História
Edição 136 > Pequena história de um século da Grande Revolução de Outubro
Pequena história de um século da Grande Revolução de Outubro
Princípios publica nesta edição o terceiro artigo da série de textos sobre a Revolução Russa, que completará 100 anos em 2017. Escrita pelo jornalista Bernardo Joffily, a série de textos procura contribuir com o debate sobre o significado e as lições deste que foi um dos principais acontecimentos da história contemporânea. No artigo desta edição, Joffily relata o triunfo do movimento revolucionário com a tomada do Palácio de Inverno e as primeiras medidas revolucionárias da Rússia bolchevique

Ao assumir a direção dos poderosos Sovietes de Petrogrado e Moscou, e de um enxame de organizações soviéticas nas províncias, o Partido Bolchevique passou a preparar a tomada revolucionária do poder. A decisão, do Comitê Central do Partido, foi tomada em 28 de setembro (10 de outubro). “A maioria do povo está conosco”, avaliou Lênin, que deixou o refúgio clandestino na Finlândia para assumir o comando da ofensiva, e auscultava cada pulsar do estado de espírito das classes trabalhadoras. “A insurreição armada é inevitável e se acha plenamente madura”, concluía. Os bolcheviques tinham logrado traduzir todos os compêndios da teoria marxista e análises da realidade russa em três palavras que sintetizavam as aspirações mais sentidas das massas: “Paz, Pão e Terra”.
Últimos preparativos – “Dez dias que abalaram o mundo”
O Partido enviou dirigentes às províncias para preparar a insurreição. O Soviete de Petrogrado criou um “Comitê Militar Revolucionário”, destinado a cumprir o papel de Estado-Maior do levante.
A principal força revolucionária era a classe operária, concentrada em Petrogrado e Moscou, que rapidamente abandonava os mencheviques e se alinhava com os bolcheviques. Secundava-a uma massiva sublevação camponesa nas províncias. E a massa de soldados, da armada recrutada pelo czar para morrer nas trincheiras da Grande Guerra, também aderia rapidamente à proposta bolchevique, inclusive o grosso da tropa acantonada em Petrogrado. Os Sovietes de Deputados Operários, Camponeses e Soldados eram a forma de organização revolucionária.
O QG bolchevique era o Instituto Smolny, antiga escola feminina para filhas da nobreza czarista, um elegante palácio neoclássico cercado por jardins, no centro histórico de Petrogrado, que a revolução convertera em sede do Comitê Central do Partido Bolchevique. Naqueles dias agitados, Lênin morou no Smolny.
O lado contrário também tratou de se preparar para o confronto que todos julgavam inelutável. A oficialidade do exército, desconfiada de que sua tropa estava infestada pelo bolchevismo, criou 43 unidades de combate formadas apenas por oficiais, por meio da “Liga dos Oficiais”. O governo provisório de Kerensky tirou tropas do front da guerra para reforçar suas posições na capital, enquanto examinava a conveniência de retirar-se para Moscou.
O centro nervoso da contrarrevolução ficava no Palácio de Inverno. O gigantesco edifício em estilo rococó, à margem do Rio Neva, possuía 1.500 aposentos e 117 escadas, tendo como anexo o imenso museu de arte do Hermitage, e no subsolo a maior e melhor adega de vinhos do mundo. Ainda no início do ano servia – há quase dois séculos – como residência oficial dos czares. Depois de Fevereiro, passara a ser usado como sede do Governo Provisório.
A todo momento, patrulhas da “Guarda Vermelha” revolucionária, ou da “Liga dos Oficiais” contrarrevolucionária, cruzavam as amplas avenidas de Petrogrado em automóveis. Esse ambiente febril é retratado com maestria em Dez dias que abalaram o mundo (1920), obra de uma testemunha ocular, o jornalista norte-americano John Reed (1887-1920), que se tornou um clássico do livro-reportagem: apaixonadamente engajado sem perder a ternura, realismo, argúcia e honestidade.
