Capa
Edição 148 > Gramsci, das Teses de Lyon aos Cadernos do Cárcere: o partido e a análise da sociedade italiana*
Gramsci, das Teses de Lyon aos Cadernos do Cárcere: o partido e a análise da sociedade italiana*
As Teses de Lyon representam um divisor de águas fundamental, seguramente o ponto mais alto no qual a elaboração teórica e a direção política de Gramsci encontram um elevadíssimo ponto de entendimento

As Teses de Lyon foram definidas como eixo fundamental de viragem na história dos comunistas italianos, seja em relação à concepção de partido, seja para a análise da sociedade. Em ambos os casos se chega à superação completa das Teses elaboradas pelo Congresso de Roma, depois da profunda mudança na direção política do Partido sob a liderança de Antônio Gramsci.
Durante e após o Congresso de Roma, se opuseram e se confrontaram duas ideias radicalmente opostas do partido, sinteticamente assim resumidas: de um lado, a visão de partido considerado como parte da classe, ou seja, uma organização articulada em células de fábrica e complementada pela formação permanente de todos os seus quadros, visando alcançar uma direção/elaboração difundida pelas próprias classes subalternas; de outro, o partido considerado como órgão externo à classe, ou seja, uma organização restrita apenas aos dirigentes revolucionários, rígidos e incorruptíveis, em condições de apreenderem no quadro econômico e social as contradições fundamentais das quais, no momento oportuno, irrompe a explosão revolucionária (1).
No primeiro caso temos a ideia de um partido com a ambição de aderir organicamente à estrutura produtiva – em cuja base está uma concepção molecular da revolução, metodologicamente oposta à ideia de um não bem identificado “momento X” –, e pretende articular plasticamente a sua atividade na ação cotidiana dos trabalhadores. No segundo caso, uma elaboração que considera luta econômica – para a melhoria das condições de vida e trabalho – e luta política – para a conquista gradual de posições de poder na sociedade – como reponsáveis pela difusão de mentalidade corporativa e a corrupção da pureza revolucionária. Para tal concepção, a conexão entre partido e massas deveria ocorrer apenas no momento decisivo do conflito de classe.
O período que vai do verão de 1925 ao Congresso de janeiro de 1926 é crucial para a evolução do pensamento de Gramsci em relação ao partido, à sua relação com as massas, à função nele desenvolvida pelos intelectuais; um período no qual chegam à plena maturidade as experiências de direção e orientação política realizadas a partir de 1923. Uma fase na qual a sua análise se desenvolve para questionar em profundidade o papel desenvolvido pelos intelectuais na sociedade italiana, como tecido conector das ordens sociais dominantes. Nessas análises já se encontra presente aquela redefinição do conceito de Estado e de domínio, que antecede a categoria hegemonia. As reflexões de Gramsci nessa fase são a base essencial da teoria sobre os intelectuais, depois desenvolvida no texto Questão meridional e nas reflexões realizadas no cárcere. Ao mesmo tempo, ela é o ponto de chegada daquela anterior e, no geral, fortemente enraizada na experiência “ordinovista”.
A plataforma congressual da esquerda foi publicada no Unità de 7 de julho de 1925. Ela reproduzia sobre três eixos fundamentais as posições já muitas vezes expostas pelo seu líder Amadeo Bordiga (2): 1) o partido era entendido como um órgão da classe que sintetiza e unifica os impulsos individuais, de modo a ir além do particularismo da categoria e recolher os elementos provenientes dos proletários das diversas categorias, dos camponeses, dos desertores das classes burguesas; 2) era rejeitada a “bolchevização” – apresentada no V Congresso e reproposta pelo “grupo de centro” liderado por Gramsci –, ou seja, a divisão organizacional do partido em células na base de fábrica; 3) foi estigmatizada a luta contra as frações iniciadas pelo Comintern.
