Internacional
Edição 136 > A atualidade do legado de Lênin
A atualidade do legado de Lênin
"Como uma ponta de cigarro mastigada,
cuspimos fora a dinastia deles".
(Maiakovski)
Lênin conseguiu interpretar seu mundo corretamente e, a partir disso, transformá-lo. Esse seu maior legado: a partir de uma teoria revolucionária interpretar a realidade concreta e a partir daí mudá-la revolucionariamente

O maior legado de Lênin foi a Revolução Russa, para a qual contribuiu decisivamente. A Revolução Socialista de Outubro de 1917 foi o mais importante acontecimento do século XX: pela primeira vez na história da humanidade, os operários chegaram ao poder.
Apesar de muito citados, a maioria das vezes Lênin e leninismo aparecem como sinônimos de violência e sectarismo. Afirma-se que a Revolução Socialista foi violenta – o que não é verdade – e que a visão sectária leninista de partido teria possibilitado o stalinismo – o que também não me parece correto. São frequentes também colocações que “aceitam” marxismo, mas não o leninismo, e muitas dessas posições exaltam Antônio Gramsci sem se dar conta de que Gramsci era um leninista convicto. Considera-se que a teoria pode passar enquanto permanecer apenas como teoria, mas não a práxis revolucionária que realizou a Revolução. Rejeitar Lênin é rejeitar a Revolução Socialista de 1917, o grande fantasma que ainda ronda o mundo: se foi possível que os operários chegassem ao poder, é possível que possam chegar ao poder.
Da teoria da revolução leninista na Rússia czarista fazem parte a visão do que deveria ser o partido comunista, a teoria sobre o Estado, a política agrária, a crítica ao imperialismo, a relação entre revolução nacional e internacionalismo proletário, a relação entre revolução nacional anti-imperialista e revolução socialista, em fim, todas as inúmeras e complexas questões teóricas e práticas da revolução socialista enfrentadas pela primeira vez na história.
Uma das questões mais criticadas em Lênin foi sua concepção de partido, considerada sectária, autoritária e, de certa forma, elitista, uma vez que considerava o partido como essencialmente um partido de quadros. A partir dessa crítica, extrapola-se, para desqualificá-la, afirmando que toda a falta da democracia partidária, que ocorreu depois de sua morte, a substituição do proletariado pelo partido comunista e deste por sua direção já vinham embutidas no modelo leninista de partido. No entanto, o mais importante na discussão sobre a concepção de Lênin em relação ao que deveria ser o partido comunista não é, de maneira alguma, discutir se o partido deveria ser de quadros ou de massas, mas sim que tipo de partido seria mais consequentemente capaz de, nas condições da Rússia czarista do início do século XX, adotar uma teoria e uma organização para a ação revolucionária. Dito de outra forma, o mais importante, ao se discutir o legado leninista em relação ao partido, é acompanhar sua práxis que, a partir da teoria revolucionária marxista, forjou uma organização partidária revolucionária. Não faz sentido discutir, fora da realidade concreta, se o “ideal” deve ser um partido de massas ou de quadros, ou se o partido deve trabalhar na legalidade ou na clandestinidade. Essas não são escolhas aleatórias, mas devem ser decorrentes de uma situação concreta. Por outro lado, como veremos adiante, jamais Lênin tentou substituir as massas pelo partido, ou fazer a revolução no lugar delas. Para Lênin, o partido seria o organizador e o dirigente da vontade revolucionária demonstrada pelo povo – operários, camponeses, soldados e marinheiros interessados em levar adiante a revolução.
A Rússia czarista
A dinastia dos Romanov tinha 300 anos e, em pleno início do século XX, Nicolau II (que subira ao trono em 1897) dizia-se soberano por direito divino. A Rússia era um imenso território com inúmeras etnias e quase 80% de sua população ligados ao campo e pouco alfabetizados, população que o czar dominava com extrema brutalidade. O Estado absolutista e repressor comportava situações como a do prestígio dado ao famoso embusteiro Grigori Rasputin, que caíra nas boas graças da czarina e chegava a destituir e nomear ministros. Nesse quadro, a incompetência também grassava além de o Estado russo ser a negação da democracia (HILL: 1967:20).
