História
Edição 139 > A reconstrução da RPDC após a guerra
A reconstrução da RPDC após a guerra
Parte IV
Ao concluir esta série de quatro artigos - que se iniciou com a luta do povo coreano contra o domínio japonês, passando pela guerra da Coreia e pela construção socialista, até chegar aos dias de hoje - Raul Carrion fala sobre um período recente da história norte-coreana, quando foram construídas as bases da economia nacional e do sistema socialista naquele país. Para Carrion, a série de artigos cumpriu o objetivo de "levantar o véu de desinformação e de falsidades que as agências de notícias e de propaganda norte-americanas disseminam em todo o mundo"

pós três anos de guerra, durante os quais os EUA submeteram a RPDC a um verdadeiro genocídio, matando cerca de 20% da sua população - o que, no caso do Brasil, significaria o extermínio de 40 milhões de pessoas -, o país estava arrasado e precisava recomeçar praticamente do zero.
Para piorar, ainda que o armistício determinasse a retirada das tropas norte-americanas da Coreia do Sul, proibisse a introdução de novas armas e previsse a realização de eleições gerais para a reunificação pacífica da Coreia, nada disso foi feito, sem que a ONU aprovasse qualquer sanção contra os EUA: "Depois que finalizou a Guerra da Coreia, os Estados Unidos introduziram armas nucleares na Coreia do Sul, apesar do acordo do armistício, que proibia a introdução de armamento novo enquanto ao seu tipo."(1).
Em agosto de 1957, Eisenhower aprovou a NSC 5702/2, autorizando o "apoio estadunidense a uma iniciativa unilateral da RdC em resposta a uma rebelião de massas ao estilo húngaro na Coreia do Norte. (...) Rhee não diminuiu a sua defesa do uso de bombas de hidrogênio quando fizesse falta; sobressaltou inclusive seus partidários republicanos quando defendeu a sua utilização em um discurso dirigido ao Congresso, em 1954. (...) Em janeiro de 1958, os Estados Unidos colocaram canhões nucleares de 280 mm e mísseis nucleares tipo "Honest John" na Coreia do Sul e um ano mais tarde a força aérea "estacionou permanentemente um esquadrão de mísseis cruzeiro tipo Matador na Coreia". Com um alcance de 1.100 quilômetros, os Matadores foram dirigidos à China e à URSS, assim como também à Coreia do Norte." (2).
É nesse quadro de graves ameaças que a RPDC teve de iniciar a sua reconstrução, o que a obrigou a alocar importantes recursos - que necessitava para sua reconstrução pacífica - em ações de defesa.
A ideia Juche
O processo da construção socialista na Coreia teve como linha condutora a "ideia Juche", assim resumida por Kim Il Sung: "cada nação pode fazer triunfar sua revolução somente quando a realiza sob sua própria responsabilidade e com suas próprias forças, e soluciona de forma independente e criadora todos os problemas surgidos nesse processo. Isto constituiu o ponto de partida do nosso pensamento, que hoje se chama ideia Juche." (3).
Com essa formulação - extraída da dura dominação a que a Coreia foi submetida ao longo de sua história - Kim Il Sung indicou a necessidade de se combater atitudes servis frente às grandes potências e a tendência a copiar ou imitar experiências socialistas realizadas em outras condições, fortalecendo a ideia de que a Coreia precisava encontrar o seu próprio modelo de socialismo e construí-lo a partir de suas próprias forças.
A socialização da agricultura
A socialização da agricultura se iniciou pela criação de algumas cooperativas por circunscrição englobando camponeses pobres e membros do Partido. Muito rapidamente, apesar da falta de maquinário agrícola (4), a exploração cooperativa - beneficiada com auxílio do Estado - mostrou sua superioridade sobre a pequena propriedade individual. A partir daí, ela generalizou-se, atingindo 80,9% em 1956, 95,6% em 1957 e 100% em 1958. Os "grandes proprietários" (que na Coreia não eram grandes) puderam continuar trabalhando a terra em províncias vizinhas, onde lhes foi concedida a mesma quantidade de terra que aos demais agricultores.