Tal impostação encontrou total expressão no seu projeto de Tese para o Congresso. Segundo Bordiga, era impossível modificar a essência das situações objetivas, atribuíveis ao quadro mais geral das relações sociais de produção, por meio de uma determinada forma organizativa. Uma organização “imediata de todos os trabalhadores economicamente enquanto tal” seria constantemente dominada pelos impulsos das diversas categorias profissionais para satisfazer os próprios interesses econômicos particulares determinados pela exploração capitalista. Daí a grande desconfiança, já manifestada nos tempos dos conselhos de fábrica (3), em relação ao comprometimendo do partido nas disputas dos trabalhadores. Na mesma edição do Unità de 7 de julho, Gramsci se comprometeu em redigir uma réplica que foi extremamente importante. Nela, já se pode perceber claramente a concatenação existente em relação à elaboração dos anos do “Ordine Nuovo” (Nova Ordem), sobre o tema da autonomia dos produtores, e encontra um primeiro esboço a ideia de intelectual como produto autônomo da classe, afirmação segundo a qual todo trabalhador, ao entrar ao partido comunista, se torna um dirigente e, portanto, um intelectual. A “Comissão de entendimento” concebia o partido como síntese de elementos individuais e não como um movimento de massa e de classe, e nisso era recuperada a raiz da teoria do partido de Bordiga:
“Nesta concepção há uma nuance de forte pessimismo em relação à capacidade dos operários enquanto tais, pois apenas os intelectuais podem ser dirigentes políticos. Os operários são operários, e só podem permanecer assim, até quando o capitalismo os oprimir: sob a opressão capitalista o operário não pode se desenvolver plenamente, não pode sair do espírito estrito de categoria. O que é então o partido? É tão-somente o restrito grupo dos seus dirigentes que transmitem e sintetizam os interesses e as aspirações genéricas da massa, mesmo no partido. A doutrina leninista afirma e demonstra que essa concepção é falsa e extremamente perigosa; ela leva, entre outras coisas, ao fenômeno do mandarinato sindical (...). Os operários entram para o partido comunista não apenas como operários (metalúrgicos, carpinteiros, construção civil etc.), mas entram como operários comunistas, como homens políticos, isto é, como teóricos do socialismo, e, por conseguinte, não apenas como rebeldes em geral; e no partido, por meio de discussões, por meio de leituras e das escolas de partido, se desenvolvem continuamente, se tornam dirigentes. Apenas no sindicato o operário entra na qualidade de operário e não de homem político que segue uma determinada teoria” (4).
Segundo Gramsci, a concepção de partido de Bordiga estava fixada na primeira fase do desenvolvimento capitalista, pois ainda em 1848 se poderia afirmar que “o partido é o órgão que sintetiza e unifica os impulsos individuais e de grupo provocados pela luta de classe”, mas na fase de maior desenvolvimento capitalista – o imperialismo –, o proletariado era profundamente revolucionário, já desempenhava uma função dirigente na sociedade. Ainda nesse período, Gramsci redigiu uma Introdução ao primeiro curso da escola interna do partido. Nela, o propósito de fortalecer ideológica e politcamente os quadros e os militantes era posto como objetivo principal de um partido que pretendia se tornar de massa. A formação era o modo de tornar o operário comunista um dirigente e não deixar a luta ideológica exclusivamente nas mãos dos intelectuais burgueses:
“A atividade teórica, isto é, a luta na frente ideológica, sempre foi negligenciada no movimento operário italiano. Na Itália, o marxismo foi estudado mais pelos intelectuais burgueses, para descaracterizá-lo e direcioná-lo para o uso da política burguesa, do que pelos revolucionários”. Ele serviu como tempero a todos os molhos mais indigestos que os mais imprudentes aventureiros da caneta queriam colocar à venda. Foram marxistas desse tipo Enrico Ferri, Guglielmo Ferrero, Achille Loria, Paolo Orano, Benito Mussolini...” (5).
Nessa Introdução, Gramsci contestou explicitamente a concepção de partido tal como foi exposta nas Teses sobre a tática do Congresso de Roma:
“[nelas] a centralização e a unidade eram concebidas de modo muito mecânico: o Comitê Central, ou antes o Comitê Executivo, era todo o partido, ao invés de representá-lo e dirigi-lo. Se essa concepção fosse permanentemente aplicada, o partido perderia as suas características políticas e peculiares e se tornaria, na melhor das hipóteses, um exército (e um exército de tipo burguês), isto é, perderia a sua força de atração, se desligaria das massas. Para que o partido viva e esteja em contato com as massas é preciso que cada membro do partido seja um elemento político ativo, seja um dirigente. (...) A preparação ideológica de massa é, portanto, uma necessidade da luta revolucionária, é uma das condições indispensáveis para a vitória.” (6).
