Cultura
Edição 135 > Picasso e a modernidade espanhola no CCBB-SP
Picasso e a modernidade espanhola no CCBB-SP
Cerca de 90 obras do artista espanhol estão expostas no Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB) em São Paulo

A exposição mostrará um pouco do caminho de Picasso como artista, até chegar à realização de Guernica, e à sua relação com outros artistas da arte moderna espanhola, como Gris, Miró, Dalí, Domínguez e Tàpies, entre outros presentes na mostra. Mas os holofotes principais dela focarão especialmente as obras de um dos grandes mestres da arte do século XX, Pablo Picasso.
Essa exposição foi organizada e realizada em colaboração com o Museo Nacional Centro de Arte Reina Sofía e a Fundación Mapfre. Ela foi realizada anteriormente na Fondazione Palazzo Strozzi, em Florença, Itália, até o mês de janeiro deste ano. Depois de São Paulo, ela seguirá para o Rio de Janeiro - também no CCBB -, e poderá ser visitada entre 24 de junho e 7 de setembro. Ao todo, serão apresentados 90 trabalhos - metade deles de autoria do mestre cubista. Entre os quadros de Picasso que integram a mostra, estão Cabeça de Mulher (1910), Busto e Paleta (1925), Retrato de Dora Maar (1939) e O Pintor e a Modelo (1963).
A arte moderna espanhola mostra a sensibilidade artística dos espanhóis e sua forma especial de ver o mundo, como resquícios de uma visão barroca que vem de muito longe. Isto também encontramos no cinema de Luiz Buñuel e Pedro Almodóvar. Qualquer um de nós que tenha tido acesso às criações artísticas espanholas consegue identificar uma linha que unifica desde Velázquez ao próprio Almodóvar, e de Francisco Goya a Picasso.
É uma maneira de fazer arte como expressão que beira o drama, nunca se identificando com o que seria uma visão mais lógica e racional. Não existem medidas lineares na alma espanhola. O próprio Velázquez não obedecia a regras vindas -de fora- e se concentrou em seu próprio jeito de pintar, com pinceladas certeiras e livres. Pintava o rei Felipe, mas também os aleijados, os deformados da Corte. Mesmo as tentativas cubistas de Picasso tinham uma razão de ser que vinham do fundo de um artista muito bem informado sobre seu mundo: estraçalhado por uma Europa em frangalhos que em menos de 30 anos passou por duas guerras sanguinolentas. Picasso atravessou diversas circunstâncias históricas, socioeconômicas e políticas que o faziam se redefinir gradualmente como artista.
Naquele período a relação com a realidade era difícil: homens matando homens, milhões morrendo na guerra, de fome por causa da guerra, de doenças por causa da guerra. As vidas de todos reviradas. Na Espanha, para piorar, o fascismo de Francisco Franco criou um mundo de terror para os espanhóis, milhares dos quais tiveram de fugir de seu país para não morrer, de morte matada ou de fome. Muitos vieram para o Brasil.
Na minha última viagem à Madri, em 2013, voltei no avião ao lado de uma senhora espanhola que beirava os 90 anos de idade. Veio conversando comigo durante as 10 horas de viagem do voo, me contando coisas dos tempos de Franco, o fascista. Entre outras coisas, ela me disse: -Era tudo uma loucura! Os vizinhos, os parentes, as pessoas que a gente conhecia começaram a nos dar medo. Você não podia usar uma correntinha de ouro no pescoço. Teu vizinho ou teu parente te roubava para comprar comida! Em casa, um pão teria que durar vários dias. Minha mãe partia um pequeno pedaço para cada filho, e muitas vezes ela mesma ficava sem o pedaço dela. Meu pai saía atrás de trabalho e não tinha. Todo mundo vivia de cabeça baixa, a gente falava pouco. O medo era geral. A gente ouvia tiros pelas ruas, andava se esgueirando nas calçadas- Meu pai foi preso duas vezes, suspeito de ser comunista.- Por isso, assim como milhares de espanhóis, ela - de quem esqueci o nome - veio morar no Brasil, para onde estava voltando das férias, para visitar umas amigas. Sozinha, e com quase 90 anos. -O Brasil é o país que tem o melhor povo do mundo-, afirmou ela.
Na exposição do CCBB, o público também poderá ver estudos e esboços que resultaram na obra prima Guernica, um painel que Picasso pintou em 1937, e que representa as atrocidades cometidas pelas ações da direita fascista e nazista durante a Guerra Civil Espanhola, que durou de 1936 a 1939. O painel, de 3,49 metros de altura por 7,76 metros de comprimento expõe os horrores causados pelos aviões da força aérea alemã nazista contra a população da pequena cidade de Guernica. Aliados do general Franco, os alemães fizeram deste ataque um treino para posteriores ações contra os aliados. Foram lançados 300 quilos de bombas contra o povo da pequena cidade dos bascos.
Em 2001, parei diante deste painel durante umas duas horas, dentro do Museu Reina Sofia, onde ele se encontra, em Madri. Minha alma chorava. Aqueles corpos despedaçados, desesperados, e aquele cavalo em agonia me mostravam um mundo em que não vivi, mas que nunca deve ser esquecido, para que esse horror não mais se repita. Mas me levava também a lembrar do horror da ditadura militar no Brasil - que vivi! - que assassinou, torturou e perseguiu centenas de pessoas como eu. Quando vi Guernica, para minha sorte, ele já não estava mais protegido por vidro blindado e eu pude vê-lo frente a frente.
Do lado esquerdo do quadro, junto com uma mãe gritando de dor com seu filho no colo, aparece a cabeça de um bovino. Seria a representação do antigo Minotauro, criatura mítica - da antiga mitologia grega -, um ser com a cabeça de um touro e o corpo de um homem, ou seja, oscilando entre o humano e o bestial. Picasso já tinha feito, no começo da década de 1930, uma série de estudos sobre a saga do minotauro, relacionando-o com as famosas Touradas do seu país. E ele acabou colocando a imagem do monstro como parte de sua representação da tragédia do povo de Guernica.
O quadro parece uma constelação de relações nem sempre apreensíveis. No meio dele, há um cavalo que relincha sobre corpos esquartejados. Picasso era comunista, o cavalo representava o povo: mesmo com a cabeça cortada, e com uma expressão de dor, mas não de derrota, o cavalo luta. Acima de sua cabeça, uma luz se acende e um braço estendido apresenta uma lamparina acesa. Por todo lado, corpos esfacelados. Mas há luz, há esperança. Esta é a grande mensagem de Picasso.
Esta exposição do CCBB, portanto, será uma boa oportunidade para ver de perto as obras deste artista espanhol, além dos outros, e, em especial, seus estudos para a Guernica. Tomara que mais uma vez 400 mil pessoas façam fila para ver uma grande exposição, como o fizeram para ver Ron Mueck. E que a arte dos espanhóis sirva para despertar reflexões sobre os momentos em que vivemos nos dias atuais: momentos -peligrosos-, em que forças bestiais subterrâneas resolveram colocar a cabeça para fora- No mundo, e no Brasil.
* Mazé Leite é artista plástica, faz parte do Ateliê Contraponto de Arte Figurativa e é membro da Fundação Maurício Grabois - Seção São Paulo.