• Home
  • Nossa História
    • Nosso Time
  • Edições
    • Principios de 101 a atual
    • Coleção Principios - 1 a 100
  • Índice Remissivo
  • Contato

Revista Principios

  • Home
  • Nossa História
    • Nosso Time
  • Edições
    • Principios de 101 a atual
    • Coleção Principios - 1 a 100
  • Índice Remissivo
  • Contato

Internacional

Edição 145 > Quando a direita é rebelde - Donald Trump e o mal-estar da globalização -

Quando a direita é rebelde - Donald Trump e o mal-estar da globalização -

Fábio Palácio de Azevedo
Twitter
FaceBook

Em um quadro de múltiplos sinais invertidos, Trump capitalizou para sua campanha o sentimento de mal-estar civilizatório decorrente dos desarranjos da globalização. A indignação contra as políticas do grande capital encontrou seu canal de expressão não na esquerda anticapitalista, mas em um setor reacionário da direita. Não é a primeira vez que isso acontece na cena da história

A toda hora rola uma história
É preciso estar atento
A todo instante rola um movimento
Que muda o rumo dos ventos

Paulinho da Viola

 

"Nosso movimento trata de substituir um establishment político totalmente corrupto e fracassado por um novo governo controlado pelo povo. [...] O establishment de Washington, as corporações financeiras e os meios de comunicação que o financiam existem por uma única razão: proteger-se e enriquecer a si mesmos. [...] Nossa campanha representa uma ameaça existencial real para eles [...] Estamos diante de uma encruzilhada histórica para nossa civilização, que determinará se nós, o povo, retomaremos ou não o controle sobre nosso governo.” (1)

As palavras acima foram ouvidas na disputa presidencial norte-americana e, ao contrário do que se poderia pensar, não saíram da boca do socialista Bernie Sanders (2). Foram ditas por Donald Trump, o candidato republicano que venceu o pleito eleitoral contra a democrata Hillary Clinton para tornar-se o 45º presidente dos Estados Unidos.

Magnata multiempreendedor, o novo presidente é dono das organizações Trump, que concentram mais de quinhentas subsidiárias com atuação nos setores de imóveis e construção civil, serviços financeiros, comércio varejista e, principalmente, entretenimento. A holding administra cassinos, agências de turismo, restaurantes e até concursos de beleza ao redor do mundo.

Trump é proprietário de mídia e uma conhecida personalidade da TV norte-americana. Sua carreira, sua riqueza e seu estilo boquirroto contribuíram para torná-lo famoso. Autor de sucesso, publicou livros como A arte da negociação, Como ficar rico e Como chegar lá. É dele o bordão “You’re fired!” (“Está demitido!”), usado para anunciar o eliminado da vez no reality show The Apprentice (3), por ele apresentado ao longo dos últimos quatorze anos. Depois do também republicano Ronald Reagan, os Estados Unidos voltam a eleger uma personalidade midiática para a Presidência da República, fato que diz muito das inusitadas – por vezes bizarras – conexões entre política e show business naquele país.

Trump colocou no alvo o modelo socioeconômico ultraliberal prevalecente nos Estados Unidos. A esse modelo ele contrapõe um discurso economicamente protecionista, politicamente isolacionista e socialmente xenófobo. Seu programa econômico critica os acordos de livre comércio, que seriam responsáveis pela desmobilização de empreendimentos industriais e pelo aumento do desemprego entre as famílias americanas. Suas propostas incluem a revisão de iniciativas como o Acordo de Livre Comércio da América do Norte (Nafta) e a Parceria Transpacífico, consideradas estratégicas para a liderança norte-americana sobre a globalização neoliberal. Simultaneamente Trump defende, no plano interno, a orientação liberal do Partido Republicano em temas como redução de impostos.

