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Edição 144 > Defender a EBC é lutar por democracia e diversidade
Defender a EBC é lutar por democracia e diversidade
Como pode um governo ilegítimo conviver com a liberdade de expressão, com a democracia? O golpe – não importa o seu formato: militar, parlamentar, jurídico – e os golpistas não toleram a diversidade. Para poder impor sua agenda autoritária e de regressão de direitos eles precisam restringir as liberdades, e uma das primeiras a ser atacada é, justamente, a liberdade de expressão. Por isso, Michel Temer quer acabar com a EBC e com o processo de fortalecimento da comunicação pública

Impedir a discussão sobre o papel dos meios de comunicação na sociedade é uma tentativa de naturalizar a hegemonia privada que caracteriza o cenário midiático brasileiro. É uma forma de legitimar o discurso único imposto pelos grandes meios e ocultar o fato de que o direito à comunicação não se resume a receber informações, mas também a produzir informação. Para que o direito à comunicação possa ser efetivado, a informação produzida pela sociedade também precisa de espaços de difusão.
Por isso, organismos internacionais que discutem direitos humanos e liberdade de expressão apontam, expressamente, que é necessário haver diversidade de fontes de informação e que é preciso haver, além do sistema privado, um sistema público forte e uma pujante comunicação comunitária e popular para garantir que esta diversidade – que não é garantida pelo mercado – tenha espaço de circulação.
Ao olharmos a história dos meios de comunicação no Brasil, vemos que a opção política dos governos foi a de dar ao setor comercial o benefício de explorar o serviço público de radiodifusão. Vale sublinhar mais uma vez: a radiodifusão aberta, que usa o espectro eletromagnético para transmitir os sinais das emissoras de rádio e televisão, é uma concessão pública. É uma propriedade do Estado brasileiro, ou melhor posto, é um bem comum da sociedade sobre o qual foi dado a alguns poucos grupos econômicos o privilégio de explorar.
Pelo menos desde o processo de elaboração da Constituição Federal de 1988, há uma pressão da sociedade para alterar esse quadro de oligopólio privado na radiodifusão, buscando algum mecanismo para garantir uma melhor divisão da ocupação desse espectro, de forma a diversificar os atores sociais que operam os canais de radiodifusão.
Com a criação da Empresa Brasil de Comunicação (EBC), o país começou de forma muito tardia a cumprir o previsto no artigo 223 da Constituição Federal, que determina que as concessões de radiodifusão observem a complementaridade entre os sistemas público, privado e estatal.
Por tudo isso, a criação da EBC é uma conquista histórica na luta pelo direito à comunicação no Brasil, uma vez que seus veículos se constituem em espaços de difusão de temas de interesse público que são invisibilizados pela mídia privada. A EBC começou a dar voz a segmentos que foram calados ao longo dos anos pela mídia hegemônica. Aos poucos, a sociedade ia se reconhecendo na EBC, seus veículos iam ganhando relevância, audiência, e começavam a disputar a opinião pública.
Comemoramos o surgimento da EBC (empresa que reúne 9 emissoras de rádio, uma agência de notícias na internet, a Agência Brasil e duas emissoras de televisão, a TV Brasil e a TV Brasil Internacional), por compreendermos que a conquista de um espaço mais plural e diverso para as comunicações no país passa, necessariamente, pela constituição e consolidação de um campo público de comunicação.
Golpe não convive com liberdade de expressão
Não por acaso uma das primeiras medidas do governo golpista de Michel Temer foi intervir na EBC. No dia 17 de maio, seu diretor-presidente, o jornalista Ricardo Melo, foi exonerado num ato discricionário e à revelia da lei. Para o seu lugar, Temer nomeou um interventor, o também jornalista Laerte Rímoli, para colocar sob o seu controle a programação da empresa. Rímoli é homem de confiança do deputado Eduardo Cunha e trabalhou na campanha presidencial de Aécio Neves.
A reação da sociedade foi imediata. Organizações dos mais variados campos sociais se levantaram contra a intervenção na EBC. Apoios de intelectuais, artistas, ouvintes das rádios, telespectadores da TV, leitores da Agência Brasil se multiplicaram exigindo o respeito à sua autonomia e independência editorial.