As cooperativas criadas foram de três tipos, respeitando as especificidades locais e o nível de consciência dos camponeses: 1) Cooperativas elementares, formadas por uma equipe de cooperação de trabalho que cultivava em comum terras individuais, com meios de trabalho individuais; a retribuição era segundo a terra, meios de produção e trabalho fornecidos; 2) Cooperativas semissocialistas, onde a terra era posta em comum e explorada coletivamente, com retribuição segundo o trabalho realizado e a quantidade de terra aportada; 3) Cooperativas plenamente socialistas, onde as terras e os principais meios de produção eram tidos em comum e a retribuição de cada um era proporcional ao trabalho realizado. Em pouco tempo, o conjunto das cooperativas evolui para o terceiro tipo. Cada família camponesa teve direito a conservar uma pequena parcela para uso individual, com alguns porcos, aves e pequenos animais. O produto excedente dessas parcelas individuais podia ser vendido livremente no mercado.
Em 1958, foi feito um reagrupamento das cooperativas por circunscrição administrativa, chegando-se a 3.843 cooperativas com 1.055.000 camponeses: O reagrupamento das cooperativas permitiu utilizar racionalmente os meios de produção, desenvolver a revolução técnica, melhorar a utilização da mão de obra e diversificar a economia cooperativa" (5). Em 1960, as cooperativas exploravam 84% das superfícies cultivadas, contra 16% das 1.609 granjas estatais, das quais 39 eram geridas pelo Poder central e 130 por comitês populares regionais.
Como dos 12,8 milhões de hectares do norte da Coreia, só 2 milhões são aráveis (17%), foi necessário ampliar as superfícies cultiváveis através do ordenamento de planícies e montanhas e pela recuperação de terras salinas no litoral, com grandes investimentos em mão de obra. Nas montanhas foram incrementadas as culturas arbustivas, especialmente frutíferas, e o reflorestamento.
Essas medidas abriram caminho para a Revolução Técnica na Agricultura: "Sem transformar a atrasada técnica da agricultura é impossível mostrar no plano geral a superioridade da exploração cooperativa e desenvolver mais as forças produtivas da agricultura. À medida que se concluía a cooperativização da agricultura, o nosso Partido preparou-se imediatamente, sem perda de um instante, para a modernização técnica da economia rural." (6).
O primeiro elemento da revolução técnica foi a expansão da irrigação. As principais culturas - arroz, milho, horticultura - passaram a ter irrigação mecânica: "A superfície de arrozais irrigados passou de 387.900 djeungbos (7), em 1946, para 509.698, em 1960, e para 700.000, em 1970." (8).
A eletrificação foi o segundo elemento e em 1967 ela já alcançava 98,2% das circunscrições administrativas e 86,1% das famílias camponesas.
O terceiro elemento foi a mecanização da agricultura, que só se tornou possível com a retomada industrial. De 372 tratores em 1953 passou a 6.313 em 1960 e mais de 20 mil em 1970. Os arrozais de planície foram totalmente mecanizados já na primeira fase.
A quimização - isto é, o uso generalizado de adubos químicos, herbicidas e inseticidas - concluiu a revolução técnica na agricultura. O uso médio de adubos químicos por hectare saltou de 13 quilos em 1949 para 160 quilos em 1960 e 510 em 1970, eliminando o uso de excrementos animais como adubo.
Em meados da década de 1970, a revolução técnica da agricultura havia sido concluída no essencial e o país cobria suas necessidades básicas de alimentação, com destaque para arroz, milho, batata, leguminosas e hortigranjeiros. A produção forrageira e a pecuária ainda sofriam atrasos.
O imposto em espécie caiu de 25% em 1945 para 8,4% em 1959, sendo totalmente suprimido em 1966.
A reconstrução da indústria
O Plano Trienal (1954-1956) e o 1º Plano Quinquenal (1957-1961) priorizaram o desenvolvimento da indústria pesada (energia elétrica, siderurgia, indústria mecânica, produtos químicos etc.), deixando em segundo plano a produção de bens de consumo. Para isso, a RPDC contou com forte apoio da URSS e da China, ainda que nem de longe próxima ao que o Sul recebeu dos Estados Unidos e do Japão. A indústria da RPDC cresceu 41,7% ao ano durante o Plano Trienal e 36,6% durante o 1º Plano Quinquenal.
Durante o Plano Trienal de 1954-1956, a fabricação de meios de produção aumentou a uma média anual de 59% e a de bens de consumo a uma média anual de 28%, ultrapassando em 1,7 vezes e 2,1 vezes, respectivamente, os níveis de pré-guerra.