Embora apoie o lobby da indústria armamentista, o novo presidente é crítico da Otan. Opõe-se também ao acordo que congelou o programa nuclear iraniano. Ainda é uma incógnita se, na hipótese de eventual liquidação desse acordo, Trump folgará diante do avanço da autonomia tecnológica do Irã ou atacará unilateralmente suas instalações nucleares. O fato é que, embora tenha questionado durante a campanha o papel dos Estados Unidos como “polícia do mundo”, Trump foi enfático ao defender a ampliação do orçamento das Forças Armadas (4). Ainda no âmbito da política externa, mostra-se disposto a reverter o Acordo de Paris sobre mudanças climáticas.

No plano social, o republicano fala em “enterrar a era Obama”, a começar da substituição do Patient Protection and Affordable Care Act (sistema de saúde conhecido como “Obamacare”). No que tange aos direitos civis, é contrário ao casamento entre pessoas do mesmo sexo, ao uso da maconha para fins recreativos e à liberação do aborto. Em rota de colisão com a tradição multiculturalista norte-americana – considerada uma “ditadura do politicamente correto” –, o discurso de Trump arde em preconceito, xenofobia e intolerância. Sua retórica é recheada de referências contrárias a imigrantes e minorias. Ele promete reforçar as leis de imigração e construir um muro na fronteira entre Estados Unidos e México. Após os atentados de novembro de 2015 em Paris, chegou a defender o banimento temporário de todos os muçulmanos dos Estados Unidos. Com Trump, a repisada ideologia do “choque de civilizações” (Huntington, 1993) ganha expressão eleitoral mais nítida e entra na arena política.

A confusa mensagem política propagada por Trump arrebatou o eleitorado norte-americano. Como se costuma dizer na linguagem futebolística, sua campanha “pegou na veia”. Ele conseguiu não apenas manter a maioria em regiões tradicionalmente dominadas pelo Partido Republicano – em geral situadas mais ao centro do país –, mas também avançar sobre antigas zonas industriais, que já contaram com forte presença operária. É o caso de estados do chamado “cinturão da ferrugem”, como Michigan, Wisconsin, Ohio e Pensilvânia, outrora considerados bastiões do Partido Democrata. O entendimento dos fatores por trás dessa mudança na paisagem eleitoral norte-americana pode lançar luz sobre tendências políticas marcantes deste início de século XXI.

Sinais invertidos

Em julho de 2016, após derrotar dezesseis oponentes, Trump foi confirmado como candidato do Partido Republicano à eleição presidencial norte-americana. Sua campanha opôs-se duramente à classe política, denunciada como obstáculo à realização da vontade popular. O candidato republicano perdeu apoio, assim, em seu próprio partido, que o via como excessivamente outsider (5).

No entanto, e de maneira curiosa, a perda de sustentação partidária não enfraqueceu a campanha de Trump. Explorando uma situação que vem sendo descrita como falência da democracia – o esgarçamento das instituições políticas tradicionais, excessivamente distanciadas dos anseios da população, afundadas na corrupção e na burocracia –, o candidato republicano desdenhou das mediações político-partidárias e buscou substituí-las, tanto quanto possível, por mediações de cunho midiático. Conseguiu, dessa maneira, transformar em força eleitoral o próprio descrédito para com a política, fruto do sequestro das instituições pelo poder econômico. Sequestro que ele, paradoxalmente, representa muito bem.

A eloquência de Trump, potencializada pelo uso compulsivo de redes sociais, pôs no alvo um modelo econômico que vem provocando o crescimento da pobreza e da desigualdade. A renda média norte-americana caiu aceleradamente nos últimos anos. A tendência marginaliza especialmente trabalhadores e famílias com formação universitária. Conforme detalha a insuspeita The Economist,

“[...] Os americanos comuns não têm se beneficiado da prosperidade do país. Em termos reais, a renda média dos homens americanos permanece abaixo do que era na década de 1970. Nos últimos cinquenta anos, excluindo-se o interregno de crescimento acelerado da década de 1990, a cada recessão que passa, as famílias americanas de classe média têm mais dificuldade para recuperar a renda corroída pela crise. A mobilidade social é pequena demais para prometer um futuro melhor.” (6)

Em face dessa realidade, parece inegável que a liderança democrata, posicionada mais ao centro, não conseguiu ajustar o discurso ao nível da batalha. Seria um erro culpar por isso os marqueteiros da campanha. Candidata errada no momento errado, Hillary Clinton jamais conseguiu demonstrar o mínimo de verve. Não parecia sintonizada com os reais problemas do país. Nem mesmo vestindo todo o vermelho do mundo a candidata democrata conseguiu transparecer radicalidade, única postura que lhe teria permitido capturar o sentimento difuso a tomar conta do eleitorado norte-americano.

