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Teoria

Edição 137 > ENTREVISTA COM DOMENICO LOSURDO: “Brasil tem importância para além da América Latina”

ENTREVISTA COM DOMENICO LOSURDO: “Brasil tem importância para além da América Latina”

Adalberto Monteiro, Augusto Buonicore e Osvaldo Bertolino
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Após percorrer o país fazendo palestras e lançando livros, o professor italiano Domenico Losurdo conversou com Princípios e fez uma profunda radiografia da conjuntura mundial. Um dos mais respeitados filósofos marxistas da atualidade, ele comentou os impasses na Europa, o clima de confronto do Ocidente com a China e a Rússia, a América Latina e temas teóricos e históricos. Leia os principais trechos da entrevista

Princípios - Professor, como o senhor vê a situação atual da Europa-

Domenico Losurdo - Devo insistir em um ponto que entendo como importante: o que caracteriza hoje a situação europeia de maneira particular é a passagem da crise de econômica para política. Sobre a crise econômica, algumas observações. Por um lado, há a ofensiva neoliberal, símbolo da austeridade e do desmantelamento do Estado social. Por outro, não se deve esquecer uma coisa que no Brasil talvez não esteja presente: há uma enorme crise da dívida pública e alguns países da União Europeia correm o risco de falir. E na Grécia - e isso já foi dito por muitos críticos - a crise provocou consequências tão catastróficas como as de uma guerra.

Agora a crise econômica está se transformando claramente em crise política. Darei alguns exemplos. Peguemos a Grã-Bretanha. Existem ao menos três aspectos pelos quais a crise econômica está se transformando em crise política. Na Grã-Bretanha está se fortalecendo o movimento para que ela saia da União Europeia, e para decidir sobre isso haverá um plebiscito, do qual não se sabe qual será o resultado. Em segundo lugar, não devemos nos esquecer que na Grã-Bretanha se fortalece sempre mais a tendência separatista da Escócia. Por conseguinte, com esse risco há a perspectiva de se ver a Europa cair em crise. E cair em crise a própria identidade nacional da Grã-Bretanha.

O terceiro aspecto dessa passagem da crise de econômica para política, no que se refere à Grã-Bretanha, é o fato de que o partido do primeiro-ministro David Cameron, mesmo não sendo majoritário na votação entre a população, fez a maioria absoluta na Câmara dos Comuns. Por isso, desse ponto de vista, o grau de representatividade da instituição parlamentar vai se reduzindo.

Não obstante isso, podemos fazer outras observações. Não se trata apenas da Grã-Bretanha. Vejamos a Espanha. Na Espanha há um fortíssimo movimento separatista na Catalunha, apesar de ser a região economicamente mais importante da Espanha. É claro que há uma crise também política devastadora na Europa, e não mais apenas particularmente econômica.

E ainda, ao que se refere às relações entre os Estados Unidos e a Europa, farei algumas distinções. Não há dúvidas de que neste momento os Estados Unidos conseguiram fortalecer o controle sobre a Europa. Porém, seria equivocado de nossa parte subestimar as contradições que existem entre Estados Unidos e Europa. E esse vice-presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, que vocês conhecem, tem características de falar espalhafatosamente sem controlar as suas palavras, exatamente por isso tem a vantagem de por vezes revelar verdades que não são facilmente difundidas. Recentemente, Baden disse que ao menos uma parte da Europa se opunha às sanções contra a Rússia, mas os Estados Unidos a constrangeram a continuar por essa via das sanções.

Putin esteve recentemente na Itália e o primeiro-ministro italiano, Matteo Renzi, o acolheu com grande simpatia e disse que espera encontrá-lo na Copa do Mundo de futebol na Rússia. Não é uma questão simplesmente futebolística. Dessa forma, Renzi se opôs às tentativas de Washington de retirar da Rússia a Copa do Mundo.

Na Alemanha cresce um movimento de resistência aos Estados Unidos. Há um apelo por uma nova política de pacto com a Rússia, firmado por dois ex-chanceleres alemães, Helmut Schmidt e Gerhrad Schroeder. E por isso a Alemanha, por um lado, teve um papel ativo, e absolutamente negativo, no golpe de Estado na Ucrânia e, por outro, é o país na Europa que mais resiste às pressões dos Estados Unidos.