No início de 1905, ocorreu o que foi chamado por Lênin de ensaio geral para a revolução. No domingo 9 de janeiro, o czar mandou disparar contra o povo que saíra em passeata ao Palácio de Inverno, pedindo ajuda ao “paizinho”, como era chamado o czar, para melhorar sua situação de miséria. Eram homens, mulheres e crianças, em seus melhores trajes, que pacificamente queriam dirigir-se ao czar. Foram massacrados, no que ficou conhecido como “Domingo Sangrento”. Rebeliões se espalharam pelo país e durante as inúmeras greves surgiram os primeiros sovietes, conselhos de operários que organizaram as paralisações e que tornaram-se dirigentes do movimento revolucionário.
Apesar da derrota do movimento o czar, assustado com a revolta, prometeu respeitar as opiniões da Duma (o Parlamento), promessa que não foi respeitada e nem diminuiu a repressão. Durante algum tempo a classe operária parecia hibernar.
A guerra de 1914, com seu cortejo de barbárie, contribuiu para reorganizar o descontentamento popular. Já em julho, pouco antes do início da guerra (1º-08-1914), as greves em São Petersburgo, capital do império, levaram às barricadas, na luta dos operários contra a polícia czarista. Com o conflito mundial, a situação piorou muito, a miséria e a fome se agravavam, milhões de trabalhadores – em especial camponeses – foram mobilizados. A situação dos soldados no front era trágica e calcula-se que em 1916 já havia registro de mais de um milhão de desertores (HILL: 1967:33).
Em fevereiro de 1917 a dinastia dos Romanov foi derrubada, assumindo o poder um Governo Provisório – composto de liberais e conservadores de oposição que tinham a maioria na Duma. Ainda segundo Christopher Hill, o movimento que derrubou o czarismo foi “um movimento de massas quase espontâneo, de operários e soldados em Petrogrado, movimento que ninguém jamais reivindicou o mérito de tê-lo organizado” (HILL: 1967:33).
O tempo decorrido entre fevereiro e a revolução socialista de outubro daquele ano é um período importante para entendermos o pensamento e a ação revolucionária de Lênin.
Vladimir Ilitch Ulianov
Lênin nasceu a 10 de abril de 1870, na cidade de Simbirsk (atual Ulianovsk, no Volga). Nasceu num ambiente cultural elevado e politicamente liberal: seu pai, professor de física, pertencia à pequena nobreza e chegou a Diretor de Ensino da região e sua mãe era professora, ambos com visões de mundo bastante avançadas. Todos os cinco irmãos de Lênin tornaram-se revolucionários, sendo que o mais velho, Alexandre, foi enforcado aos 19 anos por participar da tentativa de assassinato de Alexandre III. A região tinha também tradição revolucionária: muitos dos que participaram da grande rebelião popular chefiada por Yemelian Ivanovitch Pugachov, um século antes, eram de lá.
Lênin formou-se em direito e por algum tempo trabalhou em sua região, defendendo camponeses pobres. Em 1893 foi para Moscou e de lá para São Petersburgo, onde travou conhecimento com marxistas. Em 1894 escreveu Quem são os amigos do povo e como lutam contra os socialdemocratas, uma crítica aos populistas e lutou pela formação de um partido operário socialdemocrata russo. Criou-se na ocasião, e com sua participação, uma União de Luta pela Emancipação da Classe Operária, em São Petersburgo.
Lênin passou boa parte do ano de 1895 no exterior. Em Genebra encontrou-se com Gueorgui Valentinovitch Plekanov, do grupo Emancipação e Trabalho. Viajando depois a Paris conheceu Paul Lafargue – genro de Marx – e aproveitou para estudar a história da Comuna de Paris, o que teve importância decisiva em sua futura ação política. Seguindo para Berlin, Lênin entrou em contato com a socialdemocracia alemã, através de Wilhelm Liebknecht. Além de estudar muito, pôde conhecer líderes do movimento operário revolucionário europeu.
De volta à Rússia, em setembro daquele ano, Lênin foi preso e condenado a três anos de exílio na Sibéria, em Chechenskoie, uma província de Yenissei. Foi lá que, em 1898, escreveu o notável livro O desenvolvimento do capitalismo na Rússia. Lá também casou-se com a revolucionária Nadiejda Krupuskaia. Em meados de 1900, terminado o exílio, viajaram à Suíça.
