Cultura
Edição 139 > Otelo, o grande ator
Otelo, o grande ator
Estivesse vivo hoje, o ator Sebastião Bernardes de Souza Prata, o Grande Otelo, estaria completando 100 anos e teria aumentado muito o seu acervo cultural. Um homem que buscou, através da arte, a grandeza de levar às pessoas múltiplas sensações e que no dia a dia procurou lutar para que todos pudessem ser reconhecidos e incluídos, principalmente, os negros

"Senhoras e senhores, com vocês The Great Otelo". Foi assim, em 1935, que foi apresentado ao mundo, um dos maiores artistas brasileiros - Sebastião Bernardes de Souza Prata -, o Grande Otelo. Em seu centenário, vale refletir sobre a inclusão dos negros nas artes e também em todos os espaços da sociedade. Um homem que viveu intensamente a cultura popular de seu povo e que, apesar dos seus 1,50 metros, se tornou um gigante da sétima arte.
Desde muito cedo, com 6 anos de idade, o moleque Tião já angariava uns níqueis cantando pelos comércios e pelo meretrício de Uberabinha, hoje Uberlândia. Descobriu que a arte poderia ser um bom negócio para escapar da fome, já que a sua infância não era nada fácil. O pai morreu numa briga e a mãe era alcoólatra.
Um dia, uma pequena companhia circense monta a tenda na cidade, e o pequeno Tião se incorpora fazendo um show musical que agradou o público e os donos do circo. Entre os espectadores estava a jovem atriz Abigail Parecis, cujos pais - a família Gonçalves - eram dirigentes da Companhia de Comédia e Variedades Sarah Bernhardt. Ela convenceu os pais a levá-lo para São Paulo. Foi o seu passaporte para a cidade grande. Os Gonçalves pediram a guarda de Otelo e a mãe autorizou. Nunca mais Otelo veria a mãe.
Foi um período rico para o menino de Uberabinha. Matriculado numa escola para sua educação, Abigail o acompanhava de perto, lhe ensinava a decorar grandes textos, a cantar músicas brasileiras, óperas e a interpretar.
O dramaturgo Oduvaldo Viana, quando conhece Otelo, pediu a sua contração para a Companhia Negra de Revista, que no elenco estavam Rosa Negra, Donga, Pixinguinha, entre outros. Fizeram algumas viagens pelo Brasil apresentando a Companhia. Mas um episódio tiraria Otelo de cena. A atriz Abigail consegue uma bolsa de estudo na Europa para aprimorar o canto e seus pais adotivos decidem acompanhar a filha e o entregam ao Juizado de Menores. Otelo passa a viver num abrigo de menores. Durante um período da vida foi um entra e sai da rua para o internato.
Em uma das visitas da família Queiroz ao abrigo, eles tiveram contato com Otelo e ficaram impressionados com a inteligência do garoto e resolvem adotá-lo. A família Queiroz, rica e tradicional de São Paulo, passa a lhe oferecer uma educação privilegiada. Ele vai estudar na Escola Caetano de Campos e depois no Liceu Coração de Jesus. Mas para o tutor, a arte não fazia parte do futuro do garoto, a família queria que ele fosse advogado, porém, compreendendo a aptidão de Otelo, eles passam a procurar amigos que pudessem dar a chance dele se desenvolver como ator. Só muito mais tarde, em contato com Jardel Jércolis, pai do grande ator Jardel Filho, morto na década de 1980, que o garoto vai conviver com o teatro de revista, perto de grandes cantoras e atrizes. Era 1935 e o nome de Sebastião era batizado por Jardel de -The Great Otelo-.
Cassino, Chanchada e Cinema Novo
Otelo a cada aparição vai ganhando destaque nas apresentações. No Cassino da Urca, de um mero figurante passa a ser o -The Great Otelo- e, então, o -Grande Otelo-, que dividia o palco com Herivelto Martins, Dalva de Oliveira entre tantos. Regado a muita bebida e jogatina, no Cassino girava uma grande quantia de dinheiro. Otelo passa a ter estabilidade. É nesse período que o cinema entra na sua vida.