Washington critica a Alemanha por vender tecnologia avançada para a China. Por conseguinte, qual atitude devemos assumir- Devemos, no que se refere à Europa, denunciar a bancarrota das classes dominantes, que não conseguiram salvar a Europa nem da crise econômica e nem da crise política. E correm o risco de expor a região a uma eventual guerra entre Estados Unidos e Rússia.

No entanto, seria equivocado pensar que o acordo entre Estados Unidos e Europa é de aço que não pode ser modificado. Eu pessoalmente sou signatário - e eu estou engajado nesse processo - de um apelo pela saída da Itália da Otan. E esse apelo, para mim, pode demonstrar um amplo consenso até mesmo fora do partido comunista.

E as organizações de esquerda têm feito resistência-

Não há dúvidas de que há uma resistência na Europa. No entanto, antes de falar desta ou daquela organização, devemos colocar um problema: a resistência contra a política neoliberal de austeridade e de desmantelamento do Estado social. Essa política encontra uma resistência bem grande. Mas falemos também da política neocolonialista da Europa, que desencadeou as guerras, junto com os Estados Unidos, contra o Iraque, a Líbia, a Síria, e antes contra a Iugoslávia. Nesses casos, a resistência é muito mais fraca. Podemos dar um exemplo disso incontestável.

Peguemos a CGIL (Confederação Geral Italiana do Trabalho), a maior central sindical da Itália, que tem uma história gloriosa. No passado esteve muitas vezes ligada ao partido comunista. A CGIL historicamente conduziu lutas não apenas no plano econômico como político. Por exemplo, lutas contra as guerras, o militarismo. Mas o que aconteceu em 2011 quando ocorria a guerra contra a Líbia- Sílvio Berlusconi, por razões particulares, hesitava em participar da guerra contra a Líbia. Naquela ocasião, a secretária-geral da CGIL, que se chama Susanna Camusso, fez uma intervenção pública para exigir a guerra, a participação militar da Itália.

Isso também vale para os novos movimentos e partidos políticos que estão surgindo na Europa. Talvez o melhor e mais avançado seja a Syriza (Coligação da Esquerda Radical). O Podemos na Espanha diz que não há mais direita nem esquerda. Na Itália há um movimento que se chama Cinco Estrelas, que condena a política de austeridade, temos que admitir. Condena a corrupção, o que é importante. No entanto, no que se refere à política externa é muito fraco.

Como o senhor avalia a atuação dos grupos neofascistas e neonazistas na crise-

Darei a minha opinião que será um pouco diferente da opinião corrente. Pois bem, na Europa nós temos grupos neonazistas. Dou dois exemplos particularmente mais evidentes. Há um grupo nazista forte na Grécia. Mas vocês sabem muito bem que há um grupo neonazista na Ucrânia. Com a diferença de que na Grécia o grupo neonazista é da oposição e, ao contrário, na Ucrânia está de algum modo no poder.

A minha opinião é esta: na Europa hoje a situação é diferente daquela dos anos 1930, quando na Itália tinha vencido o fascismo e na Alemanha o nazismo. Porque hoje a Europa agita a bandeira da democracia também com o fim de conduzir a sua política neocolonialista de guerra. A Europa faz a sua guerra dizendo que quer levar a democracia para o mundo.

Então, devemos fazer uma reflexão. Há o perigo de se verificar na Europa uma situação como aquela dos anos 1920-1930, como aquela que levou Benito Mussolini ao poder, na Itália, e Adolf Hitler, na Alemanha- Para mim, não. Existe, ao contrário, outro perigo. E para compreender esse perigo nós nos colocamos uma pergunta: a crise que explodiu em 1929, de que modo foi resolvida- Em última análise, foi resolvida com a guerra. Este é o perigo que existe hoje. E se há um perigo nazista ele está subordinado ao perigo de guerra, como demonstra o caso da Ucrânia.

O senhor pode discorrer um pouco sobre o movimento comunista italiano-

A história do movimento comunista italiano é muito particular. Em 1991 o maior partido comunista existente fora do mundo socialista suicidou-se. Quando se suicidou, mudando de nome, disse que, desse modo, a transformação política e social na Itália aconteceria mais agilmente, que eliminando o termo comunista diminuiriam as suspeitas. Na realidade, o que vemos- Que o suicídio do partido comunista na Itália coincidiu com uma grande crise econômica e política.

