata-se de formas de conservação do “exército de parasitas, que ao devorar enormes quantidades de mais-valia, agrava os custos iniciais e debilita o poder de concorrência no mercado internacional” (15). E eis que, expressão desse estado de coisas, também o aparato estatal aparece como “fonte de parasitismo absoluto”, bem como a população – italiana, mas não apenas – é mantida em nível paupérrimo, o que explica suas “doenças endêmicas”, sua “crônica desnutrição” e, pois, as ondas de “emigração a longo prazo” (16).

O que se passa com a América? Ali não se está diante de “grandes ‘tradições históricas e culturais’”; não está a América “sufocada por esta camada de chumbo”, e eis “uma das principais razões” – sustenta nosso autor contra os que acham mais importante “a chamada riqueza natural” – de sua “formidável acumulação de capital, malgrado o nível de vida de suas classes populares ser superior ao europeu” (17). Assim é que, a partir de uma “base mais sadia para a indústria”, se logrou uma “redução cada vez maior da atividade econômica representada pelo transporte e pelo comércio a uma real atividade subordinada à produção” (18). Os experimentos de Ford fornecem os exemplos mais acabados, como as economias obtidas por sua fábrica através da gestão direta do transporte e do comércio da mercadoria produzida, economias que influíram sobre os custos de produção, ou seja, que permitiram melhores salários e menores preços de venda (19).

Mas, apesar desta analogia francamente favorável à América, nem tudo o que Gramsci nos põe a conhecer é róseo. Os altos salários, não mais que uma das formas de obter a hegemonia (a rigor, sua forma consensual) resultam do monopólio – como, aliás, se pode notar observando a estrutura técnica antes descrita –, e isto não poderá ser duradouro:

a indústria americana que paga altos salários desfruta ainda de um monopólio que resulta do fato de ter a iniciativa dos novos métodos. Mas o monopólio será necessariamente limitado, num primeiro momento, e depois destruído pela difusão dos novos métodos, tanto nos Estados Unidos quanto no exterior (...). E assim, junto com os grandes lucros, também desaparecerão os altos salários (20).

No mais, hegemonia não é só persuasão – e para a qual também contam os “diversos benefícios sociais”, a “habilíssima propaganda ideológica e política” (21) –, mas igualmente coerção. E aqui as coisas decididamente se complicam, gerando toda uma série de crises “de tendência frequentemente catastrófica” (22). Vejamos.

Os altos salários são o “instrumento para selecionar os trabalhadores qualificados adaptados ao sistema de produção e de trabalho e para mantê-los de modo estável” (23). Afinal, os métodos de Ford, “ponto extremo de sucessivas tentativas da indústria no sentido de superar a lei tendencial da queda da taxa de lucro” (24), implicam “uma forma de consumo da força de trabalho e uma quantidade de força consumida no mesmo tempo médio”, que são os “mais gravosos e extenuantes” (25). Como não recordar as cenas em que nosso Vagabundo é controlado até mesmo no banheiro da fábrica? Ou a hilária mas não menos cruel máquina dedicada a eliminar a pausa do almoço? Voltemos a Gramsci. Acontece, porém, que 
o alto salário é uma arma de dois gumes: é preciso que o trabalhador gaste ‘racionalmente’ o máximo de dinheiro para conservar e, se possível, aumentar sua eficiência muscular-nervosa, e não para destruí-la (26).

E agora se pode compreender todas as ações coercitivas que, acompanhando os altos salarios, vão bem além dos muros da fábrica. Elas aparecem na “luta contra o álcool, o mais perigoso agente de destruição das forças de trabalho”, mas também por meio da sujeição dos impulsos sexuais, “pois o abuso e a irregularidade das funções sexuais são, depois do alcoolismo, os inimigos mais perigosos das energias nervosas” (27). E é assim que se chega a “um fortalecimento da ‘família’ em sentido amplo” (28) e à entronização das “ideologias puritanas, que dão a forma exterior da persuasão e do consenso ao uso intrínseco da força” (29).

Curiosamente, todo este proibicionismo não afeta a classe operária. Quem “trabalha por salário, com um horário fixo, não tem tempo para dedicar à procura do álcool”, e igual “observação pode ser feita para a sexualidade” (30). Assim, são “as classes médias e uma parte da própria classe dominante”, que acabam por sentir “a pressão coercitiva, exercida necessariamente sobre toda a área social” (31). Daí as crises de libertinismo, frequentemente apoiadas em uma concepção iluminista e libertária, a que são submetidas “as mulheres e filhas” do industrial norte-americano, cada vez mais feitas “mamíferos de luxo”, mas também os muitos divórcios nas classes superiores estadunidenses (32).