A tarefa de criar as células de fábrica era para Gramsci uma ocasião de autoeducação da classe operária; as células de simples instrumento organizativo se transformam em órgão principal na formação dos intelectuais “orgânicos” da classe operária, podem contribuir para a determinação da autonomia da classe operária em relação à burguesia: “A célula transforma todos os membros do partido em um militante ativo atribuindo a cada um deles um trabalho prático e sistemático. Por meio desse trabalho cria-se uma nova classe de dirigentes proletários, ligados à fábrica, controlados pelos companheiros de trabalho, isto é, de modo a não poder se transformar em funcionários e mandarins, fenômeno que se verifica em grande parte em todos os partidos que conservaram a velha estrutura dos partidos socialistas” (7).
No seu relatório para a reunião da Comissão Política para o Congresso, Gramsci tentou sintetizar os pontos de desacordo entre “a direção central do partido” e a extrema-esquerda em três níveis de relação: entre o grupo dirigente do partido e o conjunto dos membros; entre o grupo dirigente e a classe operária; e entre a classe operária e as outras classes subalternas:
“A nossa posição [escreve Gramsci] resulta de nosso entendimento de que deva ser posto em relevo ao máximo o fato de que o partido é ligado à classe não apenas por laços ideológicos, mas também por laços de caráter físico (...). Segundo a extrema-esquerda, o processo de formação do partido é um processo de síntese; para nós, é um processo de caráter histórico e político, intimamente ligado a todo o desenvolvimento da sociedade capitalista. A concepção discrepante leva a determinar de uma maneira diferente a função e as tarefas do partido. Todo o trabalho que o partido deve realizar para elevar o nível político das massas, para convencê-las e levá-las ao terreno da luta de classe revolucionária é – em consequência da concepção errônea da extrema-esquerda – desvalorizado e dificultado devido ao distanciamento inicial que foi estabelecido entre o partido e a classe operária”(8).
A questão teórica da organização em células colocava em destaque a necessidade de “laços físicos” entre partido e classe em seu conjunto. Já Bordiga, ao afirmar a necessidade de uma “tutela” diretiva da parte de um grupo dirigente “especializado”, colocava como problema absoluto o risco de corporativismo entre os operários. Isso, para Gramsci, deixava transparecer uma concepção paternalista que desvalorizava grandemente a capacidade de direção da classe operária, entendida como para um sujeito inferior incapaz de autodeterminação política.
Já durante o debate pré-congressual, e em maior medida ainda no Congresso de Lyon, Gramsci colocou a teoria sobre o partido de esquerda em continuidade com toda a história dos intelectuais na Itália, com a filosofia crociana e as tradições elitistas e oligárquicas da filosofia política idealista e liberal. Um conceito depois retomado nos Cadernos, nos quais Gramsci coloca num mesmo plano a atitude intelectualista, de “intelectual puro”, de Bordiga e a de Croce.
“O que importa a Croce é que os intelectuais não descem ao nível da massa, mas entendem que uma coisa é a ideologia, instrumento prático para governar, e outra coisa a filosofia e a religião que não devem ser profanadas na consciência dos próprios sacerdotes. Os intelectuais devem ser governantes e não governados, construtores de ideologias para governar os outros e não charlatões que se deixam picar e envenenar pelas próprias víboras. (...) A posição de “puro intelectual” se torna um verdadeiro “jacobinismo” inferior e, nesse sentido, tendo em conta a diferença na estatura intelectual, Amadeo pode se assemelhar a Croce” (9).
Tratando do tema da relação entre a classe operária e os outros explorados, e tornando-o alicerce das teses congressuais, Gramsci compreende perfeitamente o valor estratégico atribuído por Lênin à questão camponesa e à política de alianças (10). Planejar cuidadosamente a revolução, “conquistar as grandes massas”, “ter a simpatia das massas” era para Lênin necessário se houvesse o anseio não apenas de iniciar uma revolução, mas principalmente de vencê-la e manter o poder: “atrair para nós não apenas a maioria da classe operária, mas também a maioria da população trabalhadora e explorada do campo” (11). Um tema central, em um país como a Itália onde o proletariado era uma minoria sem caráter nacional.
Mais precisamente, Gramsci buscou contextualizar para a Itália o grande tema debatido entre o III e o IV Congressos da Internacional Comunista. Neles, tendo observado as dificuldades internacionais, e a complexidade dos processos revolucionários no Ocidente, Lênin e o Executivo do Comintern lançaram a palavra de ordem da conquista da maioria das classes subalternas e da unidade da classe operária através da tática da “frente única”, essencial para a definição da categoria de “hegemonia” em Gramsci.
Já no Congresso de Lyon são colocados três tipos de problemas que acabaram por se constituir na espinha dorsal do texto sobre A questão meridional: a questão meridional entendida como questão camponesa; o tema do partido político da classe camponesa; a função reacionária desempenhada pelo Vaticano.