A luta em defesa da EBC também recebeu apoios internacionais, como a declaração conjunta dos relatores para a liberdade de expressão das Nações Unidas (ONU) e da Organização dos Estados Americanos (OEA). Edison Lanza, relator para liberdade de expressão da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) da OEA afirmou: “A iniciativa de desenvolver uma emissora pública nacional alternativa, com status independente, foi um esforço positivo para a promoção do pluralismo na mídia brasileira; em especial, considerando-se os problemas de concentração da propriedade dos meios de comunicação no país”.
A primeira intervenção de Temer durou menos de 15 dias. No dia 02 de junho, o ministro do Supremo Tribunal Federal, Dias Toffoli, acatou pedido de liminar reintegrando Melo ao cargo.
David Kaye, relator especial da ONU para a liberdade de expressão, alertou na nota conjunta que: “Tomamos nota das preocupações expressadas pelo governo sobre a situação econômica da EBC. Entretanto, essas preocupações não justificam interferências na administração de uma emissora pública nacional e, em particular, no seu trabalho jornalístico. Portanto, felicitamos a decisão do ministro do STF, Dias Toffoli, por reconduzir o diretor da EBC ao seu cargo”.
Essas manifestações são o melhor exemplo de que a EBC não é a empresa de nenhum governo. A EBC surgiu de uma exigência da sociedade, que clamava por mais diversidade e pluralidade. É uma conquista da luta pelo direito à comunicação. A sua existência é essencial para promover um melhor equilíbrio das fontes de informação que circula na mídia de massa.
Mas, em 31 de agosto, o afastamento definitivo da presidenta Dilma Rousseff foi o sinal verde para que o governo golpista desferisse novo ataque à EBC, desta vez mais grave e abrangente. Através da edição da Medida Provisória 744/2016, publicada no Diário Oficial da União, em 02 de setembro, Michel Temer modificou a lei que criou a EBC extinguindo o Conselho Curador, acabando com o mandato do diretor-presidente, alterando a composição do Conselho de Administração e desfigurando completamente o projeto de comunicação pública que originou a EBC.
A canetada de Temer
O ordenamento jurídico que criou a EBC, a Lei 11.652/2008 – fruto da disputa em torno de diferentes visões sobre o que é comunicação pública, e entre os setores que defendiam a sua criação e os que eram contrários –, tem contradições que foram utilizadas por Temer para atacar a empresa.
Uma delas foi a própria escolha de se criar uma empresa ligada diretamente ao governo federal, ao invés de pensar num outro formato, como a constituição de uma fundação pública de direito privado. A lei 11.652 criou um “serviço de radiodifusão pública explorado pelo Poder Executivo ou, mediante outorga, por entidades de sua administração indireta, no âmbito federal”; e para prestar este serviço autorizou o Poder Executivo “a criar a empresa pública denominada Empresa Brasil de Comunicação S.A. – EBC, vinculada à Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República”.
Essa escolha gerou um desenho administrativo no qual a maior parte da gestão é indicada pela presidência da República. Por outro lado, a lei criou mecanismos para defender o caráter público da EBC, como o mandato de 4 anos para o diretor-presidente que, de acordo com o então §3º do art. 19 (suprimido pela MP 744/2016), somente poderia ser destituído nas hipóteses legais ou na hipótese de o Conselho Curador da empresa aprovar voto de desconfiança por duas vezes, no prazo de um ano, com interstício mínimo de 30 dias, contra o mesmo.
A instituição de um mandato para o diretor-presidente da EBC e a vedação à discricionaridade de exoneração pelo presidente da República eram dispositivos que garantiam a autonomia e independência da EBC, para que ela pudesse cumprir seu caráter público e impedir que ela se subordinasse ao governo de turno.