A radicalidade que faltou a Clinton sobrou em Donald Trump. O republicano soube tirar proveito da situação socioeconômica com um discurso ácido, radicalmente contrário à ordem estabelecida. Explorou o sentimento antiglobalização de uma maneira que Clinton, por demais identificada com o status quo, jamais teria conseguido. A mensagem de Trump soou cristalina: a globalização e o livre comércio vêm beneficiando apenas uns poucos privilegiados, ao passo que a maioria das famílias americanas encontra-se abandonada à própria sorte.

O candidato republicano falou intensamente às maiores vítimas da crise econômica global: os trabalhadores e as camadas pobres, aviltados pelas políticas concentradoras e excludentes patrocinadas pela globalização neoliberal. Uma globalização que tira empregos e provoca desamparo. Uma globalização na qual as pessoas podem ser atingidas por eventos distantes, mas não têm a menor chance de influenciá-los. Uma globalização em que os muros caem para alguns poucos, mas crescem para a maioria. Em uma só palavra: uma globalização a serviço do capital, e não dos legítimos anseios dos povos.

Foi assim que, num quadro de múltiplos sinais invertidos, Trump capitalizou para sua campanha o sentimento de mal-estar civilizatório decorrente dos desarranjos da globalização. A indignação contra as políticas do grande capital encontrou seu canal de expressão não na esquerda anticapitalista, mas em um setor da própria direita. 

Crise da política

A imprensa internacional pintou a vitória de Trump com as tintas do inédito e do inusitado. Evidentemente, a surpresa com a eleição do republicano diz muito das inclinações ideológicas dos jornalões. Visceralmente ligados à ordem dominante, da qual funcionam como porta-vozes, eles comprovaram, especialmente na reta final de campanha – por meio de “análises” irrealistas, que mais pareciam augúrios –, sua tendência a superestimar a força do establishment no tempo mesmo em que subestimam a insatisfação popular.

A eleição de Trump teve, sim, algo de surpreendente. Mas, como bem sabem os que possuem alguma intimidade com a história, não é esta a primeira vez em que um setor da direita, portando um discurso desafiador, captura o descontentamento popular. Podemos identificar, na história política do século XX, outros momentos destacados em que isso ocorreu. É o que revela a leitura atenta de um livro como Biología del Fascismo. A obra reúne artigos nos quais o teórico marxista peruano José Carlos Mariátegui disseca os eventos políticos ocorridos na Itália dos anos 1920.

Como lembra Mariátegui, nem sempre a direita apresentou-se com roupagem desbotada no palco da história. Em muitas situações o conservadorismo soube paramentar-se para encarnar expectativas de mudança. Em seus primórdios, na Itália dos anos 1920, o movimento fascista estava muito longe da aparência de uma seita programaticamente reacionária. Mostrava-se, ao contrário, “republicano, anticlerical, iconoclasta” (Mariátegui, 2012, p. 39). Conforme explica o autor peruano, “o fascismo acreditava-se revolucionário. Sua propaganda tinha matizes subversivos e demagógicos. O fascismo, por exemplo, ululava contra os novos ricos” (Mariátegui, 2012, pp. 21-22).

Esse discurso não era sustentado por um sujeito social nítido e inconfundível. A base política e social do fascismo tinha o mesmo diapasão das camadas economicamente intermediárias. Compunham suas fileiras intelectuais, estudantes, oficiais, nobres, empresários. A eles somavam-se camponeses e, ainda, operários. A heterogeneidade do movimento refletiu-se, desde sempre, no caráter confuso e nebuloso de sua orientação política e ideológica. Esta tinha o “prodígio” de mesclar, a um só tempo, liberalismo, nacionalismo e, mesmo, sindicalismo – tudo salpicado com ingredientes de utopismo típicos do pensamento socialista.