Quando existia o partido comunista, a Itália não participava de guerra imperialista. Podemos acrescentar que, com efeito, como eu disse antes, há um perigo de guerra. E, portanto, o suicídio do partido comunista italiano foi não apenas uma traição no que diz respeito à classe operária, mas à nação.

Depois do suicídio do partido, os comunistas procuraram se reorganizar na Itália. No entanto, em certo momento se tornou secretário-geral do partido comunista Fausto Bertinotti. Ele destruiu sistematicamente o comunismo na Itália. E agora a situação é grave. Há pelo menos quinze partidos comunistas na Itália. Naturalmente, todos fragmentados. Atualmente, há um processo de reconstrução do partido comunista. Nós o consideramos como um processo constituinte do partido comunista. Eu sou o promotor desse processo. Mas é inútil cantar vitória antes de saber como vão as coisas. Sou confiante, mas também sou bastante atento.

E a aproximação da China com a Rússia- A China vai despontando como potência econômica, enquanto a Rússia tenta buscar o seu caminho próprio. Como o senhor interpreta esse fenômeno-

Acredito que exista uma dimensão também cultural, não apenas política, no desenvolvimento da China. Os historiadores e filósofos dizem que os chineses têm o sentido da longa duração. Com efeito, é verdade se se pensar no momento em que Deng Xiaoping chegou ao poder, em 1979, quando há uma viragem. Ele já tinha um projeto de enorme fôlego estratégico. Isto é, partia do pressuposto de que cedo ou tarde o desenvolvimento econômico da China deveria modificar radicalmente as relações de força. E ainda hoje é evidente que ela parte do pressuposto de que o tempo trabalha a favor da China.

E não apenas pelo fato de que a China está destinada a se tornar a primeira potência econômica mundial, mas também porque ela está escalando todos os degraus da ascensão tecnológica, como, para citar só um exemplo, a tecnologia militar. Há 30 anos a China não possuía nada e hoje tem uma tecnologia militar muito respeitada. Em alguns casos até de vanguarda.

A situação da Rússia infelizmente é muito diferente. Com todo amor e respeito que tenho pela União Soviética, perguntemo-nos qual era a situação da União Soviética na época de sua derrocada. O que exportava a União Soviética- Exportava apenas tecnologia militar e matérias-primas. Isso, infelizmente, é preciso dizer.

Não é o caso da China, que exporta de tudo. E, por isso, desse ponto de vista se compreende que a situação da Rússia é muito diferente. A economia russa, infelizmente, ainda é fraca. Isso o próprio Putin reconhece. E ao mesmo tempo a Rússia vê desenvolvida essa ofensiva à sua porta na Ucrânia.

E o papel da América Latina como referência de mudanças na geopolítica mundial- Como o senhor tem analisado esse ponto-

Os Estados Unidos há algum tempo se deram conta de que não são mais a única e definitiva superpotência de todo o planeta. Deram-se conta de que a situação internacional está mudando rapidamente. São muitos os que escrevem que em pouco tempo a China será a grande economia do mundo. São muitos os que escrevem que a China não apenas se prepara para ser a maior economia do mundo, como também está por se tornar uma grande potência também tecnológica.

No que diz respeito à Rússia, não devemos esquecer que com Boris Ieltsin os Estados Unidos chegaram a estabelecer um controle sobre a Rússia. E não apenas porque Ieltsin era um bêbado. Na verdade, a privatização selvagem que se verificou após a derrocada da União Soviética não apenas tirou das classes operárias da Rússia a riqueza social por elas produzida; com efeito, o imperialismo conseguiu colocar as mãos no enorme patrimônio energético da Rússia. Com Vladimir Putin a situação se modificou. E por isso é claro que os Estados Unidos hoje estão obcecados com o medo de não mais serem a única e definitiva superpotência mundial. Desse ponto de vista na verdade assistimos a uma contraofensiva do imperialismo em escala mundial.

Você falou da América Latina. Mas se pensamos na Ucrânia é evidente que é um aspecto da contraofensiva do imperialismo contra a Rússia. Para não falar da ofensiva contra a China. E até no que se refere à África sabemos que os Estados Unidos estão intensificando a presença de suas bases militares nesse continente.