No despacho que garantiu a liminar para restituir Ricardo Melo ao cargo de diretor-presidente, o ministro do Supremo Tribunal Federal Dias Toffoli afirmou: “Observo da leitura dos dispositivos – expressos quanto a` existência de mandato ao Diretor-Presidente pelo período de quatro anos e expresso também quanto a`s hipóteses de destituição do cargo (dentre as quais não se insere a livre decisão da Preside^ncia da Repu´blica) – que ha´ ni´tido intuito legislativo de assegurar autonomia a` gestão da Diretoria Executiva da EBC, inclusive ao seu Diretor-Presidente. Em análise precária, portanto, me parece que seria esvaziar o cerne normativo dos dispositivos interpreta´-los – tal qual propo~e a autoridade impetrada – no sentido da existência de mandato apenas na expressa~o, mas na~o em seu conteu´do” e mais adiante conclui “No caso dos autos, parece-me que a intenc¸a~o do legislador foi exatamente a de garantir certa autonomia ao corpo diretivo da EBC, o que se apresenta, em meu jui´zo preca´rio, consenta^neo com a posic¸a~o da Empresa Brasileira de Comunicac¸a~o, que tem por finalidade a prestac¸a~o de servic¸os de radiodifusa~o pu´blica, sob determinados princi´pios, dos quais destaco “autonomia em relac¸a~o ao Governo Federal para definir produc¸a~o, programac¸a~o e distribuic¸a~o de conteu´do no sistema pu´blico de radiodifusa~o” (art. 2º, VIII, da Lei n. 11.652/08 e art. 2º, VIII, do Decreto n. 6.689/08)”.
Contudo, com a edição da Medida Provisória 744/2016, Toffoli revogou sua liminar e extinguiu o processo alegando perda de objeto, contradizendo o próprio argumento que orientou a sua decisão anterior. Com esta medida, o mandado de segurança não será mais julgado no seu mérito, e Ricardo Melo foi novamente exonerado, para que Laerte Rímoli assumisse a empresa.
Sem participação social não é pública
A MP 744/16 também extinguiu o Conselho Curador, elemento dinâmico e o organismo vivo que zelava pelo caráter público da empresa. O Conselho era composto de 15 representantes da sociedade civil, 1 representante de funcionários, 1 da Câmara dos Deputados, 1 do Senado, e 4 do governo. Em sua trajetória, o colegiado enfrentou debates corajosos, como a discussão sobre qual caráter devem ter, numa emissora pública, os programas religiosos.
Além de zelar pelo caráter público, os instrumentos de participação são formas de construção de cidadania, de promoção de diversidade e pluralidade, de democratização da informação e da cultura. Isso faz pensar, mostra, que uma televisão pode ser diferente. O que é uma ameaça aos que se sentem donos da informação e da comunicação.
O projeto da EBC e seu papel como empresa de comunicação pública esteve em disputa desde seu embrião, no interior do governo e na sociedade. Isso porque a elite e o oligopólio midiático nunca aceitaram a iniciativa de criar o sistema público de comunicação no Brasil. Aliás, conseguiram impedir seu surgimento durante décadas.
A mídia se levantou em várias oportunidades contra a EBC. Ainda nos governos Lula e Dilma foram inúmeras as matérias contra a EBC; e editoriais pediam o fechamento da TV Brasil. Foi sendo construída uma narrativa de que a emissora era a TV do Lula, depois a TV da Dilma, ou a TV Chapa Branca, de que sua existência era um desperdício de dinheiro, de que não tinha audiência etc. Com o golpe, os ataques se aprofundaram.
A diversidade atrapalha
o projeto das elites
A comunicação pública deve existir para ser complementar à comunicação privada e estatal. Complementar porque os temas não tratados pela mídia privada devem ser o foco de atenção da comunicação pública. Dar visibilidade aos seguimentos invisibilizados pela mídia hegemônica era o papel da EBC. E muitos destes setores não são invisíveis por acaso, são porque isso é parte do projeto político das elites brasileiras, porque lhes dar voz pode colocar em xeque os objetivos do poder econômico e de colonização cultural.
Mas, mesmo tendo um papel distinto do que cumpre os meios privados/comerciais, a existência da EBC os incomoda demais. Justamente porque ela ousou cumprir seu papel e abordar temas que são ocultados, porque ela provocou reflexão sobre os assuntos tratados de forma rasteira pela mídia privada. Estes meios não aceitaram a existência da EBC e o fortalecimento de uma comunicação que promova uma narrativa diferente da que eles impõem à sociedade.