A tomada do Palácio de Inverno
Em 24 de outubro (6 de novembro), o diário bolchevique Rabochi Put (O Caminho Operário, que substituía o Pravda, proibido pelas autoridades) estampou um chamamento à derrubada do Governo Provisório. Este enviou carros blindados à oficina do jornal, mas guardas vermelhos e soldados revolucionários os expulsaram. Durante a noite, outros destacamentos revolucionários reforçaram a guarda do Smolny, tomaram as estações ferroviárias, as centrais de correios e telégrafos, os ministérios e o Banco do Estado.
O papel de estopim oficial da Terceira Revolução – após a de 1905 e a de Fevereiro – coube à guarnição do Cruzador Aurora, um bastião bolchevique, sob controle de um comitê revolucionário e de um comandante eleito pela marujada, Aleksandr Belyshev, um operário têxtil convocado pela Marinha, 24 anos. Após deslocar-se pelo rio até defronte ao Palácio de Inverno, o Aurora fez, às 21h45 de 25 de outubro (7 de novembro), os disparos de seu canhão de proa (de 152 mm) contra o Palácio, assinalando simbolicamente o início da insurreição. Em seguida, operários, soldados e marinheiros de Kronstadt investiram contra o edifício por terra. Eisenstein reproduziu o ataque em outro filme clássico, Outubro (1927).
A Tomada do Palácio de Inverno encontrou certa resistência mas foi rápida: às 2h10 da madrugada seguinte, os revolucionários controlavam todo o prédio. Os ministros do Governo Provisório foram presos, enquanto Kerensky logrou fugir, vestido de freira, conforme uma versão que ele negou até a morte no exílio. Em Moscou os combates de rua se prolongaram por seis dias, de 28 de outubro a 2 de novembro (10 a 15 de novembro). Até fevereiro a Revolução triunfou em toda a Rússia, ao custo de em torno de 2 mil mortes, entre militares e civis.
Muito já se escreveu, de ambos os lados, sobre as causas de uma vitória tão rápida e incruenta – em termos relativos – de uma transformação político-social das proporções históricas da Revolução de Outubro. A partir da obra de Lênin, pode-se destacar, entre outros motivos, que: 1) A Revolução enfrentou um adversário relativamente débil, a burguesia russa, recém-chegada ao poder após a derrubada do czar, mal organizada, economicamente frágil, inexperiente em política, covarde a ponto de não ousar diferenciar-se do czarismo em questões tão decisivas como a da guerra. 2) Teve à frente uma classe revolucionária como a classe operária da Rússia, temperada por duas revoluções anteriores e com prestígio entre o povo. 3) Possuiu um aliado de massas também com experiência revolucionária recente como o campesinato russo, os camponeses pobres e por fim também os médios, ansiosos por se libertarem do fardo da guerra. 4) Contou com a direção de uma organização como o Partido Bolchevique de Lênin, escolado no combate ao oportunismo, consciente, disciplinado, fiel à revolução, mas também capaz de se fundir com as massas trabalhadoras, aplicando uma linha política justa, na estratégia e na tática.
As primeiras medidas revolucionárias da Rússia bolchevique
Ainda se combatia no Palácio de Inverno, na noite da Revolução, quando se abriu no Smolni o 2º Congresso dos Sovietes de Toda a Rússia. Os 390 delegados bolcheviques formavam uma confortável maioria (60% do total; no 1º Congresso, apenas quatro meses antes, a bancada bolchevique não passava de 13%). E ainda tinham como aliados os social-revolucionários de esquerda (cerca de 100 delegados), que também apoiaram a insurreição. Os mencheviques (72 delegados) e social-revolucionários de direita (cerca de 60 delegados) abandonaram o Salão da Assembleia do Smolni em protesto.
O 2º Congresso dos Sovietes aprovou o Decreto sobre a Paz, propondo um armistício imediato entre os países beligerantes. E o Decreto sobre a Terra, declarando “imediatamente abolida, sem nenhum gênero de indenização, a propriedade dos latifundiários sobre a terra”. No decisivo terreno da política, o Congresso consagrou a vitória da Revolução: assumiu “todo o poder” e indicou Lênin para chefiar o primeiro governo soviético.