A atitude das Teses de Roma diante do fascismo, e mais em geral a abordagem teórica de Bordiga, a sua tendência a desvalorizar as diferenças entre quadro democrático e reacionário, eram para Gramsci fraglantes exemplos de um modo errôneo de conceber a tática. Como já foi mencionado no início, as Teses de Lyon marcam uma viragem total inclusive no plano da análise relativa à sociedade italiana, antecipando múltiplos aspectos da obra de Gramsci no cárcere. No período de crise após o assassinato de Matteotti, não teria sido suficiente conduzir uma campanha de crítica ideológica ao regime e às oposições, limitar-se a uma propaganda que tratava da mesma forma os dois sujeitos, era necessário pressionar as oposições colocando-as no terreno visando à derrocada do fascismo, como premissa para qualquer outra ação dos comunistas.
“É absurdo afirmar que não há diferença entre uma situação democrática e uma situação reacionária, e que numa situação democrática seja mais difícil o trabalho para a conquista das massas. A verdade é que hoje em uma situação reacionária luta-se para organizar o partido, enquanto em uma situação democrática se lutaria para organizar a insurreição” (13).
Quando o fascismo estava surgindo e se desenvolvendo, o Partido Comunista da Itália (PCd’I) se limitou a considerá-lo um órgão de combate da burguesia, e não ainda um movimento social, este não coloca o partido em condições de conter o avanço dele [do fascismo] e de se opor à sua ascensão ao poder com uma ação política apropriada; na verdade, o impulsiona a trabalhar contra o «arditi del popolo», um movimento de massa a partir de baixo em relação ao qual o partido deveria contribuir para desenvolver e liderar.
Até mesmo o objetivo de derrotar o fascismo foi relacionado ao problema da hegemonia da classe operária em relação às massas camponesas:
“A situação italiana é marcada pelo fato de que a burguesia é organicamente mais fraca do que em outros países e se mantém no poder apenas porque consegue controlar e dominar os camponeses. O proletariado deve lutar para acabar com a influência da burguesia sobre os camponeses e colocá-los sob o seu comando. Este é o ponto central dos problemas políticos que o partido deverá resolver no futuro próximo” (14).
O elemento predominante da sociedade italiana era uma forma particular de capitalismo no qual conviviam um industrialismo ainda fraco e incapaz de absorver a maioria da população, e uma agricultura, ainda base econômica do país, marcada por uma nítida prevalência de classes pobres (trabalhadores agrícolas) muito próximas das condições do proletariado e por isso potencialmente sensíveis à sua influência.
Entre as duas classes dominantes – industriais e latifundiários agrícolas – se colocava como elemento de junção uma média e pequena burguesia urbana bastante ampla. A fraqueza do modo de produção na Itália – carente de matérias-primas – conduzia os industriais a várias formas de compromisso econômico com os grandes latifundiários agrícolas, baseadas em “uma solidariedade de interesses” entre as classes privilegiadas em detrimento das necessidades gerais da produção. Até o processo do Risorgimento foi expressão dessa fraqueza, porque a edificação do Estado nacional se realizou graças à exploração de determinados fatores de política internacional, e a sua consolidação tornou necessário aquele compromisso social que tinha tornado ineficaz na Itália a luta econômica entre industriais e latifundiários agrícolas, a rotação de grupos dirigentes, típicos de outros países capitalistas. Esse compromisso das classes dominantes de manter uma exploração parasitária determinou uma polarização entre o acúmulo de imensas riquezas por restritos grupos sociais, e a pobreza extrema do restante da população, e resultou em déficit no orçamento e atraso do desenvolvimento econômico em áreas inteiras do país, obstruiu uma modernização do sistema econômico nacional, harmônica e equilibrada com as características da nação.
Mesmo os reveses na primeira parte da guerra mundial e o próprio advento do fascismo são analisados nas Teses à luz dessa fraqueza originária da Itália, antecipando um preceito interpretativo central nas reflexões sobre o Risorgimento presentes nos Cadernos. O compromisso entre industriais e latifundiários agrícolas atribuiu às massas trabalhadoras do Sul a mesma condição das populações coloniais; para essas o Norte industrializado era como a metrópole capitalista para a colônia; as classes dominantes do Sul (grandes proprietários e média burguesia) desempenhavam a mesma função que a das categorias sociais das colônias ligadas aos colonos para manter a massa do povo subjugada à própria exploração. No entanto, na perspectiva histórica, esse sistema de compromisso revelou-se ineficaz porque se transformou num obstáculo ao desenvolvimento das economias industrial e agrária. Isso determinou, em diversas fases, níveis muito críticos de luta entre as classes e, em seguida, da pressão cada vez mais forte e autoritária do Estado sobre as massas.