A atuação política de Lênin era constante, procurando a melhor forma de organizar o proletariado russo para a revolução. Para Lênin, um jornal desempenharia imprescindível papel organizativo e na Alemanha, no final de 1900, juntamente com Julius Martov (Yuli Osipovitch Tsederbaum), lançou o jornal Iskra (A Centelha). O jornal tinha como epígrafe! “Da centelha saltará a chama!” e dizia em seu primeiro editorial: “Sem um partido forte e organizado o proletariado russo jamais conseguirá realizar a grande tarefa histórica que lhe cabe: libertar a si próprio e a todo o povo russo de sua escravidão política e econômica” (Cf. BOLSANELLO: 2000:40).
A luta de Lênin pelo partido “de novo tipo” deu-se em duas frentes: na luta teórica, defendendo suas posições em livros, artigos e discursos, e na luta política, nos congressos do partido. Quando, no final de 1900, Lênin escreveu A que herança renunciamos, já delineou a separação que existia entre a concepção marxista e as ideias populistas. Uma questão que deve ser destacada como mais um legado do revolucionário russo é que, no intenso e permanente debate por suas ideias, Lênin jamais deixou de dar respostas bem fundamentadas às críticas que sofriam os defensores de Marx. Os populistas, por exemplo, acusavam os marxistas de terem renunciado à herança revolucionária russa e Lênin mostrou que, ao contrário, eram os marxistas os verdadeiros herdeiros dessas tradições. Para chegar a esta conclusão argumentou detalhadamente, mostrando que conhecia a fundo os democratas revolucionários russos da década de 1860, em especial Nikolai Chernishevski, a que Karl Marx também citava com admiração.
Cada um dos escritos de Lênin correspondeu à necessidade de dar respostas teóricas que fundamentassem uma atitude prática. Em 1902 argumentou sobre a necessidade de uma forte organização partidária em Que fazer- – título que copiou de uma obra de Chernishevski. Lênin atualizava as ideias de Marx às condições da Rússia czarista e defendia a organização de um partido de novo tipo que pudesse enfrentar com sucesso a repressão czarista. Seria preciso organizar uma força revolucionária que dirigisse o movimento operário. No combate aos partidários de Martov, chamados “economicistas” e que defendiam uma posição ideológica eclética, em nome da liberdade de crítica, Lênin dizia que tudo que fizesse concessões à ideologia burguesa abastardaria a ideologia socialista e defendeu com vigor a importância de uma sólida teoria revolucionária para a ação revolucionária: “Sem teoria revolucionária não pode haver movimento revolucionário”, destacava – um legado que não pode ser esquecido.
Lênin se opunha aos “economicistas” dizendo que eles defendiam um caminho semelhante ao do trade-unionismo, tanto na organização quanto na política:
A luta política da socialdemocracia é muito mais ampla e mais complexa do que a luta econômica dos operários contra os patrões e o governo. Do mesmo modo (e em consequência disso) a organização de um partido socialdemocrata revolucionário deve ser, inevitavelmente, de um gênero distinto da organização dos operários para a luta econômica. A organização dos operários deve ser, em primeiro lugar, sindical; em segundo lugar, deve ser a mais extensa possível; em terceiro lugar, a menos clandestina possível (e nesse ponto, e no que se segue, é claro que me refiro exclusivamente à Rússia autocrática). Ao contrário, a organização dos revolucionários deve englobar, antes de mais nada, e sobretudo àqueles cuja profissão seja a atividade revolucionária (por isso falo de uma organização de revolucionários, tendo em conta os socialdemocratas). (...) Essa organização, necessariamente, não deve ser muito extensa e é preciso que seja a mais clandestina possível (Tomo 1, p. 210-211).
E continuava, justificando detalhadamente essa concepção de partido, e principalmente mostrando sua necessidade e salientando a grande diferença da Rússia em relação aos “países que gozam de liberdade política”.