Já o 1º Plano Quinquenal (1957-1961) - cumprido em apenas quatro anos - lançou as bases do socialismo. O nível de destruição na agricultura, indústria, no comércio e artesanato havia sido tal que as diferenças de classes e de posses haviam sido praticamente eliminadas e estavam a exigir esforços conjuntos para garantir a sobrevivência de todos. Isso facilitou a rápida socialização dos meios de produção - no campo e nas cidades -, que foi realizada de maneira voluntária, sem uso de coerção, pelo exemplo e comprovação das vantagens do trabalho coletivo sobre o individual.
Em 1958, cada circunscrição foi chamada a construir uma indústria de pequeno ou médio porte, com seus próprios recursos. Nesse mesmo ano, foram criadas mais de 1.000 empresas locais, utilizando recursos e mão de obra ociosos. Em 1960, elas já respondiam pela metade da produção de bens de consumo do país. O governo central pôde, assim, concentrar 82,6% dos seus investimentos na indústria pesada, alocando apenas 17,4% na indústria leve. Apesar disso, a produção de bens de consumo cresceu 3,3 vezes, quase igualando-se ao crescimento de 3,6 vezes dos bens de produção. Além de ajudarem o desenvolvimento regional, as indústrias locais aproximaram a indústria da agricultura e reduziram as diferenças entre a cidade e o campo.
Ao mesmo tempo em que incentivava a emulação socialista, o Partido do Trabalho da Coreia nunca caiu na tentação -igualitarista- e sempre defendeu a retribuição segundo o trabalho de cada um: -O impulso político e moral do trabalho sob o socialismo deve estar ligado ao estímulo material. A distribuição segundo a qualidade e a quantidade do trabalho é uma lei objetiva da sociedade socialista e é um potente meio contra aqueles que querem comer sem trabalhar, às expensas dos outros, e para estimular materialmente o ardor dos trabalhadores na produção." (9).
Durante o 1º Plano Quinquenal houve uma grande expansão da produção de máquinas e equipamentos: "a participação das construções mecânicas no valor global da produção industrial passou de 17,3% em 1956 para 21,3% em 1960 e a taxa de autossuficiência nacional para os equipamentos mecânicos, de 46,5% a 90,6%, no mesmo período." (10). A metalurgia foi diversificada e o aço passou a representar 70% do seu total em 1960. Na indústria química desenvolveu-se a produção de plásticos e outros produtos sintéticos, além de adubos. A indústria de bens de consumo aumentou a variedade de bens produzidos.
Entre 1944 e 1960, a produção industrial aumentou 7,6 vezes e em 1964 a participação da indústria mecânica chegou a 26%, atendendo a 95% da demanda do país em máquinas e equipamentos.
Os Planos Setenais e Sexenais
O 1º Plano Setenal (1961-1967) previu uma taxa anual de crescimento de 18%, mas o agravamento das tensões com os EUA e a redução da ajuda da URSS - devido à disputa Sino-Soviética - causaram sua prorrogação por três anos, pela necessidade de alocar mais recursos para a defesa nacional. Apesar disso, a indústria cresceu 12,8% ao ano entre 1961 e 1970: "nas duas décadas posteriores à Guerra da Coreia o crescimento do Norte deixou muito para trás o Sul, colocando medo no coração dos funcionários estadunidenses, os quais se perguntavam se Seul decolaria em algum momento." (11).
De 1956 a 1970 a indústria cresceu 11,6 vezes (9,3 vezes os bens de consumo e 13,3 vezes os meios de produção) e seu peso na economia chegou a 75%, tornando a RPDC um país predominantemente industrial.
A indústria mecânica passou a fabricar navios, tratores, caminhões, locomotivas elétricas e a diesel, vagões, turbinas, transformadores, equipamentos elétricos e de transmissão, máquinas têxteis, prensas, máquinas para mineração, motores diesel, além de bens de consumo duráveis.
A indústria química se expandiu, incluindo o refino de petróleo, a produção de adubos nitrogenados, superfosfatos, ureia, amoníaco, plásticos, álcool, metanol, ácido clorídrico e carbureto de cálcio. Desenvolveu-se a produção de borracha - natural e sintética - e de pneus. Foram erguidas diversas fábricas de cimento, vidro, madeira e pré-moldados para a construção habitacional.