Não obstante, a classe operária pode ser indiretamente afetada. Uma “longa e ampla crise de desemprego” pode levar a “uma crise de moralidade excessivamente profunda e extensa entre as massas trabalhadoras” (33). E aqui está o camarada da usina siderúrgica, que aparece como ladrão ao Carlitos guarda-noturno de uma loja de departamentos, os dois entregando-se a uma noitada de bebedeira. 

Lembremos porém que os altos salários e a estabilidade não estão disponíveis para todos, mas apenas “para as aristocracias privilegiadas”, às quais se contrapunham, em setores como o portuário, na indústria do vestuário, no comércio atacadista e até na agricultura, “a massa dos ‘trabalhadores temporários’.” (34). Este um grupo social tendente a avizinhar-se, sobretudo nas grandes crises, aos “débeis e refratários”, que são “lançados no inferno das subclasses”, ou inteiramente eliminados (35). E é chegada a hora de definir o ser social de nosso Vagabundo, sempre às voltas com a inadaptação ao mundo de Ford. Com efeito, o Carlitos de Tempos Modernos está longe de ser o trabalhador fordista: em uma típica linha de montagem, deixa-se enredar como parte das engrenagens, até cair em colapso nervoso; empregado em um estaleiro, é despedido na primeira trapalhada; e atrapalhadas também são as experiências de mecânico e garçom. Enfim, o representante dos “débeis e refratários”.

Seguramente, operando-se uma “uma certa divisão do trabalho” – em que as “profissões mais qualificadas” ficam “para os nativos, além das funções de direção e organização”, enquanto que as “não qualificadas” vão “para os imigrantes” –, estamos aqui diante de uma sucessiva reposição “do problema da hegemonia” (36). Mas é às classes dirigentes que cabe toda a iniciativa, por exemplo através de “um contínuo e relevante gasto com o aprendizado dos novos urbanizados” (37). Quando mais não seja porque a “ausência da fase histórica europeia” marcada pela Revolução Francesa, “deixou as massas populares americanas em estado bruto”, problema ao qual se deve “acrescentar a ausência de homogeneidade nacional, a mistura das culturas-raças, a questão dos negros” (38). E eis que, até pelo menos a crise de 1929, a luta operária se dá com as “armas tomadas do velho arsenal europeu”, uma luta “ainda pelos direitos profissionais”, análoga “àquela que se travou na Europa no século XVIII” – e, por isso, idílica e nada progressista, diante da exigência dos industriais (39). Idílio, note-se, que Chaplin reproduz, com os exageros do gênero, através da cena dos sonhos românticos de Carlitos, novo urbanizado a almejar um bucólico lar de frutas na janela e vaca a ordenhar.

Revolução passiva e fascismo

O quadro acima é o de uma ampla crise. Já nos referimos à sua forma econômica, lembrando as referências à tendência à queda da taxa de lucro.  E todas as “complicações, posições absurdas, crises econômicas e morais”, não são outra coisa senão o resultado de soluções “formuladas e tentadas nas condições contraditórias da sociedade moderna” (40). Condições certamente típicas das grandes crises civilizacionais, como se vê nas associações entre libertinismo e o período “da queda da escravidão e do advento do cristianismo” (41).

Assim, na América, nada pode levar a pensar em uma “nova cultura”, “um novo farol de civilização”, como pretendia Pirandello. Para Gramsci, “o que se faz na América é apenas remoer a velha cultura europeia” (42); “nada mudou no coração e nas relações dos grupos fundamentais: trata-se de um prolongamento orgânico e de uma intensificação da civilização europeia, que apenas assumiu uma nova epiderme no clima americano” (43).