Portanto, há uma contraofensiva global que, naturalmente, na América Latina assume características peculiares. Compreende-se que aqui se pode perceber até com mais força a contraofensiva imperialista neocolonialista. Claro, não se deve esquecer a doutrina Monroe; por muito tempo os Estados Unidos consideraram a América como o quintal de sua casa. Quando irrompeu a Revolução Cubana, os Estados Unidos, por algum tempo, acreditaram que podiam isolá-la. Mas, nos últimos tempos, no continente latino-americano, os Estados Unidos é que estavam isolados. E a situação era muito mais preocupante, pelo fato de que se reforçavam as ligações da China com a América Latina.

Para mim, o Brasil deve ficar particularmente atento. Porque hoje este país tem uma importância internacional para além da América Latina. Basta pensar no papel do Brasil no BRICS. Se os Estados Unidos conseguissem restabelecer o controle sobre o Brasil, não apenas conseguiriam uma vitória importante na América Latina como uma vitória importante em nível mundial, porque provavelmente conseguiriam enfraquecer o BRICS. Ou seja, colocariam em crise a tentativa de um novo ordenamento econômico de caráter mais democrático. Para mim, atualmente na América Latina está em curso uma variante das -revoluções- coloridas.

Que impressão o senhor teve da esquerda brasileira-

Digo com muita franqueza que tive uma ótima impressão do Partido Comunista do Brasil (PCdoB). Acredito que sua política seja justa. Talvez posso lhes dizer um episódio que aconteceu no Rio de Janeiro. Quando terminei minha conferência foram feitas muitas perguntas interessantes, mas uma delas me pareceu um tanto provocativa, que dizia: Para o senhor o PT é um partido de esquerda-

Eu respondi que se alguém, para definir a colocação de um partido, leva em conta apenas a situação interna, abstraindo-se da situação internacional, não entende nada nem de direita e nem de esquerda. E disse que seria uma tragédia se no Brasil retornasse ao poder a direita. E seria uma tragédia não apenas para o Brasil como também para a América Latina e para o movimento democrático internacional. Parece-me que o Partido Comunista do Brasil sabe disso com muita competência.

Um tema que temos debatido muito, no PCdoB, é a atualidade do pensamento de Lênin. O senhor tem concordância com essa formulação-

Lênin foi um grande ator que não apenas compreendeu o imperialismo como também compreendeu perfeitamente o neocolonialismo. Ele fez claramente uma distinção entre colonialismo clássico e neocolonialismo. O colonialismo propriamente dito, escreveu Lênin, é a anexação política. Enquanto, ao contrário, o neocolonialismo é a anexação econômica. -Anexação política- e -anexação econômica- são duas expressões de Lênin.

Ele teve a grandeza de compreender o neocolonialismo quando ainda irrompia, no plano mundial, o colonialismo clássico. E Lênin compreendeu que o domínio imperial pode se manifestar até no plano econômico sem efetuar necessariamente uma anexação política. Isso compreenderam os maiores revolucionários do século 20. Mao Tse-tung antes de conquistar o poder disse que se a China continuasse a depender da farinha americana na realidade essa dependência política estaria ligada fortemente à dependência econômica. Desse ponto de vista, é claro que Lênin é de uma extraordinária atualidade.

A luta de classes também tem sido um tema sempre presente em suas obras. Esse é um tema da atualidade-

Eu afirmo em meus últimos livros que nós poderemos compreender a situação internacional se enxergarmos dois processos contraditórios. Se examinarmos o mundo capitalista vamos perceber que há uma luta de classe, até este momento, vencida pela burguesia capitalista, que está destruindo o Estado social. Está empobrecendo sempre mais as classes populares. Está produzindo uma elite sempre mais reduzida de ricos parasitas. Isso em relação aos países capitalistas.

Se, no entanto, considerarmos a situação mundial vemos que os países capitalistas ocidentais estão se enfraquecendo cada vez mais em relação aos emergentes, que são os países que levam nos ombros a revolução anticolonial. O caso mais notório é evidentemente o da China. Em 1949, quando Mao Tse-tung conquistou o poder, aquele país contribuía com o Produto Interno Bruto mundial de modo absolutamente insignificante. Hoje, ao contrário, contribui numa proporção cada vez mais respeitável. Mas a China é um exemplo notório, é preciso considerar os países emergentes em seu conjunto.