Na falta de coque metalúrgico, a RPDC criou novas tecnologias para produzir aço sem o uso do coque (aço elétrico, ferro granulado etc.). A siderurgia passou a produzir aços especiais, laminados, tubos de aço etc. O país tornou-se exportador de tungstênio, molibdênio, cromo, níquel, cobre, chumbo, alumínio e zinco. A geração de energia aumentou 70%, crescendo 11 vezes o peso das termoelétricas.
A indústria leve expandiu a produção têxtil de algodão, lã, seda e fibras sintéticas - com destaque para o Vinalon, criação tecnológica coreana - e os têxteis celulósicos. A indústria alimentar diversificou-se, com destaque para a indústria pesqueira e conservas a ela associadas.
Nos transportes, o esforço principal foi para a eletrificação do sistema ferroviário - de 12% em 1960 para 55% em 1970 - e a expansão da rede rodoviária para todas as cidades e aldeias do país.
O 1º Plano Sexenal, iniciado em 1971, além de ampliar e qualificar a produção determinou três tarefas centrais: eliminar os trabalhos penosos, reduzir as diferenças entre o trabalho agrícola e o trabalho industrial; liberar as mulheres dos afazeres domésticos.
Para eliminar os trabalhos penosos, foi intensificada a automação na indústria e nos transportes e impulsionada a indústria eletrônica. Na agricultura foram ampliadas a irrigação, adubação química, seleção de variedades cultiváveis, eletrificação e mecanização. A liberação das mulheres das tarefas domésticas foi alcançada pelo desenvolvimento da indústria de preparação prévia de alimentos e pela produção massiva de eletrodomésticos (máquinas de lavar, refrigeradores, marmitas elétricas etc.).
Entre 1970 e 1979, a indústria cresceu 15,9% ao ano. A modernização tecnológica foi acelerada com a aquisição de modernas plantas industriais nos países socialistas, no Japão e no Ocidente.
Examinando esse período, Cumings afirma: "estudo da CIA, publicado em 1978, situa a renda per capita da RPDC no mesmo nível da RdC para 1976 e outro estudo estimou que as taxas de crescimento per capita do Sul e do Norte foram iguais até 1986. (...) A produção total de eletricidade, carvão, fertilizante, máquinas ferramenta e aço na Coreia do Norte era comparável ou maior aos totais da Coreia do Sul no início dos anos 1980, devendo-se ter em conta que a população da RdC era o dobro da RPDC. (...) um crítico do rendimento econômico norte-coreano avaliou o seu crescimento industrial anual, entre 1978 e 1984, em 12,2%. (...) Engenheiros agrônomos da ONU constataram que o Norte (...) havia substituído o adubo humano (ainda amplamente utilizado no Sul a essa época) por fertilizantes químicos." (12).
Durante o 2º Plano Setenal (1978-1984) a indústria cresceu a um ritmo anual de 12,2%. Foram criadas 17.785 novas fábricas e oficinas e a produção de máquinas aumentou 2,3 vezes, especialmente de máquinas pesadas, sob encomenda, de extração, equipamentos eletrônicos e automatizados e meios de transporte. O país investiu fortemente em ciência e tecnologia e na formação de técnicos e engenheiros. De 1977 a 1984 a renda nacional aumentou 80%.
Foram promovidas algumas medidas de liberalização econômica, permitindo-se a ampliação de algumas atividades de mercado, principalmente para a venda de alimentos, e foi criada uma legislação para joint ventures (1984), com o objetivo de atrair investimentos internacionais.
Após o 2º Plano Setenal, houve necessidade de um período de reajuste - de 1985 a 1986 - para superar os desequilíbrios no desenvolvimento econômico do país e prepará-lo para maiores avanços.
Avanços sociais
O primeiro desafio foi a construção de milhões de moradias. Só durante o 1º Plano Sexenal, foram feitas 414 mil moradias nas cidades e 472 mil nas áreas rurais, em um país com apenas 15 milhões de habitantes. Hoje, o problema habitacional está totalmente resolvido na Coreia, onde toda família tem direito a uma moradia digna. Pyongyang reconstruída destaca-se por sua bela e arrojada arquitetura.
A educação teve enormes avanços. O ensino primário obrigatório que em 1958 era de 7 anos, hoje é de 12 anos. O sistema universitário, que em 1984 contava com 216 estabelecimentos, em 1989 já tinha 270, incluindo uma rede de universidades noturnas e por correspondência, para os trabalhadores.