Não era uma mera mudança governamental. Era um novo tipo de poder estatal que nascia, o Estado socialista soviético, sem precedentes na história, exceto a heroica, porém efêmera, experiência dos 72 dias da Comuna de Paris em 1871. Lênin o definia assim: “O regime soviético significa o máximo de democracia para os operários e os camponeses e, ao mesmo tempo, a ruptura com a democracia burguesa e o aparecimento de um novo tipo de democracia de importância histórica mundial: a democracia proletária ou ditadura do proletariado” (O esquerdismo, http://www.vermelho.org.br/biblioteca.php-pagina=doenca.htm).
Graças a esta natureza o recém-nascido Estado dos Sovietes varreu as teias de aranha medievais da velha Rússia com decisão, rapidez, audácia, amplitude e profundidade... e êxito. Os partidos que compunham o Governo Provisório – social-revolucionários, mencheviques e cadetes – em dez meses não haviam se atrevido sequer a abolir formalmente a monarquia czarista. O poder dos Sovietes em dez semanas proclamou a República, mudou a capital para Moscou, extirpou até os menores restos da servidão feudal-latifundiária, garantiu a mais ampla liberdade e a plena igualdade de direitos para todas as nacionalidades do ex-império, assim como a igualdade de direitos para as mulheres – a Rússia bolchevique foi a primeira grande nação a estabelecer o voto feminino, precedida apenas por Nova Zelândia, Austrália e alguns dos países escandinavos.
Ao lado destas medidas, de caráter democrático-burguês, embora radical, o novo poder lançou as bases do novo sistema, socialista. Foram nacionalizados os bancos, as estradas de ferro, o comércio exterior, a marinha mercante e toda a grande indústria
A dissolução da Assembleia Constituinte
Em 6 (19) de janeiro de 1918 Lênin, enquanto chefe do governo soviético, ordenou a dissolução da Assembleia Constituinte de toda a Rússia, convocada pelo Governo Provisório. O Partido Bolchevique apoiara a convocação e participara da eleição dos deputados, considerando que esta teve extraordinário valor educativo para os trabalhadores.
No entanto, enquanto o processo eleitoral se atrasava e se arrastava, deu-se nada menos que a Revolução de Outubro. E, na visão bolchevique, uma república burguesa com Constituinte era preferível à mesma república sem Constituinte, mas que uma república operário-camponesa, soviética, seria melhor que qualquer república democrático-burguesa.
A eleição transcorrera fundamentalmente antes da Revolução. Nas urnas o Partido Bolchevique ainda figurava como a segunda força, embora com uma respeitável bancada de um quarto dos 703 deputados. A maior bancada era a dos social-revolucionários, que tinham pouco mais da metade das cadeiras – ainda que a eleição não refletisse a cisão entre SR de direita e SR de esquerda, estes últimos aliados dos bolcheviques e participantes da Revolução.
A Assembleia reuniu-se uma única vez, em 5 (18) de janeiro. Esta única sessão elegeu como seu presidente o líder social-revolucionário de direita Victor Chernov, vencendo a SR de esquerda Maria Spiridonova. E recusou-se a acatar as decisões do Congresso dos Sovietes sobre o novo poder nascido da Revolução, a paz e a terra. Ao se divorciar do poder soviético, a Constituinte condenava-se inapelavelmente à morte política. Dito e feito: Lênin dissolveu-a 13 horas após sua instalação.
A dissolução provocou uma onda de críticas sobre os supostos instintos antidemocráticos que norteariam os bolcheviques. O líder socialdemocrata alemão Karl Kautsky disparou contra ela no panfleto A ditadura do proletariado. Lênin contestou-o em A revolução proletária e o renegado Kautsky (1919), numa apaixonada e indignada defesa da linha bolchevique à luz do marxismo revolucionário:
“Kautsky adopta na questão da Assembleia Constituinte um ponto de vista formal. Nas minhas teses disse claramente e repeti muitas vezes que os interesses da revolução estão acima dos direitos formais da Assembleia Constituinte. O ponto de vista democrático formal é precisamente o ponto de vista do democrata burguês, que não reconhece que os interesses do proletariado e da luta proletária de classe são superiores. Como historiador, Kautsky não poderia deixar de reconhecer que os parlamentos burgueses são órgãos duma ou doutra classe. Mas agora (para o sujo objetivo de renunciar à revolução), Kautsky precisou esquecer o marxismo, e Kautsky não coloca a questão de saber de que classe era órgão a Assembleia Constituinte na Rússia.” (https://www.marxists.org/portugues/lenin/1918/renegado/cap05.htm)
A Paz de Brest-Litovsk
Nos primeiros dias de 1918, restava ainda por resolver a questão de tirar a Rússia da Grande Guerra. Não era um problema qualquer: era a pedra de toque, a questão de vida ou morte para milhões de camponeses, a promessa que decidira, em primeiro lugar, o povo russo em favor da Revolução.