Otelo fez uma centena de filmes, grande parte na chamada Era da Chanchada, musicais que, na maioria das vezes, plagiava o cinema hollywoodiano. Destacam-se os filmes Matar ou Correr, Dupla do Barulho, Carnaval do Fogo, quase sempre ao lado de Oscarito, uma dupla imbatível da cinematografia brasileira, mas Ankito dividiu com Otelo diversos filmes como É de Chuá.
No filme Carnaval do Fogo (1950), de Watson Macedo, Otelo se transveste de Julieta, enquanto Oscarito interpreta Romeu. A sua interpretação está intocável. As cenas foram feitas horas depois do velório de seu enteado, morto pela esposa, que ao envenená-lo se suicidou em seguida. Para muitos, Otelo não iria, mas a arte de interpretar tem dessas idiossincrasias. Na dor o ator tira uma de suas melhores atuações daquela fase do cinema. Ao terminar a gravação, Otelo desaba. Com tantas desgraças pessoais, e por experimentar a bebida da mãe muito cedo, com 3, 4 anos, Otelo não se controlava e a cada tristeza ou a cada alegria a bebida era sua companheira. Um fato que o fez perder muito trabalho.
Mas o alcoolismo não foi o bastante para tirá-lo da arte. Otelo continuou o seu trabalho. A chanchada estava em declínio e o ator considerado de comédia vai para o drama.
Otelo vai atuar em Assalto ao trem pagador, Amei um bicheiro, Os Herdeiros, e em diversas obras mostrando toda a versatilidade da sua interpretação. Moleque Tião, uma obra baseada na própria vida de Otelo, em que ele mesmo faz o protagonista, infelizmente se perdeu num incêndio.
Um dos personagens mais marcantes de Otelo está no filme Rio Zona Norte, de Nelson Pereira dos Santos. Nele, o ator encara o protagonista, um sambista vende suas músicas para sobreviver. É sem dúvida uma das obras mais importantes do cinema brasileiro.
Nelson, dois anos antes, já havia feito Rio 40 graus, onde mostrava a favela nua e crua e a vida de meninos no cotidiano carioca. O governo brasileiro censurou o filme dizendo que era um filme comunista, já que o cineasta era militante do PC. Porém, Nelson tinha se afastado do Partido Comunista exatamente porque a sua direção achava que cinema era coisa de elite e o proibiu de filmar, designando-o para fazer cursos de formação política nas periferias de São Paulo, algo que Nelson não concordou e interrompeu a sua militância. Depois disso, a censura ainda dizia que esse Brasil não podia ir para a tela, vender uma imagem ruim e que contava uma mentira, já que o -Rio nunca chegou a ter 40 graus-. O fato é que o filme foi liberado, não teve um grande público, mas Nelson perseguiu sua temática e convidou Otelo para o papel principal em seu segundo filme, que persistia em dar voz aos excluídos.
A cidade carioca é novamente o cenário para Nelson. Rio Zona Norte vai tratar o drama dos sambistas do morro, que para ter alguma ascensão social vendiam seus sambas para os cantores de sucesso da época. O ator esbanja talento. Sempre com um sorriso sonhador, ele caminha solitário pelos bondes, bares, favelas, tentando emplacar algum sucesso nas rádios ou nos LP-s. Nos passa uma verdade absoluta. Aqui há uma virada e transforma Otelo num dos atores mais completos do Brasil, talvez do mundo. É isso que afirma Orson Welles quando teve contato com aquele pequeno grande ator negro.
Otelo, assim como o outro negro e talvez o maior símbolo daquele período, Antonio Pitanga, irão imortalizar grandes personagens no Cinema Novo, dirigidos pelas mãos de Glauder Rocha, Nelson Pereira, Cacá Diegues, Roberto Farias entre outros.
É na direção de Joaquim Pedro de Andrade que Otelo interpreta o Macunaíma preto, baseado na obra de Mário de Andrade. Joaquim escancara de forma alegórica a cultura brasileira da década de 1960, período da ditadura militar. Otelo sabe bem o que era estar naquele momento fazendo o anti-herói brasileiro, por ser politizado, sabe que a obra era de extrema importância para a cultura e para aquele período. Macunaíma é seu ápice na sétima arte.