As creches, que em 1970 atendiam 80% das crianças, ao final do 1º Plano Sexenal já supriam 100% da demanda. O Estado assumiu integralmente os órfãos da guerra, privilegiando-os para que conseguissem superar as desvantagens sociais de que foram vítimas.
A atenção à saúde tornou-se exemplar: -funcionários da Organização Mundial da Saúde e outros organismos da ONU elogiam a provisão de serviços básicos de saúde; as crianças na Coreia do Norte estão melhor cobertas pela vacinação que as crianças estadunidenses. A informação das Nações Unidas mostra que a expectativa de vida nesse pobre e pequeno país é de 70,7 anos (contra 70,4 da RdC), um número só ligeiramente inferior ao dos Estados Unidos." (13). Em 2014, ela alcançou 74 anos. Em 2003, havia 74.597 médicos e 87.330 enfermeiras na RPDC, ou seja, 32 médicos e 37 enfermeiras para cada 10 mil habitantes.
Houve um aumento constante da renda da população e a diminuição do preço dos bens de consumo. Durante o 1º Plano Sexenal, o ganho real dos trabalhadores urbanos foi de 70% e dos trabalhadores rurais de 80%. Em 1974, foram suprimidos todos os impostos sobre a população. O 2º Plano Setenal (1977-1984) propiciou um aumento real de 60% para os operários e empregados e de 40% para os agricultores.
Na RPDC, é preciso considerar o grande peso do chamado "salário social", não monetário, representado pela moradia gratuita ou a baixo custo - incluindo a luz e a calefação -, a alimentação a preços subsidiados, o vestuário fornecido pelas empresas a seus trabalhadores e pelas escolas a seus alunos (da pré-escola à universidade), a educação e a atenção à saúde totalmente gratuitas e os transportes públicos subsidiados.
O colapso do Leste europeu e da URSS e os seus impactos na RPDC
Em 1987, a RPDC deu início ao seu 3º Plano Setenal (1987-1993), tendo como meta ampliar em 90% a produção industrial (10% ao ano), em 40% a produção agrícola e em 80% o PIB. O crescimento da renda de operários e empregados foi fixado em 60% e dos camponeses em 70%.
No entanto, o 3º Plano Setenal foi inviabilizado pelo colapso do Leste Europeu e da URSS, ocorrido entre 1989 e 1991: "O colapso do bloco socialista privou Pyongyang de importantes mercados, causando vários anos de queda do PIB a princípios dos anos 1990. (...) Pyongyang reconheceu pela primeira vez publicamente -grandes perdas na nossa construção econômica- e -uma situação externa e interna sumamente complexa e aguda- (...) A maior parte da responsabilidade na crise foi atribuída não ao sólido sistema socialista norte-coreano, mas ao -colapso dos países socialistas e ao mercado socialista mundial-, que -destroçou- muitos parceiros de Pyongyang e seus acordos comerciais.- (14).
No final dos anos 1980, o comércio exterior da RPDC se dava fundamentalmente com a URSS e o campo socialista, muitas vezes com preços subsidiados. Na medida em que a maioria desses países restaurou o capitalismo e passou a exigir o pagamento de seus produtos com divisas fortes, o comércio exterior da RPDC sofreu um duríssimo golpe. Os EUA aproveitaram-se dessa situação para tentar derrubar o regime e impuseram sanções e um terrível bloqueio à Coreia do Norte, com o apoio da ONU.
Em meio a todas essas dificuldades, faleceu em 8 de julho de 1994 o presidente Kim Il Sung, fazendo aumentar o coro dos que prognosticavam a iminente derrocada da RPDC.
O quadro tornou-se ainda mais grave com a ocorrência de duas grandes enchentes (1995 e 1996), seguidas de uma forte seca (1997), derrubando a produção de alimentos e criando uma situação de penúria e fome, só superada com grandes sacrifícios da população e alguma ajuda internacional. Esse período ficou conhecido como a -marcha penosa- - em analogia com a dura luta do Exército Revolucionário Popular contra os japoneses, em 1934, quando enfrentou o risco de aniquilamento.
Mas nada disso afetou a solidez do regime coreano. A sucessão de Kim Il Sung por Kim Jong Il - preparada com antecedência - ocorreu sem conflitos e a liderança norte-coreana, agindo com firmeza e flexibilidade, investiu no fortalecimento do poderio militar do país - dissuadindo qualquer aventura estadunidense - e alterou rumos para enfrentar a nova realidade: -a crise (...) resultou na apresentação de uma nova legislação sobre investimentos estrangeiros, relações com empresas capitalistas e novas zonas de livre comércio. Inúmeras leis foram sancionadas para o sistema bancário, na área do trabalho e dos investimentos. (...) empresas de Hong Kong, Japão, França e Coreia do Sul formularam compromissos de abertura de fábricas de manufaturas na RPDC-. (15).
