Teoria
Edição 133 > Roland Corbisier e a abertura para um pensamento nacional autônomo
Roland Corbisier e a abertura para um pensamento nacional autônomo
Ao lembrar os cem anos de nascimento do filósofo e político Roland Cavalcanti de Albuquerque Corbisier (1914-2005) queremos homenagear a memória do intelectual singular e ativista político das grandes causas que influenciaram o Brasil e o mundo durante o século XX

A lembrança tem sempre os motivos da conservação e da renovação. Nestes tempos pelos quais passamos, a exigir sempre um constante consumo de novidades, conservar o acúmulo que adquirimos das gerações passadas, identificando o fio condutor de uma tradição à qual pertencemos, é um aspecto importante da lembrança. Mas trazer ao presente a herança ancestral também é atualizá-la à conjuntura, vivenciá-la. O sentido da lembrança é evidenciar os conteúdos vigentes e novos das palavras-conceitos legadas pela tradição. Conteúdo vivo que nos defronta com questões históricas, políticas e éticas fundamentais, que são a conquista da autonomia da comunidade nacional e a liberdade de escolher e viver seu próprio destino.
Celebrar o centenário do filósofo Roland Corbisier é solenizar as ideias que defendeu, debatendo novos rumos, dando destaque especial ao problema da relação entre a questão nacional e o pensamento filosófico.
Do integralismo ao socialismo
Nascido em uma família tradicional de São Paulo, Cavalcante de Albuquerque, por parte de mãe, e Corbisier, de origem francesa, por parte de pai, estudou nos colégios que formavam a elite católica e conservadora da época, o Colégio São Luís e o Ginásio São Bento. Cursou o nível superior na clássica Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, que era a formadora, junto com a Faculdade de Direito do Recife, da classe política e da elite burocrática da velha República, vindo a concluir o curso em 1936. Foi durante o período da faculdade que conheceu Plínio de Arruda Sampaio e passou a constituir o movimento integralista. Na época se dizia que -a verdade política é o integralismo, a filosófica o tomismo e a religiosa o catolicismo-. Mais tarde, em uma entrevista sobre sua participação no integralismo, dizia em tom autocrítico que -era um adolescente de dezessete anos, desprevenido, que nada sabia de economia, de sociologia, de política, e mormente filosofia- (CORBISIER,1976, p. 32).
Logo o jovem bacharel percebeu que essa aparente solidez da tríade aristocrática - tomismo, integralismo e catolicismo - não resistiria aos graves acontecimentos que se seguiriam no Brasil e no mundo. Em 1937 o golpe do Estado Novo jogou na ilegalidade tanto o integralismo como o Partido Comunista e, em 1939, começava a Segunda Guerra Mundial, conflito ao qual o Brasil vai aos poucos aderindo. Nesse turbilhão de acontecimentos, Corbisier abandona o tomismo filosófico e adota uma postura mais existencialista e realista. Inicia sua transição rumo ao nacionalismo popular. Rompe com o integralismo acusando Plínio Salgado de -deixar patente o estado de decrepitude e perturbação em que se encontra, constrangedor, especialmente para aqueles que, no passado, foram seus adeptos e admiradores- (CORBISIER, 1978, p.38).
Em 1949, foi um dos fundadores e também diretor do Instituto Brasileiro de Filosofia (IBF), onde ministrou cursos e aprofundou sua relação com o pensamento de Hegel. Mais tarde irá se afastar do IBF. Em 1953 ocorre uma grande mudança na sua prática política e compreensão teórica. Junto com o chamado Grupo de Itatiaia, fundou o Instituto Brasileiro de Economia, Sociologia e Política (IBESP), onde debatiam sobre a questão do petróleo e os rumos do desenvolvimento nacional. Em 1954 vai para o Rio de Janeiro e em 1955 foi criado, no lugar do IBESP, o Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB), órgão do MEC dotado de autonomia administrativa e de liberdade de pesquisa, de opinião e de cátedra, destinado ao estudo, ao ensino e à divulgação das ciências sociais. Corbisier foi escolhido para o cargo de diretor-executivo, iniciando suas atividades no momento em que Juscelino Kubitschek assumia a presidência da República (1956-1961).
Nessa época começou a formular o centro das suas reflexões acerca da questão nacional e do pensamento filosófico brasileiro. Foi a oportunidade única de realizar a conjunção entre os esforços de sistematizar e institucionalizar o conhecimento da realidade brasileira com a experiência de um desenvolvimento nacional protagonizada pelo governo JK. Os intelectuais do ISEB articularam uma visão global acerca dos entraves que propiciavam as causas da nossa dependência e formularam a ideia do estatuto colonial, que era fundamentalmente caracterizado pela condição do país de exportador da matéria-prima e pela importação da manufatura. Essa realidade brasileira era mantida essencialmente estática desde o período colonial. Sobre esse momento nos diz:
-O estatuto colonial não incluía, portanto, apenas a esfera do que se poderia chamar de econômico, mas abrangia, também, o campo do -ideológico-, uma vez que, também nesse domínio, exportávamos a imagem da nossa natureza e importávamos a ótica metropolitana, o repertório das ideias que procurava justificar, ou racionalizar, o estatuto da dependência. Não nos víamos com nossos próprios olhos, mas através de uma visão alienante, que convinha aos interesses da metrópole- (CORBISIER, 1973, p.17).