As décadas de 1870-1890 foram determinadas por Gramsci como o período de maior fraqueza do Estado italiano, sobretudo pela atuação desenvolvida pelo Vaticano como catalizador do bloqueio reacionário antiestatal constituído por remanescentes da aristocracia, dos latifundiários agrários, das populações rurais lideradas por proprietários de terras e por paróquias. O Vaticano tinha manifestado querer trabalhar em duas frentes: de um lado, explicitamente contra o Estado burguês unitário e liberal e, de outro, na tentativa de constituir, por meio dos camponeses, uma espécie de exército de reserva para bloquear o caminho do avanço do movimento operário socialista.
O equilíbrio instável do novo Estado, a distância entre as instituições e o povo são um dos temas fundamentais de estudo nos Cadernos do Cárcere. Basta pensar, por exemplo, nas observações em que Gramsci se detém sobre o método retórico (concebido pelos clérigos) que tendia a contrapor uma Itália real, composta pela maioria católica contrária ao novo Estado unitário, a uma Itália legal constituída por uma minoria de exaltados patriotas devotados à causa nacional e ao ideal liberal. Como o método tinha surgido em um contexto político editorial de um “insípido panfleto da sacristia”, ele era para Gramsci bastante eficaz do ponto de vista polêmico porque mostrava bem a separação existente entre o novo Estado e a sociedade civil. Obviamente, toda a sociedade civil não podia certamente ser incluída na frente clerical, dado que se mostrava amplamente desequilibrada e disforme. E justamente por sua natureza displicente, o Estado não teve dificuldades para dominá-la superando as contradições e os conflitos que irrompiam esporádica e localizadamente, fora de qualquer coordenação no plano nacional e tendente a uma finalidade específica.
Portanto, além de uma situação objetiva de separação entre Estado e sociedade, o próprio clericalismo não podia se considerar como expressão real da sociedade civil, sobre a qual demonstrava dificuldades para exercer uma real direção eficaz. A Igreja, na realidade, temia essas mesmas massas populares pois, embora controladas por ela, nelas entrevia a possibilidade de sublevação. Até a fórmula do “non expedit” (não convém) era para Gramsci um sinal desse temor e da incapacidade política: a atitude de boicote do novo Estado que este representava resultava num propósito objetivamente subversivo. Isso explica por que, com a crise do fim do século e os acontecimentos de 1898, a reação do Estado tenha sido derrotada seja em relação aos primeiros rumores de organização socialista, seja em relação à organização clerical. O abandono da política expressa pela fórmula “nem eleitores, nem eleitos” da parte do Vaticano, que teria levado primeiro ao Pacto Gentiloni e depois ao nascimento do partido popular, surgiu da constatação daquele fracasso.
Para Gramsci, há uma cisão entre país real e país legal nos fatos que afligem o país do início da crise Matteotti até a emissão das leis fascistas, quando a cisão entre o país real e o país legal é superada por meio da extinção dos partidos políticos, das liberdades individuais e coletivas, e do enquadramento militar da sociedade civil em uma única organização política que colocava no mesmo nível Estado e partido.
O período que vai de 1890 a 1900 é o primeiro no qual a burguesia concretamente se coloca o problema de organizar a própria ditadura. É um período marcado por uma série de intervenções políticas e legislativas da viragem protecionista – a favor da grande produção industrial (em particular a indústria mecânica) e da agricultura latifundiária (trigo, arroz, milho) – que leva à denúncia dos tratados comerciais com a França, à entrada da Itália no âmbito da tríplice aliança sob o comando alemão. Nessa fase se resgata consecutivamente o eixo entre industriais e proprietários de terra, retirando as classes rurais do controle do Vaticano.
Porém, a aliança do bloco industriais-latifundiários teve como resposta um avanço das organizações operárias e a rebelião das massas camponesas. Na definição do fascismo (15), as Teses atingem o seu nível mais elevado de análise e conceitualização, introduzindo um novo modelo interpretativo do fenômeno destinado a fazer escola do ponto de vista historiográfico e não apenas dentro do campo marxista.