A teoria de Songun, a superação das dificuldades e a retomada do desenvolvimento
Com a RPDC militarmente ameaçada pelos EUA e preocupada com a falta de retaguarda no campo socialista - com a desagregação do Leste Europeu e da URSS e a aproximação da China ao Ocidente -, Kim Jong Il desenvolveu a política Songun, colocando -em primeiro plano o aspecto militar entre todos os assuntos do país (...) a questão militar se apresenta como um problema vital, que decide a vitória ou a derrota na revolução, o progresso ou a ruína do país, da nação. (...) A teoria revolucionária do marxismo definiu a classe operária como força principal da revolução (...) Mas, a teoria ou a formulação de Marx há um século e meio não pode adaptar-se à realidade de hoje. (...) Ao aplicar a política de Songun, nosso Partido definiu como força principal da revolução não a classe operária, mas o Exército Popular-. (16).
Sem entrar na discussão acerca da força principal na revolução - lembremos que Mao Tse-tung afirmava que nas circunstâncias chinesas a força principal da revolução eram os camponeses e a força dirigente os operários - ,diremos que a política Songun induziu fortes investimentos na defesa nacional, mesmo em condições de dificuldades econômicas, e fez com que - diante da recusa dos EUA em renunciarem ao uso de armas nucleares contra a RPDC - essa decidisse desenvolver suas armas atômicas e seus mísseis balísticos como uma força de dissuasão a qualquer ataque norte-americano.
Ao mesmo tempo em que fortaleceu suas defesas contra um eventual ataque dos EUA, a RPDC desenvolveu uma política externa ativa, ingressando na ONU e estabelecendo relações com mais de 160 países.
Adaptando-se às novas circunstâncias, flexibilizou sua política econômica e permitiu a existência controlada de pequenos negócios e a venda no mercado de produtos agrícolas (17). Da mesma forma abriu diversas Zonas Econômicas Especiais (ZEEs) - como em Rajin-Sonbong, Haeju e Sinuiju, para atrair investimentos estrangeiros - e estabeleceu o Complexo Industrial de Kaesong, gerido pela Hyundai, que prevê ter em sua terceira etapa duas mil empresas e 300 mil trabalhadores.
A decisão chinesa de criar as ZEEs de Chanchun, Jilin e Tumen - na tríplice fronteira com a Rússia e a Coreia do Norte - e de usar o porto de Rajin para escoar a produção de suas províncias de Heilongjiang e Jilin, assim como os investimentos russos no porto de Rajin, está dando um novo impulso à economia coreana. No mesmo sentido vão os investimentos russos que ligam a Transiberiana às duas Coreias e a construção do gasoduto que liga a província de Primorye às duas Coreias (18).
Da mesma forma, a crise econômica internacional e o crescente belicismo dos EUA e da OTAN, que agridem os povos e buscam fazer o cerco à Rússia e à China - levando a uma aliança defensiva de ambas e a um rearranjo euro-asiático - fizeram surgir novas possibilidades econômicas e diplomáticas para a RPDC, por seu papel geopolítico no Leste asiático, como barreira às forças dos EUA na Coreia do Sul e no Japão.
Foi nesse contexto de grandes dificuldades e ameaças - mas também de retomada do desenvolvimento (em 2011o PIB cresceu 5,2%) - que ocorreu a morte de Kim Jong Il, em dezembro de 2011. Novamente, diversos analistas internacionais prognosticaram o esfacelamento do regime, por conta de disputas pelo poder. Mais uma vez, porém, a liderança coreana mostrou a sua coesão e poucos dias depois Kim Jong Un foi investido nas principais funções de direção do país.
Apesar da cobertura -caricata- da mídia internacional, Kim Jong Un se revelou uma liderança consistente, que vem imprimindo importantes mudanças na relação entre o Exército e o Partido, fortalecendo a esse último e renovando a doutrina militar, que passará a priorizar uma força de dissuasão tecnologicamente avançada. Ao mesmo tempo, Kim Jong Un adotou um estilo de liderança carismático, em permanente contato com a população, e tem investido fortemente no bem-estar do povo.