O senhor apresenta a ideia de lutas de classes no plural. Qual a dimensão desse conceito-

Para além da luta de classe entre o proletariado e a burguesia há a luta de classe entre os povos subjugados pelo colonialismo e o país opressor. Dou um exemplo. A partir da Revolução Francesa vemos a irrupção das massas populares no cenário da história. E na França vemos as primeiras greves operárias para melhorar as condições de vida e de trabalho. E nós o que dizemos- É uma luta de classe. Claro. Mas então peguemos o que acontece no final de 1700 na América Latina, em Santo Domingo, no Haiti. Neste caso, há um povo todo, negro, que se insurge para não mais ser escravo. E que rompe as cadeias da escravidão. Seria absurdo se nós disséssemos que é luta de classe aquela por um pouco de aumento nos salários e que não é a luta de classe para romper as cadeias da escravidão.

Por outro lado, não foi Losurdo que inventou essas coisas. Quando trago um exemplo de um livro eu poderia fazer muitos outros. Quando o imperialismo japonês desencadeia uma guerra contra a China com a intenção de escravizar o povo chinês, em 1938, aquele grande revolucionário, que foi Mao Tse-tung, disse que naquela situação havia identidade entre luta de classe e luta nacional. E a mesma coisa aconteceu na Europa oriental. O Terceiro Reich queria escravizar os povos da União Soviética, literalmente. E a resistência dos povos soviéticos, na Grande Guerra Patriótica, foi uma enorme luta de classe. Duas entre as maiores lutas de classe do século 20: foram aquela que viu a União Soviética resistir contra o imperialismo hitleriano e a que viu o povo chinês resistir contra o imperialismo japonês. Todas as lutas anticolonialistas são também lutas de classe.

No que se refere à terceira forma de luta de classe, a luta de classe das mulheres, também basta fazer uma consideração elementar. Não é apenas o fato de que Engels escreveu explicitamente que a primeira opressão de classe é aquela exercida pelo homem sobre a mulher na família patriarcal. É a redução da mulher a escrava doméstica.

Às vezes existem contradições entre a questão nacional e o internacionalismo. Como o senhor analisa essa questão hoje-

A questão nacional é real. E o imperialismo obviamente procura desfrutar-se dela. Mas não que ela foi inventada pelo imperialismo. Para mim, o melhor texto sobre esse tema foi escrito pelo Partido Comunista da China, em 1956. E provavelmente era de Mao Tse-tung. Vocês sabem qual era a situação nos Bálcãs. A União Soviética se desentendia com a Iugoslávia. E ao mesmo tempo a Iugoslávia, enquanto procurava manter-se independente da União Soviética, na verdade, conduzia uma política de grande potência em relação à Albânia.

Esse texto chinês de 1956 é brilhante exatamente porque explica isso, sem dar nomes. Um país A pode protestar contra a política de força do país B, mas ao mesmo tempo conduz uma política de força contra o país C. Os chineses não diziam os nomes, mas o país A era a Iugoslávia, o país B a União Soviética e o país C a Albânia. Isto é, o primeiro ponto a ser levado em consideração é que é necessário mais uma vez libertar-se do messianismo anárquico, segundo o qual a questão nacional desaparece imediatamente. A experiência histórica do socialismo nos diz que não é assim.

Há também, atualmente, a ofensiva cultural, um poder gigantesco exercido pela mídia hegemônica. Como o senhor situa esse ponto no campo das relações geopolíticas-

Hoje há diversos autores que dizem que a democracia nos Estados Unidos foi substituída pela plutocracia, isto é, domínio da riqueza. O peso, enfim, da riqueza é tão decisivo que não há chance de um candidato fazer carreira política sem se apoiar em um grupo econômico forte. Estou falando dos Estados Unidos, mas podemos citar um historiador estadunidense, que se chama Arthur Schlesinger Jr. e foi conselheiro do ex-presidente John Kennedy - portanto, não propriamente um bolchevique.

