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Edição 144 > Troféu Juca Pato contra o golpismo e o desmonte dos direitos sociais
Troféu Juca Pato contra o golpismo e o desmonte dos direitos sociais
Numa dupla homenagem, a UBE escolhe Luiz Bernardo Pericás como Intelectual do Ano, pela biografia política do historiador Caio Prado Júnior, recipiente do prêmio em 1966 pela obra Revolução Brasileira. Seu discurso expressou o repúdio ao golpe parlamentar e ao desmonte de direitos sociais promovidos pelo governo golpista de Michel Temer, em consonância com os valores defendidos por Prado Jr durante toda sua vida
Muito agradeço a honra que me foi concedida com a láurea de Intelectual do Ano de 1966. Agradecimento este, bem entendido, e faço a restrição, no que me toca a mim pessoalmente, porque bem sei que não é unicamente, nem mesmo principalmente à minha pessoa que se dirige a homenagem. E sim ao princípio que por circunstâncias ocasionais eu neste momento represento. (...) Refiro-me ao intelectual atuante, ao homem de pensamento que não se encerra em torre de marfim, e daí contempla sobranceiro o mundo. E sim aquele que procura colocar a serviço da coletividade em que vive e da qual efetivamente participa”.
O discurso naquela noite, apenas dois anos após o golpe militar, trazia a urgência da crítica ao ambiente de caça a vermelhos e corruptos, e o vale tudo do combate à inflação. Prado Jr denunciava o retrocesso para o qual o país marchava glorioso, rumo ao mais profundo subdesenvolvimento, enquanto o presidente linha dura Costa e Silva repetia sua fórmula “incontestável”: “que os ricos sejam mais ricos, para que os pobres sejam menos pobres”. Como não temos exércitos nas ruas, a fórmula cínica da Ponte para o Futuro, de Michel Temer, é a mesma, embora não assumida como hashtag para não deixar paneleiros desconfiados.
Aos mesmos que, indignados, descobriram que faz apenas dez anos que a corrupção surgiu no país, Prado Jr disse, exatos 50 anos atrás, o que se poderia perfeitamente dizer hoje: “A corrupção, em especial, é da essência do nosso regime. Quando, como se dá entre nós, a riqueza é elevada ao plano do mais alto e prezado valor social, e que tudo justifica, como impedir que a aquisição dessa riqueza se faça por todos os meios e modos possíveis, sejam eles quais forem, e inclusive pela corrupção- Numa sociedade como a nossa em que a corrupção e a ausência de princípios éticos se acham institucionalizadas e entronizadas nas relações privadas, porque elas são, podemos dizer, da essência do “negócio” que regula essas relações, como impedir, pergunto, que elas contaminem também as relações públicas- Entre negócio e negociata não há nenhuma separação absoluta; e sim, entre os extremos, um terreno indefinido e neutro onde se faz muitas vezes extremamente difícil, e frequentemente impossível, distinguir entre lícito e ilícito.”
É do legado desse homem que tantas dificuldades enfrentaria para defender suas ideias para um Brasil digno de suas dimensões e povo, que se trata o Prêmio Intelectual do Ano de 2015. Luiz Bernardo Pericás recebeu, por decisão unânime, da diretoria da União Brasileira de Escritores (UBE) e por mais de 30 associados, o Troféu Juca Pato, edição 2016. O Prêmio contempla a pesquisa de Pericás sobre a trajetória do historiador Caio Prado Júnior, intitulada Caio Prado Júnior: uma biografia política, publicado pela Boitempo Editorial. A láurea foi concedida pelo presidente da União Brasileira de Escritores – UBE, Durval de Noronha Goyos Jr., na noite de 6 de outubro, em cerimônia solene na Academia Paulista de Letras, em São Paulo.
Já tantas vezes premiado em outras ocasiões por outras obras, Pericás confirma a maestria de sua escrita e pesquisa, ao reunir informações e documentos sobre a vida militante e intelectual de Prado Jr. Embora seja sempre um esforço monumental a escritura de uma biografia, o historiador vai além ao apresentar a evolução do pensamento pradiano, analisando-o com a legitimidade de quem se especializou nos debates sobre os destinos do Brasil. Desta forma, a obra justificaria plenamente a láurea recebida pela contribuição que deixa ao resgatar a vida trágica e heroica do pensador e militante político.