A luta contra os “economicistas” foi muito acirrada no II Congresso do Partido Operário Socialdemocrata Russo (POSDR) como era chamado o partido dos revolucionários russos antes da Revolução. O primeiro congresso realizara-se em março de 1898, em Minsk, com nove delegados presentes. Lênin ainda estava em seu exílio na Sibéria. O II Congresso do POSDR ocorreu em 1903, com 43 delegados. Iniciou-se em Bruxelas, mas a repressão belga obrigou a que os congressistas terminassem seus trabalhos em Londres. Lênin foi o redator do Programa e dos Estatutos do partido que chamava “de novo tipo”. Os partidários de Martov defendiam não serem necessárias maiores exigências para a filiação ao partido, enquanto os de Lênin exigiam que os filiados contribuíssem financeiramente para sua manutenção e participassem de uma organização partidária. Depois de muitas discussões e votações, as posições de Lênin foram aprovadas e a partir daí seus partidários passaram a ser chamados “bolcheviques” e os de Martov “mencheviques” (bolche quer dizer grande, mais e menche pequeno, menos, aqui no sentido de maioria e minoria).
O programa traçado nesse momento para as tarefas da revolução era um programa que propunha palavras de ordem da revolução burguesa – “substituição da Monarquia czarista por uma República democrática; liberdade total de consciência, palavra e reunião, sufrágio universal e secreto para todos” (BOLSONELLO: 2000:44) etc. Apesar do entendimento de estarem na ordem do dia tarefas de uma revolução burguesa, Lênin teve a clareza de ver que, para cumpri-las, seria preciso a organização de um partido revolucionário e da união da classe operária ao campesinato. Somente o proletariado seria capaz de realizar as tarefas de uma revolução burguesa. Reconhecendo a necessidade do cumprimento destas tarefas, não as via como uma etapa separada da revolução socialista. Era preciso que o proletariado cumprisse esta etapa para seguir adiante, rumo ao socialismo. Essas ideias foram desenvolvidas em Duas táticas da social democracia na revolução russa, escrito em 1905.
Em 1904 escreveu Um passo adiante, dois atrás (uma crise em nosso partido), como preparação para o III Congresso do Partido Operário Socialdemocrata Russo (POSDR), do qual os mencheviques não quiseram participar. Mais uma vez Lênin mostrou a importância da organização operária para a revolução:
O proletariado não dispõe, em sua luta pelo poder, de outra arma que não seja a organização. O proletariado, desunido pelo império da anárquica concorrência dentro do mundo burguês, esmagado pelos trabalhos forçados a serviço do capital (...), só pode tornar-se – e inevitavelmente se tornará – uma força invencível, sempre e quando sua união ideológica por meio dos princípios do marxismo seja afiançada pela unidade material da organização que coesiona milhares de trabalhadores no exército da classe operária (IDEM, p. 465).
Notável definição da práxis revolucionária
As rebeliões populares que se seguiram ao massacre do “domingo sangrento”, em 1905, foram derrotadas e seguiu-se a elas uma bárbara repressão. Os anos seguintes, até 1912, foram de aparente calmaria e Lênin, no exílio, aprofundou seus estudos teóricos, ao mesmo tempo em que acompanhava a situação política na Rússia e enviava diretrizes para o país. Nesse período desenvolveu estudos de Filosofia e Economia política, escrevendo em alemão, em 1916, O imperialismo, fase superior do capitalismo.
Às vésperas da Primeira Guerra Mundial o movimento operário voltou a manifestar-se e desenvolveu-se no país uma situação revolucionária. Lênin não tardou em dar a diretiva de transformação da guerra imperialista em guerra civil revolucionária. Ao mesmo tempo, combateu a atitude pusilânime dos líderes da II Internacional e de muitos partidos socialdemocratas que deram apoio às burguesias belicosas de seus respectivos países, dando início à grande separação histórica entre reformistas e revolucionários.
As teses de abril
Em fevereiro de 1917 uma revolução popular derrubou o czarismo. Desde janeiro, aniversário do Domingo Sangrento, o povo voltara às ruas e o partido bolchevique saíra da clandestinidade a que se vira submetido. O czar foi obrigado a abdicar. Organizaram-se sovietes de operário e soldados por toda a Rússia, mas o poder da nova República ficou nas mãos da burguesia, tanto liberal quanto conservadora.