Essa orientação política e ideológica contraditória fez com que o fascismo jamais conseguisse expor um programa claro. O que temos na Itália dos anos 1920 é um conjunto de impulsos políticos que não consegue articular-se em programa. Não consegue e, na verdade, também não ousa: por inconfessável que é, a ideologia fascista jamais se mostra por completo. Fica sempre na penumbra. Revela-se, quando muito, em lusco-fusco. Vem daí o pendor pragmático de um líder como Benito Mussolini, que declarava, em tom demagógico: “Afinal, de que importa saber o conteúdo teórico de um partido? O que lhe dá força e vida é sua tonalidade, é sua vontade, é a alma daqueles que o constituem” (apud Mariátegui, 2012, p. 41).

As palavras do duce revelam uma característica marcante desse movimento político. A exposição de motivos de fundo, articulados em sistema de ideias e valores, decididamente não é seu ponto forte. Não estamos diante de um movimento que apela para a razão. Nos termos colocados por Mariátegui, “não se trata de um fenômeno cerebral; trata-se de um fenômeno irracional, que tinha como motor não a ideia, mas o sentimento” (2012, p. 24). 

Exatamente por conta desse caráter “sentimental”, o fascismo não pode abrir mão de grandes agitadores. Seus líderes são sempre figuras teatrais, talhadas para mexer com brios e vontades. O carisma coloca-se, nesse caso, acima do descortino estratégico. Na Itália, Mussolini revelou-se o homem certo para esse papel: “um tipo volitivo, dinâmico, italianíssimo, singularmente dotado para agitar massas e excitar multidões” (Mariátegui, 2012, p. 23).
Desde sempre, os meios de comunicação de massa – naquele caso específico o rádio – serviram como extensões a potencializar o carisma do líder. Na contemporaneidade, a grande mídia segue exercendo esse papel, porém com a diferença qualitativa de uma época. Hoje os meios de massa, mais do que instrumentos amplificadores, assumem protagonismo e roubam a cena. Prescindem de um personagem exterior à medida que encarnam o carisma em suas próprias engrenagens. A TV é o grande duce de nosso tempo. 

Esse fato não deixa de ser mais uma entre tantas ironias da história: quando um pensador da estatura de Gramsci (1977) previu, por meio de categorias como “príncipe moderno”, o avanço das instituições político-partidárias e a substituição do líder carismático por entidades coletivas, jamais poderia imaginar que esse programa, capturado por forças obscuras, realizar-se-ia de forma anômala, com estruturas midiáticas assumindo aquele que seria o papel precípuo de partidos políticos e outras instituições democráticas.

O que temos aqui é a chamada crise da política, traço marcante da cena contemporânea. Essencialmente vinculada – desde suas origens, na antiguidade clássica – ao debate público, a política possui um componente de racionalidade que lhe é incontornável. Sabemos, desde Aristóteles (1985), que se trata da forma mais elevada de solucionar conflitos e definir os rumos da comunidade de destino, a pólis. Não por acaso, Aristóteles coloca a política no vértice de suas “ciências práticas”, subordinando a ela a economia e a moral.

Não resta dúvida de que, para uma corrente com propostas inomináveis, a política democrática será sempre um estorvo, sendo preferível substituí-la por dimensões mais afetivas da atividade prática humana. Não à toa, enquanto o marxismo propõe a politização da estética, o fascismo sempre pautou a estetização da política. Por meio de senhas como esta, o pensamento autoritário atravessa para o conjunto da sociedade um de seus principais contrabandos: o desprezo pelas instituições políticas e pelo campo eleitoral-parlamentar. Afinal, para que o enfado da política, se temos o show business, a religião, a cultura de massa?

Se ainda assim alguma ponta de racionalidade se provar necessária, melhor que seja inacessível às massas. Substitui-se, assim, a racionalidade política – inerentemente aberta – pela racionalidade meritocrática. E aí o campo fica aberto à substituição da política pelo hermetismo da administração econômica e dos ritos judiciais (7). Por meio da espetacularização e da despolitização das escolhas públicas, as elites financeiras realizam, a seu modo e a partir de seus interesses, o programa de extinção do Estado e da própria política.