O fascismo retornava plenamente ao quadro tradicional das classes dirigentes italianas, e assumiu a forma de reação armada com o objetivo categórico de desorganizar as fileiras das organizações das classes subalternas e, por essa via, garantir a supremacia das classes dominantes. Por essa razão, desde o seu surgimento, é favorecido e protegido indistintamente por todos os velhos grupos dirigentes, e entre esses encontram-se sobretudo os latifundiários para que financiem e lançem os grupos fascistas contra o movimento dos camponeses. A base social do fascismo, no entanto, é composta da pequena burguesia urbana e da nova burguesia agrícola.
O fascismo encontra uma unidade ideológica e organizacional nas formações paramilitares que herdam a tradição do “arditismo” e a aplicam à guerrilha contra as organizações dos trabalhadores. Para as Teses, o fascismo realiza o seu plano de conquista do Estado com uma “mentalidade de capitalismo nascente” em condições de fornecer à pequena burguesia uma homogeneidade ideológica em contraposição aos velhos grupos dirigentes.
Em essência, o fascismo modifica o programa da conservação e reação que sempre dominou a política italiana apenas com um modo diferente de conceber o processo de unificação das forças reacionárias. À tática dos acordos e dos compromissos ele substitui pelo propósito de realizar uma unidade orgânica de todas as forças da burguesia em um único organismo político sob o controle de uma única central que deveria comandar juntos o partido, o governo e o Estado. Esse propósito corresponde à vontade de resistir integralmente a qualquer ataque revolucionário, o que permite ao fascismo obter adesões da parte mais definitivamente reacionária da burguesia industrial e dos latifundiários (16).
No entanto, o método fascista de defesa da ordem, da propriedade e do Estado não consegue consubstanciar, imediata e totalmente, esse nível de centralização da burguesia quando da tomada do poder. Na verdade, a tradução política e econômica dos seus propósitos produz várias formas de resistência dentro das próprias classes dirigentes. As duas tradicionais orientações da burguesia liberal italiana – uma relacionada ao giolittismo e outra ao Corriere della Sera – não são imediatamente absorvidas, ou submetidas, com a tomada do poder por Mussolini. Assim se explica a luta contra os grupos sobreviventes da burguesia liberal e contra a maçonaria, ou seja, contra o seu principal centro de atração e organização em apoio do Estado.
No plano econômico, o fascismo atua em total benefício das grandes oligarquias industriais e agrícolas desconsiderando as aspirações da sua própria base social, a pequena burguesia, que com o advento do fascismo esperava obter um avanço nas condições sociais e econômicas. Isso ocorre no plano das políticas comerciais, com o agravamento do protecionismo alfandegário, no financeiro, com a centralização do sistema de crédito em benefício da grande indústria, bem como na vertente da produção, com um aumento das horas de trabalho e a diminuição dos salários. Mas o verdadeiro ponto de chegada do fascismo ocorre na política externa e nas aspirações imperialistas, em relação às quais as Teses apresentam uma ideia que se concretizará catorze anos depois.
“O coroamento de toda a propaganda ideológica, da atuação política e econômica do fascismo é a tendência deste ao imperialismo. Essa tendência é a expressão da necessidade sentida das classes dirigentes industriais-latifundiárias agrícolas italianas de encontrar fora do território nacional os elementos para a resolução da crise da sociedade italiana. Nela estão os germens de uma guerra que será travada, em aparência, pela expansão italiana, mas na qual na verdade a Itália fascista será um instrumento nas mãos de um dos grupos imperialistas que disputam o domínio do mundo” (17).
As Teses de Lyon representam a consagração do “novo rumo” no PCI e, neste, do grupo dirigente comandado por Gramsci, surgido em torno do “Ordine Nuovo” nos tumultuosos anos do pós-guerra; nele, ocorre a junção da nova perspectiva política com o percurso político intelectual do velho grupo turinese. A viragem de Lyon constitui a premissa principal para se compreender o papel histórico assumido pelo PCI tanto na Resistência quanto na fase posterior à libertação.
A indicação lançada pelos Congressos da Internacional – construir partidos de massa radicados nos locais de trabalho por meio de células de fábrica (a assim chamada bolchevização) – é acolhida e desenvolvida pelo velho grupo “ordinovista” mediante a reelaboração dos fortes temas que surgiram no “biênio vermelho” com a experiência do movimento dos conselhos, à qual as Teses se referem explicitamente:
“A prática do movimento de fábrica (1919-1920) demonstrou que apenas uma organização aderente ao local e ao sistema de produção permite que se estabeleça um contato entre os estratos superiores e inferiores da massa trabalhadora e se criem vínculos de solidariedade que eliminam as bases de qualquer fenômeno de aristocracia operária. A organização por células leva à formação no partido de uma ampla camada de elementos organizazionais (secretários de célula, membros dos comitês de célula etc.), os quais são parte da massa e nela permanecem também exercendo funções executivas, ao contrário dos secretários das seções territoriais que eram necessariamente elementos afastados da massa trabalhadora” (18).