Se faltar mais algum critério, reportemo-nos àquele proposto pelo próprio Prado Jr, e veremos em Pericás o intelectual atuante à serviço de sua coletividade. Recém saídos de mais um golpe de estado, em que o clima de reacionarismo atinge a todos, especialmente àqueles que se manifestam publicamente contra a nova ordem, Pericás foi contundente ao receber o prêmio, afirmando a atualidade de Prado Jr, “diante do momento sombrio pelo qual passa o nosso país” (leia trechos do discurso no box).
Quem lhe entregou o troféu também não fez por menos. Em seu discurso, o presidente da UBE, Durval Noronha Goyos Jr, advogado em oito países, especialista e escritor referencial na área de Direito e Comércio Internacional, alarmou-se pelo colapso institucional que vive o Brasil. “Nossas instituições estão em crise. A Nação assistiu a um golpe de Estado parlamentar e judiciário, através do qual foi apeada a Presidente da República democraticamente eleita e, de outro lado, entronizado o crime organizado no Executivo, por meio de um governo ilegítimo, sem um mandato popular, sem uma plataforma política de ação aprovada pelo povo através de eleições. A maioria dos homens alçados à responsabilidade da condução dos desígnios nacionais responde a processos criminais das mais diversas espécies e são notórios malfeitores”, disse o presidente da UBE, orgulhoso pela dupla homenagem que a entidade faz a Prado Jr.
Ao explicitar o modo como a institucionalidade jurídica nacional se cumpliciou da manobra, o advogado desvela os mecanismos da crise institucional em que o Brasil está mergulhado. “Esta nefasta ação teve o beneplácito de um Judiciário tanto fraco eticamente quanto omisso aos mais básicos fundamentos de uma Justiça democrática. Questões balizadas por normas processuais sedimentadas nos países democráticos foram levadas ao julgamento das sarjetas, sob os holofotes da imprensa, ao passo que investigados e acusados tiveram violada a presunção de inocência, este frágil fio de ouro que sustenta todo o edifício do Estado de Direito. Ademais, foram tais pessoas expostas à execração pública, com a violação do direito ao devido processo legal e ao sigilo judicial”, disse ele, mencionando em seguida, as inúmeras iniciativas do governo golpista para demolir os direitos sociais consagrados na Constituição e na CLT, dentro inúmeras conquistas dos últimos governos.
Entre os que prestigiaram a entrega da láurea a Pericás, está Walter Sorrentino, além de vice-presidente do PCdoB, membro da diretoria da UBE. Ele salientou o caráter sério e comprometido do intelectual Pericás na defesa das ideias de Caio Prado Jr. “Prado Jr deixou obras fundadoras da nossa visão de Brasil, e teve compromisso até o fim da vida. Não podemos nos esquecer de seu mandato como deputado do Partido Comunista do Brasil, que muito nos orgulha. Presidiu a Aliança Nacional Libertadora que alcançou um impacto tremendo nas perspectivas da luta nacional, popular e democrática. Hoje, às voltas com essa ofensiva conservadora brutal, como Pericás também defende, talvez precisemos de uma nova e atualizada ANL. Além do trabalho acadêmico e seu valor, Pericás tem grandes compromissos de compreensão do Brasil e da luta do nosso povo”, afirmou Sorrentino.
O ex-ministro da Defesa, Aldo Rebelo, também celebrou a comenda a Pericás como uma homenagem a Caio Prado, como um dos que compõem o conjunto de brasileiros que “ousaram explicar nosso processo civilizatório e nossa constituição nacional”. “São interpretes que deixaram uma obra profunda e duradoura. Premiar esse trabalho, neste momento, significa resgatar a atualidade de uma causa permanente pela defesa da liberdade, da elevação do padrão de vida material e espiritual do povo brasileiro e a defesa da soberania, da independência, da autonomia do Brasil, que é um processo ainda em construção”, afirmou Rebelo.
A vice-prefeita de São Paulo, Nádia Campeão, considerou “mais que oportuno” recuperar a figura e a obra de Prado Jr com sua “atualidade impressionante”. “A gente vive um período de retomada de uma ofensiva contra fundamentos importantes de um projeto democrático e popular que vinha se firmando no país e que, novamente, se vê questionado, interrompido”, destacou ela.
