Política
Edição 137 > REFORMA POLÍTICA Nunca se comemorou tanto a falta de avanços
REFORMA POLÍTICA Nunca se comemorou tanto a falta de avanços
Diante do perfil conservador do Congresso Nacional e das propostas atrasadas que foram ao plenário, o resultado da votação da reforma na Câmara dos Deputados terminou sendo um ganho

O famoso texto" O 18 Brumário de Louis Bonaparte", Marx atualizou uma frase de Hegel que ficou famosa: -A história se repete, a primeira vez como tragédia e a segunda como farsa-. Para ele, a ressurreição de dogmas e velhos conceitos inibia o espírito criativo humano, que terminava por frear avanços no presente e futuro.
A epopeia da reforma política no Brasil parece estar sempre se legitimando no que traduzia Marx na frase acima. A cada legislatura o tema volta à pauta da Câmara e do Senado. O debate é ensaiado. O resultado da peça é pífio. Desta vez, apesar das intenções do presidente da Câmara, Eduardo Cunha (PMDB), e de um perfil altamente conservador do Congresso, não se gestou uma tragédia, mesmo com as tentativas da direita. Mas uma farsa, com certeza.
Uma farsa que, absurdamente, nos dá o direito de afirmar: diante de tantas ameaças e intentos atrasados, o que foi aprovado na Câmara terminou sendo um ganho. Poderia ser muito pior. No final, se não avançamos em termos da democratização do sistema político, não prevaleceu o distritão.
Na Câmara desde 2003, posso assegurar que este debate de 2015 foi o mais radicalizado e difícil. Como membro da Comissão Especial que analisou o tema, nunca tinha visto uma unidade tão grande das forças de direita para implementar uma reforma com vistas a limitar a participação das minorias na vida política do país e institucionalizar a força do poder econômico. Se hoje as eleições já são marcadas pela desigualdade financeira (tanto com o Fundo Partidário como com as doações privadas) e pela diferença do espaço de debate (com poucos partidos dividindo majoritariamente o tempo de rádio e TV), o que se pretendia e foi rejeitado em plenário tornaria nosso sistema político ainda pior.
Desde os primeiros debates sobre o tema, ainda no governo FHC, o PCdoB defende uma reforma democrática que fortaleça os partidos, não exclua as minorias do parlamento, ressalte o pluralismo político e partidário e o princípio da igualdade de chances, além de um processo eleitoral mais igualitário, sem influência do poder econômico.
Estes princípios traduziram-se em propostas como o financiamento público exclusivo de campanhas, a lista partidária nas eleições proporcionais, a possibilidade de formação das Federações de Partidos, a inexistência de cláusulas de barreiras, uma participação maior das mulheres e a possibilidade de a sociedade participar do processo político, não somente de quatro em quatro anos, mas podendo apresentar proposições diretamente ao Congresso. Ao longo do debate, o PCdoB apresentou propostas alternativas para permitir o consenso e impedir retrocessos, como a manutenção das coligações proporcionais e do sistema proporcional para o preenchimento das vagas no legislativo. E, mais recentemente, a possibilidade de financiamento privado apenas por pessoas físicas.
O que saiu da Câmara não permitiu qualquer avanço, porque não mudou o sistema eleitoral para fortalecer os partidos e a democracia, nem suprimiu o financiamento empresarial de campanha. Ademais, ao acelerar a tramitação da matéria, a maioria conservadora trabalhou para afastar um debate mais amplo que envolvesse a sociedade, exatamente para poder votar, a toque de caixa, propostas contrárias ao interesse da população.
Caberá agora ao Senado apreciar o que foi aprovado na Câmara. Ainda há pontos a serem analisados pelos deputados, mas o que ainda falta ser votado não tem força para mudar o processo em sua essência, pois estes Projetos de Lei tratam apenas de questões infraconstitucionais, como a diminuição do tempo de campanha e de propaganda na TV, além de um limite para os gastos eleitorais.
No Senado, a matéria terá de ser apreciada em duas votações, com aprovação de pelo menos 2/3 da Casa, como aconteceu na Câmara. E deve estar definida até o final de setembro para valer em 2016. Se os senadores promoverem mudanças, o texto volta para nova apreciação dos deputados.