Nessa definição encontrava plena e completa colocação o tema da relação entre dirigentes e subordinados, entre intelectuais e massas, segundo os termos clássicos da produção gramsciana. Para Gramsci, no confronto dentro do partido, a distinção entre os dois diferentes modos de compreender a revolução era clara: de um lado, as massas são consideradas massa de manobra, instrumentos da revolução; de outro, elas são entendidas como sujeito protagonista e conscientes disso. Nos Cadernos, esse argumento é amplamente desenvolvido justamente a partir das considerações sobre partido político, o instrumento por meio do qual a relação de representação deveria superar a sua condição de delegação passiva característica da sociedade burguesa. Na verdade, ele acabou por se transformar em local de ocupação e gestão oligárquica dos centros de poder e de perpetuação exclusiva das suas funções dirigentes. Para Gramsci, a relação entre governantes e governados é consequência da divisão do trabalho, da diferenciação entre funções intelectuais e manuais: “todo homem é um filósofo”, a divisão técnica torná-lo um subordinado e não um dirigente, por isso, se o objetivo principal de um partido consiste em formar dirigentes, o seu ponto de partida deve residir em não considerar natural e imutável aquela diferenciação. O problema da ausência de uma relação orgânica de representação na política não se referia, portanto, apenas aos partidos de elite da tradição liberal, nos quais a função de direção era exercida unilateralmente por homens de cultura, mas também aos assim chamados partidos de massa do movimento operário. Se as massas em um partido não têm outra função além da fidelidade militante em relação aos grupos dirigentes, a relação dualista é exatamente a mesma: a massa é simplesmente de manobra e se ocupa com discursos morais, com estímulos messiânicos de expectativa de eras fabulosas nas quais todas as contradições e misérias presentes serão automaticamente resolvidas e curadas.”. A superação do “cadornismo” *** deveria, por isso, ocorrer mediante a substituição na função executiva de organismos políticos coletivos e difundidos aos simples indivíduos, pelos “chefes carismáticos”, até destruir os velhos esquemas “naturalistas” da arte política. O antítodo para os “chefes carismáticos”, tema esse de grandíssima atualidade, deveria ser o intelectual coletivo, o papel protagonista e não subordinado das classes subalternas. Um partido sério, não a expressão arbitrária de individualismos, deve ser portador de algo similar ao espírito estatal, um sentimento de pertencimento que liga o presente e o futuro à tradição e torna os seus cidadãos solidários com a atuação histórica das forças espirituais e materiais nacionais. Do mesmo modo, deve haver um espírito de partido, um sentido de responsabilidade geral, para não confundir com a “arrogância de partido”. Em relação a todos esses temas as Teses de Lyon representam um divisor de águas fundamental, seguramente o ponto mais alto no qual a elaboração teórica e a direção política de Gramsci encontram um elevadíssimo ponto de entendimento. Na biografia de Gramsci são um ponto de continuidade entre as lutas pré-1926 e as reflexões do cárcere, o testemunho mais expressivo do quanto é impossível separar o Gramsci político e militante do “desinteressado” “homem de cultura” tão querido das recentes vulgatas de muitos estudiosos, talvez excessivamente desenvoltos no uso da sua biografia para perseguirem fins bem diferentes das altivas exigências de pesquisa científica.
* Trabalho apresentado originalmente no Congresso de estudos: (1921-2011) Questões estratégicas, continuidade e viragens na história do PCI. Roma, La Sapienza, Faculdade de Letras, 18 e 19 de fevereiro de 2011. Tradução Maria Lucília Ruy
** Gianni Fresu é Doutor pela Universidade de Urbino na Itália. Atual como professor convidado na Unesp de Marília e atualmente é professor efetivo da Universidade Federal de Uberlândia (MG). É autor entre outros do livro Lênin Leitor de Marx: Dialética e determinismo na história do movimento operário, publicado pela editora Anita Garibaldi.
*** Referente ao general Luigi Cadorna, chefe de Estado-Maior das Forças Armadas Italianas. O termo se refere a dirigentes autoritários que subestimam a necessidade do convencimento dos subalternos (N. do tradutor).