Para dar alguns poucos exemplos desta diferença, dados comparativos de 2015 mostram que a TV Brasil destinava 10,8% de sua programação a programas educativos, enquanto a Rede Globo apenas 2,3%. A TV Brasil veiculou 120 títulos de filmes nacionais em 2015, sendo a maior janela para a produção audiovisual nacional na TV aberta do país. A Globo veiculou 87 títulos. Já a Bandeirantes e a Record não veicularam nenhum. Na grade de programação da TV Brasil havia títulos direcionados a debater temas da diversidade étnico-racial, direitos humanos, cidadania, inclusão. O primeiro programa de televisão voltado para discutir os temas da comunidade LGBT é da TV Brasil. Nenhum deles tem espaço na mídia privada/comercial.
A EBC se abriu para a produção independente, criou programas com temáticas socialmente relevantes, investiu na transmissão de shows, eventos, jogos de futebol da 2ª divisão. E foi ganhando mais telespectadores.
Além disso, a criação da EBC permitiu o início de um projeto mais robusto, a criação de um Sistema Público de Comunicação com abrangência nacional cuja expressão é a Rede Nacional de Comunicação Pública, formada por 16 emissoras públicas estaduais associadas à EBC. Em nota publicada no dia 1º de setembro de 2016, um dia antes da publicação da MP 744/2016, as emissoras que compõem a RNCP afirmavam: “A hipótese de descontinuidade da TV Brasil prejudicaria diretamente toda a estrutura de comunicação pública no país, na medida em que boa parte da programação das emissoras regionais provém dela. Na prática, a rede pública de televisão é o único meio de circulação de informação gratuita qualificada sobre fatos ocorridos para além do eixo Rio-São Paulo, onde se concentram as grandes redes de TV comerciais. É por meio da rede pública, a partir da TV Brasil, que a sociedade brasileira enxerga melhor a diversidade de temas, personagens, realidades e culturas regionais – o que demarca com clareza os diferentes papéis da TV pública e da TV comercial”.
O Brasil no banco dos réus
A escalada vertiginosa de ataques à liberdade de expressão iniciada com o golpe precisa ser denunciada e combatida. A restauração da democracia e a retomada de confiança da sociedade nas instituições precisam de uma comunicação que garanta a pluralidade e a diversidade. Sem isso, a sociedade ficará refém de um discurso único que está atrelado a um interesse bem explícito: o do poder econômico nacional e internacional.
A defesa da EBC e a luta para tentar reduzir os danos que a intervenção de Temer causou no processo de construção na nossa comunicação pública precisam ser abraçadas por todos. A MP 744 precisa ser votada no Congresso Nacional. Apesar da avassaladora maioria de representantes do campo golpista na Câmara e no Senado, inúmeras emendas à medida provisória – buscando recuperar o caráter público da EBC – foram apresentadas.
Também ainda é possível levar o tema a debate no Supremo Tribunal Federal, através de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade. Este caminho é bastante acidentado, já que o STF tem sido uma corte bastante subserviente aos interesses da mídia hegemônica, caracterizando qualquer tipo de regulação da comunicação como censura. Basta ver decisão recente, do mesmo dia do impeachment, quando os ministros derrubaram a vinculação horária da Classificação Indicativa para a proteção da infância de programas inadequados, sob a alegação de que o dispositivo violava a liberdade de expressão.
Nota técnica assinada pela Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC) do Ministério Público Federal (MPF) sobre a MP 744 demonstra que há uma forte tese jurídica para invocar a inconstitucionalidade da medida. A nota sustenta que há violação às diretrizes Constitucionais tanto formais (o tema não deveria ser tratado pelo uso arbitrário de uma medida provisória, e sim seguir um processo legislativo formal), quanto materiais (afronta diretamente o artigo 223 da Constituição que prevê a complementaridade do sistema público, privado e estatal para a radiodifusão).
O Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação irá denunciar o Brasil à Corte Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA) e ao Alto Comissariado de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU) por violação a um direito fundamental expresso na nossa Constituição e nos tratados internacionais do qual o país é signatário: a liberdade de expressão.
A EBC tinha apenas 8 anos quando foi atingida pelo facão do golpismo. Era um projeto em implantação, com grande potencial para crescer e cumprir um papel fundamental de promoção de diversidade e pluralidade na mídia nacional. Uma missão que está intimamente ligada com o aprofundamento da cidadania, com o empoderamento da sociedade, com a construção da própria democracia brasileira.
* Renata Mielli é jornalista, coordenadora-geral do Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC), secretária-geral do Centro de Estudos da Mídia Alternativa Barão de Itararé