A neta de Caíto, como gosta de se referir ao avô a jornalista Maiá Prado, destacou a singularidade do trabalho de Pericás, ao unir o historiador ao militante político de maneira a surpreender as pessoas mais próximas. “Lendo a biografia, me dei conta do quanto Caio Prado era um peixe fora d’água, nem tanto à esquerda, como gostaria o Partidão, e muito à esquerda para seus familiares e amigos”, analisou ela. Lembrou-se de histórias de infância contidas no livro, como as ameaças expressas em forma de cruzes queimadas no jardim da residência em Higienópolis, próximo à sede da TFP (Tradição, Família e Propriedade). Segundo ela, o livro de Pericás lhe tocou “num quesito muito especial”, pois conheceu o avô muito doente de Alzheimer, visitando-o com seu pai. “Mas, ainda criança, escutava as histórias, pude recordá-las, aprofundar e conhecer outras”.
Uma biografia, um personagem
A obra do autor é fruto de seis anos de pesquisa. Traz um relato impecável e multifacetado do historiador, escritor, geógrafo, militante e intelectual político de esquerda, Caio Prado Júnior, que abdicou de suas origens aristocráticas em favor de seus ideais comunistas. Perseguido e preso durante a ditadura militar, iniciada com o golpe de 1964, implementou no Brasil, pioneiramente, a tradição historiográfica marxista.
Pericás menciona que Caio Prado Júnior era seu tio-bisavô, o que ajudou a pesquisa nos arquivos de familiares. “Fizeram a gentileza de abrir suas casas para que eu pudesse consultar documentos que não estão em nenhum outro lugar. Encontrei muito material inédito na casa de parentes meus: cartas, fotos, periódicos, documentos da polícia política etc.” A mesma vantagem que adiou o fim do projeto, já que a cada documento encontrado, descobriam-se novos capítulos da trajetória narrada, como a descoberta, por um primo, de uma pasta com documentos da prisão ocorrida em 1970. Em sua obra de 504 páginas, Pericás traz muito material inédito, fotos, cartazes, documentos da polícia política, recortes de jornais.
Luiz Bernardo Pericás é formado em História pela George Washington University, doutor em História Econômica pela USP, pós-doutorado em Ciência Política pela Flacso (México), onde foi professor convidado e pelo IEB/USP. Recebeu a menção honrosa do Prêmio Casa de las Américas em 2012 por seu livro Os cangaceiros: ensaio de interpretação histórica, ganhador do Prêmio Ezequiel Martínez Estrada, da Casa de las Américas (2014), pelo livro Che Guevara y el debate económico en Cuba, além de ser autor de romances e tradutor. É professor de História Contemporânea da Universidade de São Paulo
O troféu Juca Pato foi criado em 1962, por iniciativa do escritor Marcos Rey. É uma réplica do personagem criado pelo jornalista Lélis Vieira e pelo ilustrador e chargista Benedito Carneiro Bastos Barreto, conhecido pelo pseudônimo de Belmonte (1896-1947). O Prêmio Intelectual do Ano não é um prêmio literário, mas uma láurea conferida à personalidade que, tendo publicado livro de repercussão nacional no ano anterior e que tenha se destacado em qualquer área do conhecimento, contribuindo para o desenvolvimento e prestígio do País.
*Cezar Xavier é jornalista e integra a equipe de redação da Revista Princípios e do Portal Grabois.