Notas
1. BORDIGA, A. Scrittis celti (Obras escolhidas). Milão: Feltrinelli, 1975.
2. Por não me ter sido possível incluir, por uma questão de espaço, uma subsequente definição, para maiores informações remeto a: LIVORSI, F. Amadeo Bordiga. Il pensiero e l’azione politica 1912-1970 (Amadeo Bordiga. O pensamento e a atuação política 1912-1970). Roma: Editori Riuniti, 1976; DE CLEMENTI, A. Amadeo Bordiga. Turim: Torino, 1971; TACCHINARDI, R. Amadeo Bordiga: intellettuali e socialismo (1912-1926) [Amadeo Bordiga: intelectuais e socialismo (1912-1926)]. Firenze: BI-Elle, 1998; CORTESI, L. (org.). Amadeo Bordiga nella storia del comunismo (Amadeo Bordiga na história do comunismo). Editor colaborador: Alexander Höbel. Nápole: Edizioni scientifiche italiane, 1999.
3. No Congresso de Bolonha de 1919, as posições do “L´Ordine Nuovo” não encontraram aceitação, no entanto, as várias tendências do Partido, em tudo discordantes, encontravam um ponto de acordo justamente na profunda crítica à experiência conciliar; vai da acusação de corporativismo de Bordiga à de anarcossindicalismo feita pelos maximalistas e pela CGL, resolutamente contrários ao “voto atomístico dos desorganizados”, por entendê-los como não sindicalizados.
Segundo Bordiga, a decorrência natural do movimento conciliar era o reformismo e o corporativismo dos sindicatos de categoria, e com ele a eliminação do problema da constituição do partido revolucionário da classe operária. Para Bordiga, a única tarefa dos comunistas devia ser se constituírem em partido político, e se prepararem, no plano ideológico, para o momento da revolução, ou então da radicalização do confronto social. Nesse sentido, para os abstensionistas, os Conselhos operários deviam surgir apenas no momento da insurreição política, ou então no momento da maior crise da burguesia, porque do contrário eles se transformariam rapidamente em organismos afeitos à tática das conquistas parciais, a uma prática reformista, que desviaria os comunistas de suas tarefas revolucionárias. Mesmo no âmago do “biênio vermelho”, Bordiga nunca deu crédito aos avanços do movimento dos conselhos, demonstrando uma constante e quase doentia desconfiança em relação ao autogoverno operário. (FRESU, G. Il diavolo nell’ampolla. Antonio Gramsci, gli Intellettuali e il partito “O diabo na garrafa. Antonio Gramsci, os Intelectuais e o partido”. Nápoles: La Città del Sole, 2005.
4. GRAMSCI, A. Il Partito si rafforza combattendo le deviazioni antileniniste (O Partido se fortalece combatendo os desvios antileninistas). In: L’Unità, julho de 1925.
5. GRAMSCI, A. Introduzione al primo corso della scuola interna di partito (Introdução ao primeiro curso da escola interna do partido). In: La costruzione del Partito Comunista, 1923-1926 (A construção do Partido Comunista, 1923-1926). Turim: Einaudi, 1971, p. 50-51.
6. IDEM, p. 56-57.
7. IBIDEM.
8. GRAMSCI, A. Quaderni del carcere (Cadernos do cárcere), p. 482.
9. IDEM, p. 1213.
10. LÊNIN, V. I. Opere Complete (Obras Completas). Roma: Editori Riuniti, 1967, vol. XXXII.
11. LÊNIN, V. I. Sul movimento operaio italiano (Sobre o movimento operário italiano). Roma: Editori Riuniti, 1970, p. 233.
12. FRESU, G. Lenin lettoredi Marx. Determinismo e dialetticanellastoriadel movimento operaio (Lênin leitor de Marx. Determinismo e dialética na história do movimento operário). Nápoles: La Cittàdel Sole, 2008.
13. GRAMSCI, A. La costruzione del partito comunista, op. cit., p. 487.
14. IDEM, p. 487.
15. FRESU, G.; ACCARDO, A. Oltrelaparentesi. Fascismo e classi dirigenti nella storia d’Italia (Mais do que um parêntese. Fascismo e classes dirigentes na história da Itália). Roma:Carocci, 2009.
16. GRAMSCI, A. La costruzione del partito comunista, op. cit., p. 495.
17. IDEM, p. 497.
18. IBIDEM, p. 505.