Mas também, e ainda em posição ao dramaturgo íntimo do futurismo, o que na Europa se observava não era mais que a “iniciativa superficial e macaqueadora dos elementos que começam a se sentir socialmente deslocados”, expressão de “quem é impotente para reconstruir e toma como ponto de apoio os aspectos negativos da transformação” (44). Assim, não é estranho que ao lado do supercosmopolitismo da “fanfarra fordista”, com sua “exaltação da grande cidade”, dos “planos urbanisticos para a grande Milão”, sua “afirmação de que o capitalismo ainda está em seus inícios e que é preciso preparar-lhe os quadros de um grandioso desenvolvimento” (45), se afirme um superregionalismo. Vale dizer, a “conversão ao ruralismo e à desvalorização iluminista da cidade”, sua “exaltação do artesanato e do patriarcalismo idílico”, dos “‘direitos profissionais’”, da “luta contra a liberdade industrial” (46). Compreende-se, pois, que tanto quanto às imagens de uma “nova cultura” de Pirandello, Gramsci se lance contra as preocupações, não menos aristocráticas, “com a integridade da natureza e o caráter próprios da civilização italiana”, levantadas pelo fascista Mino Maccari (47). Ora, estamos diante das contradições ideológicas da crise civilizacional, ela já imbricada, note-se bem, à consolidação do Estado corporativo, com sua particular base social de traços meridionais.

De fato, urge entender que o Estado corporativo, “exaltação do Estado em geral”, do Estado “absoluto”, fora forjado, nas condições italianas, a partir da contradição entre uma “base político-social” que parecia se encontrar “na ‘gente miúda’ e nos intelectuais”, e uma “estrutura” que, em sua essência, “permanence plutocrática”, tornando “impossível romper as ligações com o grande capital financeiro”, já ele mesmo encarnado na figura do Estado, que se transforma em “holding das grandes massas de poupança dos pequenos capitalistas” (48). Tudo o resultado de uma situação em que “a poupança é ‘socialmente’ muito cara, já que obtida à custa de um nível de vida excessivamente baixo dos trabalhadores industriais e, sobretudo, agrícolas” (49).

E eis que cabe perguntar: para Gramsci “o americanismo pode constituir uma ‘época’ histórica” como aquela “das ‘revoluções passivas’ próprias do século passado”, ou, ao contrário, ele “representa apenas a acumulação molecular de elementos destinados a produzir ‘uma explosão’, ou seja, uma revolução de tipo francês”? (50).  Tudo leva a crer, destaca Losurdo, e já tendo recordado a lei da queda da taxa de lucro de que antes falamos, tartar-se do primeiro caso, pois Gramsci vive a fase “do fascimo e da estabilização do capitalismo” (51). De fato, vem a tempo lembrar a crítica que, no Caderno 10, Gramsci endereça a Croce, inclinado a questionar a lei da tendência à queda da taxa de lucro de Marx – ela que, adverte Gramsci, supõe também claramente a existência de forças contrapostas, a introduzirem diferentes graus de tendencialidade (52). E assim se entende os contraditórios equilíbrios – mesmo ideológicos – sobre os quais se assenta o Estado corporativo.

Do fascismo ao revisionismo?

O ponto anterior nos leva a uma questão importante. É clara em Gramsci a leitura de que o americanismo emerge como resultado da “necessidade imanente de chegar à organização de uma economia programática”, sendo os diversos problemas a ele relacionados, não mais que a marca da “passagem do velho individualismo econômico” a esta forma social (53). Não obstante, e como a própria estabilização do capitalismo sob o fascimo revela, não se trata de pensar, como Lênin, em “putrefação” do capitalismo; como em Lukács em “destruição da razão”; e, menos ainda, nas teses “catastrofistas” dos frankfurtianos (54).

Ora, diante dessas constatações, estaríamos autorizados a dizer, segundo sustenta Giuseppe Vacca, que, para Gramsci, um americanismo pós-fascista deveria emergir “sob a direção” de uma “burguesia mais moderna”? (55). E isto, ainda nas palavras de Vacca, muito em razão da “rusticidade do marxismo soviético”, da “ineficiência da economia de comando”, do “isolacionismo staliniano”? (56). Algo próximo, usando os termos de Harvey, daquela “elite de vanguarda”, de “gosto refinado”, que no pós-Segunda Guerra se empenhou em um “modernismo ‘universal’”, um “alto modernismo” (57).
Sem negar ter sido este um processo de “bastante sucesso” (58), deve-se notar que Gramsci, mesmo se reconhece nas diversas revoluções passivas, diferentes graus do desenvolvimento burguês (59), foi um crítico das tentativas de “reduzir a dialética” a uma simples “evolução reformista” (60). Na verdade, estamos diante de uma leitura que se põe a cancelar, no campo intelectual, a mudança que a Revolução de Outubro introduziu na dialética histórica, agora determinada pelo problema do colonialismo, aliás bem presente nas questões meridionais que interessaram a Gramsci. E não um fato menor que, no pós-Segunda Guerra, tanto as reformas no Ocidente capitalista quanto a onda de descolonização tenham respondido, em última instância, ao êxito da Revolução de Outubro (61).