Em abril Lênin retornou a Petrogrado e apresentou As tarefas do proletariado na presente revolução, as famosas Teses de abril. Nelas, Lênin resume as tarefas primordiais do momento. Em primeiro lugar contra a guerra imperialista, pela confraternização no front e pela paz; em segundo lugar, era preciso dar continuidade à revolução de fevereiro, transformando-a em socialista. “Isso exige de nós habilidade para nos adaptarmos às circunstâncias especiais do trabalho do partido entre as massas inusitadamente amplas do proletariado, que acabam de despertar para a vida política”. Como terceiro ponto Lênin levantou uma questão bastante atual. Alertava para que não se fizessem ilusões com o Governo Provisório que não deveria ser apoiado; era preciso “desmascarar este governo, que é um governo de capitalistas, e não propor a inadmissível e ilusória ‘exigência’ de que deixe de ser imperialista”. Na quarta tese Lênin diz ser necessário reconhecer que os bolcheviques eram ainda minoria nos sovietes e que, enquanto isso ocorresse, o único possível era explicar aos membros dos sovietes no que estavam errados e tentar convencê-los da justeza das posições bolcheviques. Um trabalho de crítica e esclarecimento. Quer dizer, enquanto não conquistassem a maioria numérica e a hegemonia nos sovietes, nada mais poderiam fazer do que lutar por suas ideias – nenhuma diretiva de tomada do poder por cima das massas. Quinta tese – era necessário lutar por uma República de Sovietes e não por uma República parlamentar. Voltar a ela depois dos sovietes seria um retrocesso. Em sexto lugar, sobre o programa agrário: organizar os sovietes de camponeses e lutar pelo confisco das terras dos latifundiários. Sétima tese: Fusão imediata de todos os bancos do país num banco nacional único, sob o controle dos sovietes. Oitava tese: embora a “implantação” do socialismo não fosse uma tarefa imediata, dever-se-ia passar imediatamente ao controle da produção e da distribuição social pelos sovietes de deputados operários. A nona tese era sobre as tarefas do partido: convocação de um congresso para discutir sobre o imperialismo, a guerra imperialista e a posição em relação ao Estado – a reivindicação bolchevique de um “Estado Comuna”. Dever-se-ia rediscutir o Programa do partido, que se tornara antiquado. Finalmente, a décima tese era sobre a renovação da Internacional. Depois da traição dos líderes da II Internacional, por ocasião da Grande Guerra, era indispensável organizar uma nova internacional- comunista (LÊNIN: 1961, T.2:36).
Impressiona acompanhar a acuidade de Lênin sobre a situação política da Rússia e as tarefas do partido, situação de grandes e rápidas transformações que exigiam uma resposta política adequada. Hoje, sabendo-se dos acontecimentos, parece fácil que Lênin tivesse quase que previsto os acontecimentos. No entanto, essa análise da situação política do momento foi possível a partir da teoria revolucionária que estudou a fundo e dominava, além de um profundo talento: a política como ciência e arte, arte somente possível através do conhecimento. Este outro grande legado atual de Lênin.
O período que se seguiu até a Revolução Socialista foi de incrível riqueza política. O governo provisório, sentindo-se mais seguro no poder, virou-se contra os operários e contra os bolcheviques, que foram colocados fora da lei, mostrando quanta razão tinha Lênin de alertar para que não se confiasse no Governo.
Em agosto, o golpe do general ultrarreacionário Lavr Georgievitch Kornilov obrigou o governo a apelar aos operários que quisera desarmar – e aos bolcheviques. Nesse momento, o Exército já se desintegrava no front a as deserções contavam-se aos milhões. Com sua política acertada, mais um exemplo da política como ciência e arte, Lênin e os bolcheviques identificaram corretamente o sentido comum das massas, traduzindo as teses intelectuais de abril numa linguagem popular: Paz, Terra e Pão. Com isso conseguiram a maioria nos sovietes e entre oficiais e praças do Exército.
Ao contrário do apregoado, por ignorância ou má fé, pelos inimigos do socialismo, a Revolução Socialista de Outubro de 1917 (7 de novembro pelo novo calendário) foi absolutamente pacífica. Os sovietes assumiram o poder sem resistência. “Às 7:25 da noite de 7 de novembro, telegrafava o correspondente da Reuter: ‘Até o momento registraram-se apenas duas baixas’. Na revolução de fevereiro houve 1.400 mortos e feridos!” (HILL:1967:98).