Conjuntura adversa
Evidentemente, o PCdoB não alimentou a ilusão de que a reforma política, no atual momento, traria grandes avanços. O perfil do Congresso hoje é conservador, com a prevalência de bancadas afinadas com propostas atrasadas e obscurantistas. Hoje, bancadas como a da -Bala-, que defende retrocessos na legislação dos direitos humanos, e a -Evangélica-, que combate abertamente direitos civis, circulam com desenvoltura junto à Presidência da Casa, fortalecidas para a adoção de costumes políticos que julgávamos extintos.
Somam-se a isso dois fenômenos preocupantes. Primeiro a fragilidade do governo, que ficou totalmente alheio ao debate da reforma. É bom lembrar que essas mudanças políticas foram a principal resposta da presidenta Dilma aos protestos de junho de 2013. De lá para cá, de proponente da discussão o governo tornou-se refém de um quadro de completa desmobilização da sua base. E o PMDB, aliado preferencial do PT, foi o principal fiador de propostas atrasadas como o financiamento empresarial de campanha e o distritão, por exemplo. No final, a ausência do governo nas discussões ajudou a reforma a passar pela Câmara sem a exata dimensão merecida por um tema tão importante.
E segundo, o oportunismo da oposição que, mais preocupada em manter vivo um terceiro turno eleitoral, resolveu aderir acriticamente a qualquer proposta contrária ao que é defendido pelo PT e seus aliados de esquerda. Foi assim que o PSDB, que em sua formação foi um avanço político diante do atraso representado pelo Centrão na Constituinte de 1988, desta vez caminhou ao lado das mais atrasadas forças do Congresso, votando nas propostas antidemocráticas da reforma política, assim como, posteriormente, dando apoio à redução da maioridade penal.
Neste quadro de combinação de uma Câmara conservadora, governo fragilizado, o principal partido de esquerda perdido diante de severos ataques e uma oposição que aposta no quanto pior, melhor, coube ao PCdoB exercitar suas habilidades históricas. Foi a capacidade de articulação e amplitude política dos comunistas, mais uma vez, que ajudou a impedir a aprovação de propostas que criariam barreiras à existência institucional dos pequenos partidos e a adoção de um sistema político-eleitoral que colocaria o Brasil entre os países mais atrasados do mundo.
Farsa e tragédia
Por isso é que podemos até comemorar o fato de, mesmo sem ter produzido avanços, o resultado da votação da reforma não ter trazido maiores retrocessos - o que terminou sendo um ganho. Para se ter uma ideia, foram rejeitados o distritão, o fim da coligação proporcional, a cláusula de barreira e o financiamento empresarial irrestrito. De mudança, foram aprovados a constitucionalização da contribuição empresarial financeira aos partidos, o fim da reeleição, a instituição dos mandatos executivos e legislativos de cinco anos (inclusive para o Senado) e a redução da idade para assumir mandatos, que passa a ser de 29 anos para senador e governador e de 18 anos para deputados.
O PCdoB lamenta que a Câmara, historicamente machista e hoje mais abjeta a avanços, tenha rejeitado a proposta de reserva de 30% das cadeiras do Parlamento para as mulheres. A proposição foi derrubada na escalada de força das bancadas conservadoras, com o apoio de partidos da oposição.
Considerada por todas as forças políticas como -a mãe de todas as reformas-, a reforma política no Brasil assemelha-se ao hábito do time de futebol que toca, toca a bola, mas nunca faz um gol. Aí a farsa, que Marx dizia ser uma das formas de repetição da história.
E enquanto o jogo continua no zero a zero, ou é decidido com um gol contra, o país assiste à tragédia. Um escândalo de corrupção se sobrepõe a outro, uma circunstância que paralisa o governo e amplia a crise, penalizando os mais necessitados e permitindo um cenário perfeito para o fortalecimento de ideais golpistas, propostas reacionárias e ascensão do obscurantismo político.
* Daniel Almeida é deputado federal pelo PCdoB e membro da Comissão Especial que discutiu a Reforma Política.