A caixa de pandora do fascismo

Os movimentos de ultradireita em atuação nos primórdios do século XX guardam importantes paralelos com fenômenos que irrompem nesta aurora do século XXI. Lá, como aqui, o que vemos são movimentos gelatinosos, cujos objetivos transparecem menos por meio de arrazoados consistentes do que por palavras de ordem e ações concretas, embora muitas vezes desconexas. 

A postura da burguesia, ontem como hoje, é ambígua. Os movimentos de cunho fascistoide, que revelam a sobrevivência espiritual de velhas aristocracias, renegam “o tipo transacional de Estado capitalista e empresário: tendem a restaurar o tipo clássico de Estado coletor e gendarme” (Mariátegui, 2012, p. 24). É claro que a burguesia não se inclina por esse tipo de programa. Ela prefere o liberalismo econômico e um mundo sem obstáculos à livre expansão do capital.

No entanto, a burguesia da alta finança – dominante em nosso tempo –, é ela própria uma pequena mas poderosa oligarquia, com pulsões profundamente aristocráticas. Nesse contexto, não é de espantar que, por vezes, as preferências “naturais” da classe burguesa sejam anuladas diante das conveniências da luta política. Na Itália do início do século XX, a burguesia, assustada com as chances da revolução, ofereceu solidariedade política, financiou e armou os chamados “camisas negras” (brigadistas do fascismo), empurrando-os à intolerância e à truculência contra sindicatos e partidos de esquerda. Essa postura ambivalente é muito bem descrita por Mariátegui:

“[...] Enquanto a reação se limita a decretar o ostracismo da Liberdade e a reprimir a Revolução, a burguesia bate palmas; mas logo, quando a reação começa a atacar os fundamentos de seu poder e de sua riqueza, a burguesia sente a necessidade urgente de censurar seus bizarros defensores.” (2012, p. 49)

Hoje, a mídia corporativa internacional censura Donald Trump. Abomina sua mise-en-scène bizarra, avessa às convenções políticas, e principalmente suas ideias excêntricas. “É hora de recomeçar o árduo e demorado trabalho de promover a causa do internacionalismo liberal”, decreta The Economist (8). “Vitória de Trump nos Estados Unidos é mais um desafio à ordem mundial liberal”, medra Financial Times (9). O que falta dizer é que esse “desafio à ordem liberal” surge das hesitações do próprio liberalismo, que, impotente em realizar suas promessas de “liberdade, igualdade e fraternidade”, flerta a todo momento com o autoritarismo, quando não o promove.

Devemos admitir, afinal, que Trump nada criou. A fim de constatar isso com tanto mais clareza, não custa nos socorrer, uma vez mais, do caso italiano. Seria um equívoco pensar que o fascismo deve sua gênese a Mussolini. Ele foi, de fato, o organizador, e também o agitador, daquele movimento. Foi seu condottiere. Mas não foi seu criador. “Mussolini extraiu de um estado de ânimo um movimento político; mas não modelou esse movimento à sua imagem e semelhança. Mussolini não deu um espírito, um programa, ao fascismo. Ao contrário, o fascismo deu seu espírito a Mussolini.” (Marátegui, 2012, p. 23)

O mesmo pode ser dito de Trump: o republicano teve suficiente competência para extrair de um estado de ânimo um movimento político. Soube interpretar o espírito de seu tempo. Cabe, então, perguntar: de onde vem esse espírito? Quem o criou? O aumento da desigualdade, a espetacularização da sociedade e o rebaixamento da política nada têm a ver com isso? O fato é que, enquanto estava na televisão ajudando a impulsionar um caldo de cultura profundamente antidemocrático, Trump jamais foi incomodado. Até que – ooops – algo saiu do controle: o bordão “Está demitido!”, que sintetiza magistralmente um mundo dividido entre vencedores e vencidos, saltou da tela da TV para a “vida real”. Isso não deveria ser motivo de espanto neste mundo em que, tal qual num cassino, muitos precisam perder para que poucos possam ganhar.