De fato, parece justa a crítica que Raul Mordente endereçou a Vacca, associando sua leitura ao que chamou de “revisionismo contemporâneo”; o movimento cultural que, marcando a contraofensiva neoconservadora dos últimos decênios, tem buscado impor, por meio da publicística e da mídia, um ponto de vista de direita no senso comum, especialmente crítico ao marxismo e ao comunismo (62). E ainda assim vale acrescentar: não é afinal esta, segundo se pode ler em Ruggero Giacomini, uma linha de argumentação já bastante antiga, cujas raízes estariam na leitura interessada que Angelo Tasca, expluso do PCI por desvios de direita, fez da carta enviada por Gramsci à Internacional Comunista no ano de 1926, buscando passar uma imagem de dissenso entre Gramsci, de um lado, Togliatti, o PCI e a URSS, de outro? (63).

Americanismo e socialismo

E eis que é a Domenico Losurdo que cabe dar razão quando insiste, também na chave de uma crítica à tese “do afastamento de Gramsci do movimento comunista”, que as “páginas sobre ‘Americanismo e Fordismo’ falam não só dos Estados Unidos, mas também da Rússia soviética, e talvez falem da Rússia soviética ainda mais que dos Estados Unidos” (64). Claramente em sintonia com a mudança geográfica da qual falamos, isto explica, adverte Losurdo, não só o crescente interesse que “Gramsci reserva ao ‘americanismo e ao fordismo’ a partir já de 1929, mas igualmente o juízo positivo expresso a tal propósito nos Cadernos do Cárcere” (65).

De fato, distanciando-se do mote catastrofista frankfurtiano, Gramsci alerta que o fordismo “não destrói espiritualmente o homem”; depois de completada a adaptação, “o cérebro do operário” alcança sua “completa liberdade” (66). E assim é que se pode concluir ser possível, segundo já notara “o grupo de L’Ordine Nuovo”, defender “uma forma própria de ‘americanismo’ aceitável pelas massas operárias.” (67).

E é ainda na crítica à corrente de Trotsky que se explicita sua visão acerca do americanismo em tradução socialista. Ela não pode se fazer “apenas através da ‘coerção’”, tendente a “desembocar” em uma “forma de bonapartismo” (68), de tipo militarista. Mas, antes, “por meio de uma combinação entre coação (autodisciplina) e persuasão” (69), tema também explorado no Caderno 19, com as tintas leninistas da aliança operário-camponesa – “aderente à história efetiva”, nada “abstrata” –, a ser realizada sob a “hegemonia do grupo urbano” (70). Combinação esta que não é outra coisa senão o modo “original” de operar dos “grupos sociais” que, “por imposição e através do sofrimento”, “estão criando” “as bases materiais desta nova ordem”, destinada a transformar em “‘liberdade’ o que é hoje ‘necessidade’.” (71).

Compreende-se, pois, que o diretor de Modern Times, notório socialista, fechando sua crítica ao americanismo, tenha rejeitado – e em oposição ao À nous la libertè!, de René Clair – apelar ao niilismo, tão inerente às contradições do “modernismo reacionário” – uma definição, diga-se, que mesmo Harvey buscou estender à área socialista (72), revelando também ele não ter resistido ao tipo de revisionismo que se acerca da obra de Gramsci.

* Marcos Aurélio da Silva é professor da Universidade Federal de Santa Catarina. A primeira versão deste artigo foi apresentada no colóquio Literatura, Cinema e Materialismo Histórico, Departamento de História/UFSC, 15 a 17-10-2013. 