Na TV: Aqui, que -cueres--
Se Otelo esteve no teatro, se destacou no cinema, chegou a compor sambas, inclusive com sucesso como -Praça Onze- em parceria de Herivelto Martins, a TV não ficaria de fora. Aqui um detalhe. Quem tentar dar um Google na música, encontrará apenas como compositor Herivelto, como se o negro, já registrado por Nelson Pereira, em Rio Zona Norte, ficasse sempre à sombra do branco.
Mas voltando à TV, Otelo participou de diversos programas de humor, de entrevista e de algumas novelas. Mas tinha dificuldade em chegar no horário, decorar textos, de interpretar de forma mecânica como exige a telinha. Grande Otelo estava sempre improvisando, e isso para a tv, algo de consumo rápido, dificultava a permanência no veículo.
Uma curiosidade aconteceu com o sambista Antonio Carlos, do Originais do Samba, que ao fazer umas pontas num programa humorístico Bairro Feliz, teve que contracenar com Otelo. Em uma das brincadeiras, consta que Otelo não gostou e se dirigiu ao ator novato e soltou: -Seu, seu, seu Mussum-. Nascia ali mais um grande ator negro bem diante da telinha.
Por ser baixinho, sempre fazia papel de menino. Foi esse um dos últimos papéis de Otelo, como Eustáquio, na Escolinha do Professor Raimundo, sucesso inquestionável na virada das décadas de 1980 e 1990.
Otelo, um negro socialista
A política sempre esteve muito perto de Grande Otelo. Desde cedo assumiu o sobrenome Prata, um gesto para relembrar o seu passado e o passado do Brasil. Neto de escravo não adotou o -Costa- de seus antepassados, mas o Prata fazendo referência ao pai que servia a família Prata. Isso era algo muito comum no período pós escravidão: os negros adotarem o sobrenome de seus patrões. E assim Otelo assumiu Sebastião Bernardes (era Bernardo) Souza Prata. Como se não quisesse esquecer o período de submissão imposta pelo branco.
Acreditava que o melhor sistema político era o socialismo e combatia o racismo sempre que fosse acionado. Valorizava o papel do negro na arte de interpretar.
Uma vez lhe perguntaram se ele, por ter um engajamento, já havia rejeitado algum papel. Ele respondeu que nunca tinha rejeitado nenhum papel por ser um ator e a pergunta tinha, aí sim, uma conotação racista. Ou seja, ele como ser humano lutava pela igualdade e contra o racismo, mas era ator, poderia fazer qualquer personagem, engajado, pejorativo, marginal, intelectual, sambista, o que fosse ele faria. E Otelo fez muito.
No programa Roda Viva, em 1987, um jornalista lhe pergunta sobre Macunaíma, e se o povo brasileiro se vê de fato como um herói sem caráter. Ele responde que brasileiro não é sem caráter, mas que sofre um aculturamento do exterior. Na ocasião da entrevista ele cita a França, e diz que -hotéis chiques só têm comida francesa, porque é chique. Porque não tem arroz, feijão, ensopado-. Uma entrevista de mais de uma hora, que vale a pena assistir (disponível no Youtube). Otelo dá uma aula de humanidade, não era só um grande ator, era um grande cidadão.
O mundo de joelhos para Otelo
Em 1993, Otelo receberia em Paris uma homenagem pelo conjunto de sua obra no Festival de Nantes, mas morreu horas antes de ser homenageado. Algo digno de um roteiro de cinema dramático. Porém, por tudo que passou e tudo que conquistou, é impossível dizer que o seu final não tenha sido um final feliz.
Se Otelo estivesse vivo teria 100 anos e teria aumentado muito o seu acervo cultural. Um homem que buscou, através da arte, a grandeza de levar às pessoas múltiplas sensações e que no dia a dia procurou lutar para que todos pudessem ser reconhecidos e incluídos, principalmente, os negros.
Um homem além do seu tempo, um gênio brasileiro.
*Vandré Fernandes é diretor de cinema, roteirista e militante do PCdoB. Recentemente lançou o filme Osvaldão.