A capacidade de trabalho de Lênin e sua preocupação com a teoria revolucionária eram impressionantes. Em meio a toda efervescência política, escreveu, em agosto-setembro de 1917, a maior parte de seu livro O Estado e a Revolução, em que expõe a teoria do Estado e o papel dos sovietes na revolução.
Pela primeira vez na história do mundo ocorria uma revolução socialista e se colocava a questão do Estado. Lênin estava de acordo com Marx de que o Estado é a repressão organizada contra uma classe. A tarefa agora, da classe operária recém-chegada ao poder, seria a de destruir o Estado capitalista e criar um Estado operário de transição ao socialismo que desmantelasse o Estado burguês, cujo mecanismo deveria ser varrido da face da terra e criar um novo tipo de Estado de transição: a ditadura do proletariado. Lênin chegara a tal conclusão estudando a experiência da Comuna de Paris e as opiniões de Marx sobre ela. A ditadura do proletariado, dizia Lênin, era “a organização da vanguarda dos oprimidos em classe dominante, para esmagar os opressores” (LÊNIN: 1961: T2:364). Seria uma situação transitória:
A ditadura do proletariado, o período de transição ao comunismo, trará, pela primeira vez, a democracia para o povo, para a maioria, a par com a necessária repressão da minoria, dos exploradores. Só o comunismo poderá proporcionar uma democracia verdadeiramente completa; e quanto mais completa seja (a ditadura do proletariado – MV) deixará de ser necessária e se extinguirá por si mesma (IDEM).
Novas tarefas estavam colocadas diante dos revolucionários e Lênin teve que realizá-las dentro das condições concretas que se apresentavam. Cumpriu todo o programa proposto antes da revolução. Seu primeiro decreto foi o da paz, que pelo tratado de Brest-Litovsk (março de 1918) custou muito ao Estado soviético. Foi preciso fazer muitas concessões para assegurar a revolução, esperando que o território perdido acabasse por ser reconquistado – o que ocorreu. As terras foram distribuídas aos camponeses como propriedade (não nacionalizadas) e as indústrias nacionalizadas, sendo que a capital foi transferida de Petrogrado para Moscou.
Se a tomada do poder foi pacífica, logo em seguida ao final da guerra 14 países se uniram numa entente para atacar a jovem República Soviética, dando início a uma guerra civil e obrigando ao chamado comunismo de guerra – requisição de alimento aos camponeses – para sustentar os combatentes. A guerra civil matou milhões de pessoas, principalmente uma importante vanguarda bolchevique.
No final da guerra civil, em 1921, o país estava devastado. Lênin propôs – e foi adotada – uma Nova Política Econômica (a NEP). Seria preciso dar um passo atrás para manter a revolução. A política do comunismo de guerra foi substituída por imposto em espécie e pela permissão do comércio privado, o que fez aumentar a oferta de alimentos e deu novo fôlego à aliança operário-camponesa e à reconstrução do país.
Mais uma vez, antes de adotar medidas que pareciam confrontar o socialismo, Lênin preparou uma exposição para defendê-las, escrevendo, em 1920, O Esquerdismo, doença infantil do comunismo.
A 30 de agosto de 1918 Lênin sofreu um atentado que quase o matou. Foram dois tiros que o atingiram, um dos quais perfurou-lhe um pulmão, enfraquecendo muito seu organismo já bastante debilitado pelas dificuldades materiais por que passava e pelo intenso trabalho que desenvolvia. Em maio de 1922, Lênin sofreu um primeiro derrame, do qual conseguiu se recuperar. Em dezembro, outro derrame abalou decisivamente sua precária saúde e um terceiro, a 21 de janeiro de 1924, matou-o. Lênin conseguiu interpretar seu mundo corretamente e, a partir disso, transformá-lo. Esse seu maior legado: a partir de uma teoria revolucionária interpretar a realidade concreta e a partir daí mudá-la revolucionariamente.
Em março de 1919, por iniciativa sua e com ativa participação de Leon Trotski, foi criada a III Internacional, a Internacional Comunista. Em seu IV Congresso, em novembro de 1922 – o último de que participou –, Lênin terminou seu discurso falando da importância de se estudar, estudar sempre. Dirigindo-se aos delegados estrangeiros, alertou-os sobre a necessidade de entender a situação russa em que se deu e se desenvolvia a revolução e não “colocá-la num canto e rezar diante dela” (LÊNIN: 1961: T.2:746).