Assim que assumiu, o governo soviético propôs “a todos os países beligerantes e seus governos entabular negociações imediatas para uma paz justa e democrática”, mas os “aliados”, Inglaterra e França, discordaram. A Rússia decidiu então negociar a paz em separado com a Alemanha e a Áustria. As negociações começaram a 3 de dezembro, na Fortaleza de Brest-Litovsk (nos arredores da cidade bielo-russa de Brest, na parte do ex-império russo ocupada pela Alemanha). Trotsky, comissário do povo (cargo equiparável ao de ministro) de Relações Exteriores, assumiu pouco depois a chefia da delegação soviética.
Em dois dias chegou-se a um cessar-fogo. As condições da Alemanha para fazer a paz definitiva, porém, eram duríssimas: incluíam a passagem da Polônia, da Ucrânia e dos Países Bálticos para a esfera germânica. Lênin, já em janeiro, defendia que fossem aceitas as imposições, ainda que bandidescas. Trotsky, porém, relutava e em 10 de fevereiro interrompeu as conversações. Dia 18 a Alemanha rompeu a trégua e arremeteu na direção de Petrogrado.
Os frangalhos do velho exército czarista logo se mostraram incapazes de conter o bem armado avanço alemão. No entanto, ao grito de “A Pátria Socialista em perigo!”, a Rússia revolucionária formou novas unidades militares, com voluntários, que conseguiram rechaçar a arremetida germânica em Narva, a apenas 150 quilômetros de Petrogrado, a 23 de fevereiro. Esta data assinala o nascimento do Exército Vermelho, força armada regular do poder soviético, que substituiu a Guarda Vermelha.
No mesmo dia, porém, a posição de Lênin se impôs no Comitê Central Bolchevique – vencendo em um robusto debate a oposição de Bukharin e a relutância de Trotsky – e a Rússia anunciou que aceitava a proposta alemã. Em 3 de maço foi assinado o Tratado de Brest-Litovsk. Três dias mais tarde o 7º Congresso do Partido Bolchevique – o primeiro após a tomada do poder – analisou a paz em separado.
Lênin nunca ocultou que aquela era “uma paz desgraçada” — como dizia o título de um artigo seu publicado no dia seguinte ao 7º Congresso. Era um altíssimo preço para honrar a promessa de tirar a Rússia da guerra. Porém Lênin defendia a “paz desgraçada” usando uma parábola como argumento:
“Imagine que o automóvel em que você está é assaltado por bandidos armados. Você lhes dá o dinheiro, a carteira, o revólver e o carro; mas, em troca, escapa. Trata-se, evidentemente, de um compromisso. Do ut des (‘dou’ meu dinheiro, minhas armas e meu automóvel, ‘para que me dês’ a chance de seguir em paz). Dificilmente, porém, se encontraria um homem sensato capaz de declarar que esse compromisso é “inadmissível do ponto de vista dos princípios”, ou de denunciar quem o assumiu como cúmplice dos bandidos. Nosso compromisso com os bandidos do imperialismo alemão foi semelhante.” (O esquerdismo).
A paz, porém, ainda tardaria. Antes mesmo de conseguir libertar-se da Grande Guerra, a Rússia soviética mergulharia por mais quatro anos na igualmente mortífera Guerra Civil.
* Bernardo Joffily é jornalista, tradutor, colaborador de Princípios e autor do Atlas Histórico IstoÉ Brasil 500 anos