Notas

(1) GRAMSCI, A. Americanismo e fordismo. In: Cadernos do Cárcere. Vol. 4. Tradução de L. S. Henriques e C. N. Coutinho. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.  Agora citado como C. 22.
(2) HARVEY, D. A Condição pós-moderna. 24ª ed. São Paulo, Loyola, 2013, p. 39-40.
(3) LOSURDO, D. L’americanismo? Non è da avversare. In: Il Manisfesto, 27-06-2013.
(4) VIANNA, L. W. Esquerda brasileira e tradição republicana. Rio de Janeiro: Revan, 2006, p. 167.
(5) NASCIMENTO, M.; BRANT, F. Pelo amor de Deus. In: Clube da Esquina. Rio de Janeiro: Emi Odeon, 1972.
(6) ARVEY, D., 2013, p. 44.
(7) BARATTA, Gramsci em contraponto: diálogos com o presente. São Paulo: Unesp, 2011, p. 114-115.
(8) GRAMSCI, A. O Risorgimento. Notas sobre a história da Itália. In: Cadernos do Cárcere, vol. 5. Tradução de L. S. Henriques.  Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002, p. 89. Agora C. 19.
(9) PEDROSA, M. Futurismo, romantismo modernizante. In: Modernidade cá e lá: textos escolhidos, vol. 4. ARANTES, O. (org.). São Paulo: Edusp, 2000, p. 213-14. 
(10) AZZARÀ, S. Heidegger “inocente”: um exorcismo da esquerda pós-moderna. In: Crítica Marxista, no 42, 2016, p. 111.
(11) LOSURDO, D., 2013.
(12) AZZARÀ, S. G., 2016, p. 109.
(13) FROSINI, F. Sulle ‘spie’ dei Quaderni del carcere. In: International Gramsci Journal, no 4, jun. 2015, p. 53.
(14) C. 22, p. 242.
(15) Ibidem, p. 242-243.
(16) Ibidem, p. 245-246.
(17) Ibidem, p. 247.
(18) Ibidem. 
(19) Ibidem.
(20) Ibidem, p. 273.
(21) Ibidem, p. 247.
(22) Ibidem, p. 242.
(23) Ibidem, p. 267.
(24) Ibidem, p. 242.
(25) Ibidem, p. 274.
(26) Ibidem, p. 267.
(27) Ibidem, p. 268.
(28) Ibidem, p. 264.
(29) Ibidem, p. 263.
(30) Ibidem, p. 268.
(31) Ibidem, p. 263.
(32) Ibidem, p. 263-264, 269-270.
(33) Ibidem, p. 268.
(34) Ibidem, p. 276.
(35) Ibidem, p. 262-263.
(36) Ibidem, p. 251.
(37) Ibidem.
(38) Ibidem, p. 248.
(39) Ibidem.
(40) Ibidem, p. 242.
(41) Ibidem, p. 268.
(42) Ibidem.
(43) Ibidem, p. 281.
(44) Ibidem, p. 280.
(45) Ibidem, p. 249.
(46) Ibidem.
(47) Ibidem, p. 253
(48) Ibidem, p. 278-279.
(49) Ibidem.
(50) Ibidem, p. 242.
(51) LOSURDO, D. Gramsci, do liberalismo ao “comunismo crítico”. Rio de Janeiro: Revan, 2006, p. 194.
(52) GRAMSCI, A. A filosofia de Benedetto Croce. In: Cadernos do Cárcere. Vol. 1. 3ª ed. Tradução de C. N. Coutinho. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004, p. 348-349. Agora C. 10.
(53) C. 22, p. 241.
(54) LOSURDO, D., 2006, p. 190 e ss.
(55) VACCA, G. Vida e pensamento de Antonio Gramsci: 1926-1937. Tradução de L. S. Henriques. Brasília Fundação Astrojildo Pereira; Rio de Janeiro: Contraponto, 2012, p. 225.
(56) Ibidem, p. 224
(57) HARVEY, 2013, p. 42.
(58) Ibidem.
(59) C. 19, p. 84-85.
(60) C. 10, p. 396.
(61) LOSURDO, D. La lotta di classe: una storia politica e filosofica. Roma-Bari: Laterza, 2013.
(62) MORDENTI, R. Recensione a Giuseppe Vacca, Vita e pensieri di Antonio Gramsci. 1926-1937. In: Testo e Senso, n. 13, 2012.
(63) GIACOMINI, R. Il Giudice e Il prigioniero. Roma: Castelvecchi, 2014, p. 200-201.
(64) LOSURDO, 2013.
(65) Ibidem.
(66) C. 22, p. 272.
(67) Ibidem, p. 248
(68) Ibidem, p. 265.
(69) Ibidem, p. 275.
(70) C. 19, p. 86.
(71) C. 22, p. 280.
(72) HARVEY, 2013, p. 40-41.

 

 

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