Depois da morte de Lênin seguiu-se o período do chamado stalinismo, que também precisa de uma análise histórica para ser entendido. De qualquer forma, foi um período de abastardamento do marxismo e de destruição física dos quadros partidários bolcheviques que fizeram a Revolução. Trata-se de um outro assunto e o objetivo aqui é ressaltar o legado de Lênin. Como escreveu Michael Löwy: “O capítulo ‘stalinismo’ está se fechando. Já era tempo. Isso cria a possibilidade – não para as próximas semanas, mas para o século XXI – de agrupar novamente gerações de revolucionários ao redor da bandeira vermelha de Outubro de 1917 – não como modelo único, mas como herança preciosa e insubstituível da tradição dos oprimidos. Isso não é uma certeza, mas uma possibilidade histórica, uma chance que nos é dada. A nós cabe apanhá-la” (LÖWY: 2000:159).
*Marly de A. G. Vianna é historiadora, doutora em História Social pela Universidade de São Paulo (1990). Professora aposentada pela Universidade Federal de São Carlos, atualmente é professora de pós-graduação da Universidade Salgado de Oliveira. É membro e colaboradora do IAP - Instituto Astrojildo Pereira; do NEE - Núcleo de Estudos Estratégicos da UNICAMP/Campinas; líder do Grupo de Pesquisa Discurso, representações e práticas sociais, da UNIVERSO
Bibliografia consultada
BOLSANELLO, Elio. Lênin, biografia ilustrada. Rio de Janeiro: Inverta, 2000.
COUTINHO, Ronaldo, “Lênin: a dimensão teórica e prática do compromisso político revolucionário”. Introdução ao livro Esquerdismo: doença infantil do comunismo. São Paulo: Expressão Popular, 2014.
HILL, Christopher, Lênin e a Revolução Russa. Rio de Janeiro: Zahar, 1967.
LÊNIN, Vladimir Ilitch. A que herencia renunciamos- In: Obras Escogidas, Tomo 1, Moscou: Progresso, 1961. Tradução para o espanhol do Instituto de Marxismo-leninismo do CC do PCUS.
____________. Que hacer- In: Obras Escogidas, Tomo 1, Moscou: Progresso, 1961. Tradução para o espanhol do Instituto de Marxismo-leninismo do CC do PCUS.
____________. Un paso adelante, dos pasos atrás (una crisis em nuestro partido). In: Obras Escogidas, Tomo 1, Moscou: Progresso, 1961. Tradução para o espanhol do Instituto de Marxismo-leninismo do CC do PCUS.
____________. Dos tácticas de la socialdemocracia en la revolución democrática. In: Obras Escogidas, Tomo 1, Moscou: Progresso, 1961. Tradução para o espanhol do Instituto de Marxismo-leninismo do CC do PCUS.
____________. Las tareas del proletariado en nuestra revolución. (Tesis de Abril). In: Obras Escogidas, Tomo 2, Moscou: Progresso, 1961. Tradução para o espanhol do Instituto de Marxismo-leninismo do CC do PCUS.
____________. O Estado e a Revolução. In: Obras Escogidas, Tomo 2, Moscou: Progresso, 1961. Tradução para o espanhol do Instituto de Marxismo-leninismo do CC do PCUS.
____________. La enfermidad infantil del “izquierdismo en El comunismo. In: Obras Escogidas, Tomo 3, Moscou: Progresso, 1961. Tradução para o espanhol do Instituto de Marxismo-leninismo do CC do PCUS.
____________. IV Congresso de la Internacional Comunista, de 13 de noviembre de 1922. In: Obras Escogidas, Tomo 3, Moscou: Progresso, 1961. Tradução para o espanhol do Instituto de Marxismo-leninismo do CC do PCUS.
LÈNINE, V. Sur da démocratie socialiste. Moscou: Agence de press Novosti, 1978.
LÖWY, Michael & BENSAID, Daniel. Marxismo, modernidade, utopia. Tradução de Alessandra Ceregatti, Elisabete Burigo e João Machado. São Paulo: Xamã, 2000.