Quando a desigualdade, o autoritarismo e a intolerância penetram por todos os poros da sociabilidade, fica difícil salvar a política. Poderíamos, talvez, colocá-la em uma redoma, acessível apenas aos políticos e seus partidos. Gritaríamos então, como faz hoje a imprensa internacional: “Trump, saia já daqui! A política não é para você. Volte para a TV e os negócios, de onde jamais deveria ter saído!”. No entanto, é realmente viável salvar a política dessa forma? Até que ponto é possível divorciá-la da sociedade, da economia, das tendências socioculturais em voga? E, supondo que isso fosse possível, não seria este apenas mais um modo de chocar o ovo de serpente da política em crise? E a pergunta mais importante: o establishment quer mesmo salvar a política, ou apenas pretende, quando muito, capturá-la para seus caprichos?

O senso comum do liberalismo costuma dizer que fascismo e comunismo são gêmeos siameses, faces de uma mesma moeda. Nada mais falso. O verdadeiro irmão siamês do fascismo é o próprio liberalismo. Vem do liberalismo – de suas vacilações e dilemas internos – o estranho hábito de, vez por outra, escancarar na cena da história a caixa de pandora do fascismo. Caixa que, no entanto, ele jamais consegue fechar. E não consegue porque não possui a energia transformadora necessária ao combate antifascista. Nas palavras de Mariátegui,
 
“A luta presente [contra o fascismo] devolverá ao espírito liberal um pouco de sua antiga força combativa. Mas não conseguirá que renasça como fé, como paixão, como religião. O programa [...] [do liberalismo] é a normalização. E, por sua mediocridade, esse programa não pode sacudir as massas, não pode exaltá-las, não pode conduzi-las contra o regime fascista. Só no misticismo revolucionário dos comunistas se constatam os caracteres religiosos que Gentili [filósofo idealista apoiador do fascismo] descobre no misticismo reacionário dos fascistas. A batalha final não será travada, por isso, entre o fascismo e a democracia.” (2012, p. 54)

Com efeito, a luta final contra o fascismo jamais poderá ser comandada pelo liberalismo. Perdida no automatismo da vida burguesa, a ideologia de Adams, Jefferson, Franklin e Madison tornou-se meramente instrumental. É bem verdade que, uma vez no campo de batalha, ela ainda pode recuperar um pouco de seu elã. Mas jamais voltará a possuir o arrebatamento, o impulso revolucionário hoje encontrável apenas no comunismo. Só a mística revolucionária pode opor-se eficazmente ao misticismo reacionário e belicoso do fascismo.

Naturalmente, o Partido Democrata norte-americano, de essência liberal, jamais poderia ter entendido essas lições. Caso contrário, teria optado pelo socialista Sanders na batalha contra Trump. Em uma eleição emocional – na qual sentimentos difusos falaram mais alto do que programas políticos –, Sanders era o único candidato capaz de neutralizar a “avalanche” Trump.

O fenômeno da “rebeldia conservadora” não se verifica, nos dias de hoje, apenas nos Estados Unidos. Ele comparece em várias partes do mundo, incluindo o Brasil. Cabe notar que esse fenômeno revela muito não apenas sobre as forças de direita, mas também sobre a condição atual das forças progressistas e de esquerda. Nesse sentido, a eleição norte-americana deixa uma lição importante: há um limite muito tênue entre acumular forças em simbiose com o sistema e ser metabolizado por esse mesmo sistema. Quando forças progressistas cruzam esse limite, frequentemente se tornam impotentes para encarnar sonhos de mudança. E aí vem a “má notícia”: esses sonhos precisam ser encarnados, e para tanto não pedem licença a ninguém. Como não existe espaço vazio em política, setores reacionários podem desempenhar, a seu modo, esse nobre papel.