REPERCUSSÕES DA BIOGRAFIA:
“O grande mérito da biografia política que nos apresenta Luiz Bernardo Pericás é precisamente demonstrar que o historiador é indissociável do militante político. Em outras palavras, a opção que o jovem de família aristocrática tomou, decepcionado com os rumos da Revolução de 1930, ao aderir ao Partido Comunista do Brasil (PCB) norteou o restante de sua vida e obra. A partir daí, já como marxista, buscou unir teoria e prática, sendo exemplos disso a Editora Brasiliense e a Revista Brasiliense, e, principalmente, seus livros, trabalhos teóricos voltados para a prática política. Neles soube, como ainda é incomum, usar o marxismo como método para interpretar as vicissitudes de uma formação social particular, a brasileira.” – Bernardo Ricupero
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“O livro de Luiz Bernardo Pericás sobre a trajetória do Caio Prado Júnior traz novas e surpreendentes perspectivas para a compreensão da vida e do papel desse grande intelectual, o mais importante historiador brasileiro do século XX. Marxista, filho de família oligárquica paulista (com a qual rompeu), tornou-se conhecido pelas obras-chave que escreveu para o deciframento de nossa sociedade. Nesta densa biografia, baseada em documentos (em sua maioria inéditos), entrevistas e vasta bibliografia, surge um outro Caio Prado, em suas relações com o PCB e com outros intelectuais marxistas (ou não). Suas leituras, viagens (para União Soviética, China e Cuba, por exemplo), prisões e sua visão sobre temas como reforma, revolução, socialismo, questão agrária e o Brasil em perspectiva histórica constituem referência decisiva para a esquerda neste país tão desencontrado. “Muito atrasado…”, segundo Caio.” – Carlos Guilherme Mota
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“Este livro é o tipo de história que, depois das lutas e derrotas de seu personagem, consola o historiador por sua investigação em ampla bibliografia e em fontes inéditas. Mas brinda o leitor com a narrativa da trajetória de alguém que emerge por inteiro através de suas relações políticas e intelectuais. Eis a biografia de uma época!” – Lincoln Secco
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“Em Caio Prado Júnior: uma biografia política, o historiador Luiz Bernardo Pericás expõe com um estilo rigoroso e cativante a trajetória do pensador que lutou uma vida inteira para que o Brasil superasse seu complexo de inferioridade.” – Mauricio Puls, Folha de S. Paulo
TRECHOS DO DISCURSO DE PERICÁS AO RECEBER O JUCA PATO:
Em 1948, pouco tempo depois de sair da prisão, Caio Prado Jr diria: “Procure-se hoje nos grande embates da opinião brasileira, na discussão dos problemas fundamentais da nossa nacionalidade, a posição e a participação dos chamados intelectuais brasileiros, com tão poucas e honrosas exceções. Não as descobrimos. Está claro que não me refiro àqueles que passam francamente de armas e bagagens para o campo da traição dos interesses do povo do nosso país. Falo daqueles (felizmente ainda maioria) que, honra lhes seja feita, conservam o suficiente de dignidade para recuar diante do último passo da capitulação que lhes custa dar. Sua capitulação toma outro aspecto: o da dissimulação. Fecham os olhos, recusam-se, sob os mais variados e fúteis pretextos, a encarar a realidade que os cerca”.
(...) Hoje, contudo, é possível perceber a presença de vários supostos historiadores, filósofos e sociólogos, muitos dos quais oriundos do meio acadêmico, que se aliaram, por motivos financeiros ou ideológicos, aos setores mais nefastos da política nacional. Colunistas de jornais e comentaristas televisivos extremamente superficiais e reacionários, que vomitam diuturnamente o ódio e o preconceito contra as classes menos privilegiadas e suas lideranças históricas, representando o que há de pior em nossa sociedade. Na prática, cumprem o papel de cães de guarda do patronato, do mercado financeiro e do empresariado.
(...) O Brasil vive um dos seus piores momentos em décadas. Desde o golpe institucional, a repressão a qualquer voz dissidente tem aumentado. Em tempos recentes presenciamos o avanço das forças conservadoras e a tentativa sistemática de solapar a nossa ainda frágil democracia.
(...) Promotores, juízes e ministros do Supremo mostram todos os dias seu viés tendencioso, concedendo entrevista e emitindo opiniões pessoais quando deveriam ficar calados e se expressar apenas através dos autos. Passam por cima das leis e das garantias individuais, enquanto são apoiados pela grande mídia corporativa que, cotidianamente, manipulam as informações veiculadas nos jornais diários, revistas semanais e redes de televisão. Vivemos um tempo de abusos.(...) Nunca é demais apontar portanto as atitudes suspeitas e seletivas de jovens procuradores e juízes que se destacam por seu conservadorismo e muita vontade de estar no centro das atenções.
(...) A luta contra a corrupção deve ser intensa e constante, mas precisa ser feita dentro dos marcos da lei, e deve atingir a todos os envolvidos e não apenas a elementos escolhidos a dedo com aparente motivação política. Mais importante que o combate à corrupção, contudo, é fazer o possível para mudar o sistema que permite a sua existência.
(...) O objetivo do atual consórcio no poder é implementar a toque de caixa o desmonte do estado nacional, a reforma da previdência e a supressão dos direitos trabalhistas conquistados há décadas. Sem nenhuma legitimidade o atual ocupante do Planalto tenta acelerar seu projeto, que não obteria qualquer apoio popular caso fosse proposto em período eleitoral.
(...) Afinal, como bem lembrava o poeta cubano José Martí, os direitos se tomam não se pedem, se arrancam não se mendigam.”