Nos últimos anos, o país transformou-se um canteiro de obras, onde se destacam a construção da Usina Hidroelétrica de Huichon, o oleoduto Nampo-Pyongyang, o Porto de Tanchon, o já referido Porto de Rajin, centenas de milhares de modernas moradias nas principais cidades do país, hospitais, escolas e complexos culturais e de lazer. Realidade que pudemos constatar na nossa visita à RPDC, em julho de 2014.
Conclusão
Ao concluir esta série de quatro artigos - que se iniciou com a luta do povo coreano contra o domínio japonês, passando pela guerra da Coreia e pela construção socialista, até chegar aos dias de hoje - não tivemos a pretensão de esclarecer todas as controvérsias acerca da atribulada trajetória do povo coreano. Nossa intenção é unicamente levantar o véu de desinformação e de falsidades que as agências de notícias e de propaganda norte-americanas disseminam em todo o mundo, apresentando a República Popular Democrática da Coreia como um Estado -falido-, -retrógrado- e -belicista-.
A Coreia que tivemos a oportunidade de conhecer - diretamente, em julho de 2014, e após através de um amplo estudo - é um país moderno, de alta tecnologia, orgulhoso de seus feitos e de sua resistência ao imperialismo, que almeja a paz.
Evitamos fazer julgamentos, seja porque não nos cabe fazê-lo, seja porque entendemos que cada povo deve escolher o seu próprio caminho para o socialismo, de acordo com a sua cultura, as suas tradições e a sua maneira de ser.
* Raul Carrion é historiador e presidente da seção gaúcha da Fundação Maurício Grabois. No PCdoB desde 1969, foi vereador de Porto alegre por dois mandatos e eleito duas vezes deputado estadual
Notas
(1) CUMINGS, Bruce. El lugar de Corea en el sol. Una historia moderna. Córdoba/Argentina: Comunic-arte, 2004, p. 545.
(2) CUMINGS, B. Idem, p. 546-548.
(3) KIM IL SUNG. Historia de las actividades revolucionarias del Presidente Kim Il Sung. Pyongyang: Ediciones en Lenguas Extranjeras, 2012, p. 19-20.
(4) -A nossa experiência mostrou que a cooperativização agrícola é perfeitamente possível, mesmo nas condições em que não existem praticamente máquinas agrícolas modernas (...) a exploração cooperativa assim organizada é, apesar disso, decisivamente superior à economia individual- (KIM IL SUNG. Sur l-édification socialiste. In: SURET-CANALE, J e VIDAL, J.E. A República Popular Democrática da Coreia. Lisboa, 1977, p. 43).
(5) HONG SEUNG EUN. Le Development Economique de la Republique Populaire Démocratique de Corée. Pyongyang, 1990, p. 38-39.
(6) KIM IL SUNG. Rapport d-activité Du Comité Central. In: SURET-CANALE, J. & VIDAL, J. E. Idem, p. 43.
(7) Cada djeungbo equivale a aproximadamente 1 hectare.
(8) SURET-CANALE, J. & VIDAL, J. E. Idem, p.50.
(9) KIM IL SUNG. Rapport d-activité du Comité Central. In: SURET-CANALE, J. & VIDAL, J. E. Idem, p. 45.
(10) HONG SEUNG EUN, Idem, p. 27.
(11) CUMINGS, Idem, p. 481.
(12) CUMINGS, Idem, p.481-483.
(13) CUMINGS, Idem, p.482.
(14) Idem, p. 484.
(15) Idem, p. 484.
(16) KIM JONG IL. La línea revolucionaria de Songun es una gran línea de nuestra época y bandera siempre victoriosa de nuestra revolución (29.01.2003). Brasília, ASAS CÓPIAS, 2014, p. 1-9.
(17) -Permitiu-se que pequenos lotes (so-to-ji), localizados fora das cooperativas (especialmente nas montanhas), fossem cultivados privadamente e a colheita vendida em mercados (...) Em 1997, 58% dos restaurantes eram operados de forma privada, bem como lojas e transporte de vans.- (VISENTINI, Paulo G. Fagundes, PEREIRA, Analúcia Danilevicz, MELCHIONNA, Helena Hoppen. A Revolução Coreana. O desconhecido socialismo Zuche. São Paulo: UNESP, 2015, p. 161.
(18) Idem, p. 180-181.