Schlesinger Jr., no final do século 20, já fazia esta observação sobre a qual vale a pena refletir. Sabemos o que historicamente foi a discriminação censitária. Durante séculos na Europa liberal aqueles que não tinham certo rendimento, que eram pobres, não podiam votar. Essa discriminação foi anulada pelas lutas do movimento operário. Pois bem, Schlesinger Jr. disse que o peso da riqueza era tão forte nas campanhas eleitorais estadunidenses que a discriminação censitária, que foi jogada porta afora, estava retornando pela janela.

No que se refere ao restante me limito a fazer uma observação. Na obra A Ideologia Alemã, de Marx e Engels, encontramos a grande afirmação, segundo a qual a ideologia dominante é a ideologia da classe dominante. A classe que possui o monopólio dos meios de produção material possui ao mesmo tempo o monopólio da produção das ideias. Esta tese é genial. No entanto, hoje em dia está ligeiramente envelhecida.

Naquele tempo em que Marx e Engels se expressavam dessa maneira os meios de informação eram os jornais em primeiro lugar. Hoje, intervêm a televisão e os meios de comunicação sociais. Sabem de que maneira no final de 1989 foi derrubado o regime de Nicolae Ceausescu na Romênia- O campo socialista já estava em grave crise. E eis que começam as manifestações, particularmente na cidade de Simoara. A certa altura houve repressão. E a certa altura os jornais, os canais de televisão e as mídias do mundo todo, disseram que em Simoara tinha ocorrido um genocídio.

Hoje temos mais clareza, sem sombra de dúvidas. Sabem o que aconteceu em Simoara- Pode-se ler sobre isso em jornais de autores burgueses. Ou pode-se ler mesmo em meu livro A não violência: o mito e as realidades, traduzido no Brasil. O que aconteceu- Os Serviços Secretos pegaram os cadáveres nos necrotérios, os mutilaram e depois difundiram as imagens do terrível genocídio que teria ocorrido. Na onda das indignações que essas imagens provocaram foi possível causar a revolta que derrubou Ceausescu e depois o condenou à morte.

Em 1999, dez anos depois, na Iugoslávia, a guerra foi fomentada exatamente dessa mesma forma. Isso pode ser lido nos jornais burgueses, eu apenas reuni informações, mas não inventei nada. Antes da guerra contra a Iugoslávia aconteceu o que ficou conhecido como massacre de Rajak. Esse massacre foi colocado em cena com as mesmas técnicas usadas em Simoara. Os cadáveres foram mutilados para simular um genocídio.

Então, retornando à grande tese de Marx e Engels, o que devemos dizer é que a classe que detém o monopólio da produção material detém também o monopólio da produção das ideias. A essa explicação eu me permito acrescentar algo. Não apenas o monopólio da produção das ideias, mas também o monopólio da produção das emoções. E essa é uma arma terrível nas mãos da burguesia, do imperialismo. Isso não apenas enfraquece a democracia, mas também as relações internacionais.

Tem se falado muito sobre o esgotamento do partido político como forma de organização. Isso faz algum sentido-

A representação comum é aquela em que o partido sufocaria o espírito crítico. E que, para desenvolver o espírito crítico, precisaria renunciar ao partido. No entanto, eu, antes de ser comunista, como historiador, devo dizer que as coisas estão acontecendo exatamente ao contrário. Darei alguns exemplos disso. Peguemos a Primeira Guerra Mundial. Quando ela estoura, em agosto de 1914, há um entusiasmo de massa em torno dessa guerra. Temos algumas fotos, sobretudo na Alemanha, de jovens que correm em massa para se alistarem no exército. Parece que estão indo para um encontro erótico, mas vão ao encontro da morte. Ocorre uma cegueira em massa. O espírito crítico está completamente envolvido pela propaganda dos meios de comunicação burgueses.

Foram, no entanto, o partido de Lênin e o próprio Lênin que mantiveram o espírito crítico. Foram eles que desde o início disseram que aquilo era um massacre imperialista. Se havia alguém que dizia aos jovens para manterem o espírito crítico foi o partido de Lênin. Todos os grandes intelectuais - ressalto, todos os grandes intelectuais - em diversos países eram totalmente a favor da guerra. Onde estavam os grandes intelectuais- Onde estava o espírito crítico dos grandes intelectuais- E podemos dar outro exemplo.