Já se tornou quase um truísmo dizer que, como nada está parado, aquilo que não avança retrocede. Esta parece ser mais uma daquelas noções fáceis de entender, mas difíceis de compreender. É necessário insistir no ponto. A ideia de “marcar passo” é estrategicamente equivocada – não pode convir senão como movimento tático momentâneo. O sentido geral das esquerdas deve ser sempre o de “fuga para a frente”. Nos Estados Unidos, esse sentido só poderia ter sido encarnado por Bernie Sanders. Era ele, e não Hillary Clinton, o político efetivamente talhado para fazer avançar o projeto obamista.
O resultado da eleição norte-americana reflete uma situação em que a crise do capitalismo não encontra saídas progressistas. O velho apodrece, mas o novo não consegue abrir caminho. Em um contexto como esse, é legítimo esperar que insatisfações reais encontrem respostas equivocadas.

* Fábio Palácio de Azevedo é Doutor em Ciências da Comunicação (ECA/USP); professor do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão (UFMA); diretor de Comunicação e Publicações da Fundação Maurício Grabois.


Notas

(1) Cf. https://linkis.com/www.youtube.com/P76sV.
(2) Crítico barulhento de Wall Street e do projeto neoliberal, Sanders disputou as prévias do Partido Democrata, sendo derrotado por Hillary Clinton.
(3) Cf. https://www.youtube.com/watch?v=7R1vT87nrUQ.
(4) MONTSERRAT FILHO, José. “Trump entre a paz e a guerra, inclusive no espaço”. Caros Amigos [on line]. 22 nov. 2016. Disponível em: http://www.carosamigos.com.br/index.php/artigos-e-debates/8481-trump-entre-a-paz-e-a-guerra-inclusive-no-espaco 
(5) Recentemente, fenômeno semelhante ocorreu nas eleições municipais de São Paulo. Candidato pelo PSDB, o empresário João Dória – também ele uma personalidade midiática –, foi criticado dentro de seu próprio partido como outsider, isto é, inexperiente e avesso ao métier político. A escolha de Dória dividiu o PSDB e gerou defecções no partido.
(6) “THE Trump era”. The Economist [on line]. 12 nov. 2016. Disponível em: http://www.economist.com/news/leaders/21709951-his-victory-threatens-old-certainties-about-america-and-its-role-world-what-will-take
(7) Note-se que a utilização da justiça para finalidades políticas (lawfare), fenômeno crescente na contemporaneidade, não se fez ausente das eleições presidenciais norte-americanas. Muitos analistas apontam a intervenção do FBI na reta final da campanha como fator decisivo para o desfecho da disputa eleitoral.
(8) Op. Cit.
(9) “DONALD Trump’s victory challenges the global liberal order”. Financial Times [on line]. 9 nov. 2016. Disponível em: https://www.ft.com/content/a4669844-a643-11e6-8b69-02899e8bd9d1


Bibliografia

ARISTÓTELES. A Política. 2ª ed. Brasília: Editora UnB, 1985.
DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo e comentários sobre a sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.
CLACSO. Boletim do Conselho Latino-Americano de Ciências Sociais. Megafón – La Batalla de las Ideas. Nº 10: “Trump y la America Latina”. Buenos Aires, Argentina: novembro de 2016. Disponível em: http://www.clacso.org.ar/difusion/megafon_n10/index.html.
GRAMSCI, Antonio. Quaderni del Carcere. Volume terzo – Quaderni 12-29. Edizione critica dell’Istituto Gramsci – A cura di Valentino Gerratana. 2ª edizione. Torino: Giulio Einaudi editore, 1977. pp. 1507-2362.
HUNTINGTON, Samuel P. “The clash of civilizations?” Foreign Affairs, New York (USA), 72(3), 1993. p. 22-49.
MARIÁTEGUI, José Carlos. Biología del fascismo. Lanús Oeste: Nuestra América, 2012.

voltar

Editora e Livraria Anita Garibaldi - CNPJ 96.337.019/0001-05
Rua Rego Freitas 192 - República - Centro - São Paulo - SP - Cep: 01220-010
Telefone: (11) 3129-4586 - WhatsApp: (11) 9.3466.3212 - E-mail: livraria@anitagaribaldi.com.br