O momento de maior força do regime fascista na Itália foi quando ela conquistou a Etiópia. Houve entusiasmo. Mussolini, que era um grande demagogo, dizia que o império voltara. Era um momento de entusiasmo popular pelo fascismo e pela guerra fascista. Mas havia um pequeno partido naquele momento, que era o partido comunista, que manteve o espírito crítico. E afirmou que aquela guerra não apenas era um massacre colonial como também havia levado a Itália à ruína. Exatamente como aconteceu.

Mas deixemos de lado esse grande capítulo da história. Hoje, falemos da guerra contra a Líbia. Um intelectual não comunista, muito pelo contrário, que se chama Tzvetan Todorov, escreveu que a guerra contra a Líbia, com o pretexto de salvar a vida de 300 líbios, provocou a morte de 30 mil deles. E neste caso também houve uma cegueira geral. Até mesmo em pessoas de esquerda. Resistiram partidos comunistas, como o Partido Comunista Português e outros, falando em relação à Europa. Até quando existia um partido comunista na Itália não havia se verificado um entusiasmo bélico, um entusiasmo pela guerra. Desaparece o partido comunista e mesmo na Itália surge o entusiasmo pela guerra. Para onde foi o espírito crítico-

Observarmos países como China e Cuba. Não há dúvidas de que não podemos compreender essa enorme transformação da China - que levou esse país que em 1949 era o mais pobre do mundo aos níveis de hoje - sem levar em consideração o papel do partido. Ou vamos pensar em Cuba. Qual era a propaganda do imperialismo- Quando Fidel Castro se aposentou se disse que em Cuba o comunismo acabaria porque não havia mais um líder carismático. Mas não calcularam que havia um partido.

Se fizermos uma comparação entre China e Rússia, eu já falei sobre as razões da fragilidade da Rússia, mas há ainda outra razão de sua fragilidade em comparação com a China. Putin é um grande líder, mas o Partido Comunista da China é outra coisa. E, pelo meu entendimento, falar de obsolescência do partido, que hoje a forma partido não é mais válida, num momento em que se fortalece o perigo de -revoluções- coloridas na América Latina, e aumentam os perigos de guerra, é simplesmente estúpido.

O senhor poderia dar uma palavra sobre o desenvolvimento da teoria para os desafios do nosso tempo-

Em 1989-1991 havia um manifesto que circulava pelo mundo. Nele se via Marx, que dizia -proletários de todos os países, me perdoem-. Era um manifesto idiota que, no entanto, naquele tempo era considerado como sendo muito sério. E naquele momento o marxismo parecia realmente morto, ou pelo menos enfraquecido. Hoje a situação mudou. Hoje, é claro que há uma retomada do marxismo nos países europeus. Uma notável retomada.

Por outro lado, basta fazer uma consideração óbvia: há uma crise econômica. Se alguém, não comunista, quer estudar sobre a crise econômica qual autor leva em conta- Quais são os outros autores que, além de Marx, estudaram a crise econômica- Que insistiram sobre o caráter recorrente das crises no capitalismo- Apenas Marx e Engels e aqueles que os seguiram. Algum outro talvez, mas certamente alguém que quer estudar sobre a crise hoje sem fazer menção a Marx perde seu tempo.

Ou, enquanto os perigos de guerra aumentam, quem em primeiro lugar começou a falar sobre esse fenômeno- Eu devo relembrar que no Manifesto do Partido Comunista se diz que o capitalismo contém em si mesmo o perigo de guerra industrial de aniquilamento entre as nações. Repito: guerra industrial de aniquilamento entre as nações.

O problema hoje é que essa retomada de estudos marxistas deve ser feita sem abstração do movimento real de luta. Essa retomada do marxismo deve ser ao mesmo tempo um balanço histórico das influências exercidas pelo movimento que começou a partir de Marx e Engels, isto é, deve ser não simplesmente uma releitura. Reler não apenas os textos, mas os acontecimentos. E é o que procurei fazer aqui também.

*Adalberto Monteiro, Augusto Buonicore e Osvaldo Bertolino, integrantes do Conselho Editorial da Princípios e dirigentes da Fundação Maurício Grabois, entrevistaram o professor Domenico Losurdo na sede da Fundação, em São Paulo, no dia 24 de junho de 2015

Tradutora-intérprete: Lavínia Clara Del Roio. Transcrição do áudio e revisão técnica de Maria Lucilia Ruy

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