A ruptura da condição semicolonial em que se encontrava o Brasil implicava, na sua compreensão, não só o desenvolvimento econômico do nosso país, mas, ao mesmo tempo, uma -conversão do país a ele próprio-. Por isso, o esforço no sentido da construção de uma -ideologia ou teoria do desenvolvimento- nacional. O desenvolvimento do país era a obra complementar da nossa independência política, ou, dito de outra forma, o país precisava da sua independência econômica e cultural para completar sua independência política. Essa passa a ser a nova tríade indissociável - autonomia econômica, política e cultural - que constituía o centro do nacionalismo isebiano.
No ano de 1960 ele se elegeu deputado à Assembleia Legislativa e Constituinte do Estado da Guanabara. Em 1962 concorreu a deputado federal pelo PTB ficando suplente de Leonel Brizola, vindo a assumir a vaga em 1963. Com o golpe militar de 1964 a experiência do ISEB foi extinta, Corbisier teve o mandato cassado e foi afastado do cargo de professor de Filosofia no Ensino Secundário e Normal do Rio de Janeiro. Em 1965 foi preso acusado de ligação com os comunistas.
Já em liberdade, mas sofrendo os efeitos da cassação dos direitos políticos, fundou em 1967 o Centro de Estudos Brasileiros (CEB), ministrando cursos de filosofia na Associação Brasileira de Imprensa (ABI).Em 1968 publicou o livro Reforma ou Revolução. Em 1970, auge do obscurantismo ditatorial, pronunciou uma série de conferências sobre a filosofia de Hegel, comemorando o segundo centenário de nascimento do filósofo alemão, vindo a publicar nos anos seguintes uma série de artigos sobre o tema. Nesses cursos adotou a estratégia hermenêutica de realçar o realismo dialético por trás da linguagem rebuscada e obscura do filósofo alemão.Tornou-se célebre sua palestra sobre a -dialética do senhor e do escravo-, presente na Fenomenologia do espírito, como uma descrição da moderna luta de classes. Sobre esse -retorno- a Hegel dizia:
-Excluídos compulsoriamente, pelo arbítrio e pela violência, do universal concreto, quer dizer, da vida na cidade e no estado, vida que era uma síntese de pensamento e de ação, de teoria e de prática, refluímos para o universal abstrato, momento anterior, e já ultrapassado, do processo de luta em que nos achávamos engajados. O retorno, porém, digamos desde logo, não era ingênuo, mas plenamente consciente e visava apenas consolidar as posições irreversíveis em que nos encontrávamos no momento em que fomos colhidos pelo golpe de estado- (CORBISIER, 1978, p. 195).
A partir de então se dedicou à filosofia como outra face da política. Em 1974 publicou a Enciclopédia filosófica; em 1975, Filosofia política e liberdade e, em 1976, Filosofia e crítica radical. Em 1974, continuou ministrando diversos cursos na ABI, na PUC do Rio, na UFRJ e no Sindicato dos Médicos do Rio de Janeiro, que versavam sobre introdução à filosofia, introdução à lógica dialética, filosofia da história, filosofia do direito, introdução histórica do pensamento político, ideologia e cultura brasileira. Mais tarde, colocou parte destes cursos em uma série de livros intitulada Introdução à Filosofia, publicados pela Civilização Brasileira em sete volumes (o primeiro tomo, em 1983; o último, em 2002).
No início dos anos 1990, Corbisier filiou-se ao Partido Comunista do Brasil, coerente com sua transição ao socialismo, síntese política do proletariado brasileiro, do fortalecimento do país e da sua cultura nacional-popular. Em 1994 proferiu uma intervenção no seminário Rumos da Modernidade, realizado no Rio de Janeiro, e, no mesmo ano, publicou o artigo -O Estado, a ética e a política- nas páginas da revista Princípios. Corbisier faleceu em 2005 no Rio de Janeiro aos 90 anos de idade.
Filosofia no Brasil ou filosofia brasileira-
Não é de hoje que vários intelectuais dos mais diversos matizes se debruçam sobre a possibilidade de haver uma filosofia propriamente nacional ou apenas uma manifestação da filosofia universal no país. A depender de como se aborde a questão, temos os que consideram que será sempre vetada aos nossos pensadores uma contribuição original ao discurso filosófico e, no melhor dos casos, apenas reproduziremos ipsis litteris as filosofias desenvolvidas nas grandes nações da Europa e dos EUA.
Sem querer aprofundar tema tão vasto e complexo, exporemos apenas a abertura singular que Corbisier, com a evolução dos seus trabalhos, propiciou ao tema de um pensamento filosófico nacional, principalmente nas obras da maturidade do período do ISEB e pós-isebiano.
Sobre o tema há o clássico trabalho de Antônio Paim, História das ideias filosóficas no Brasil, que contém a principal exposição do núcleo de intelectuais, juristas e filósofos reunidos em torno do Instituto Brasileiro de Filosofia (IBF), fundado em 1949 por Miguel Reale, catedrático de filosofia do direito do Largo de São Francisco. Além de Paim e Reale, se filiaram ao IBF outros intelectuais da cena brasileira, como Djacir Menezes, Paulo Mercadante, Vicente Barreto, Ubiratan Borges de Macedo, Luís Washington Vita, Roque Spencer Maciel de Barros, Nélson Saldanha entre outros.
A própria definição do livro de Paim História das ideias filosóficas no Brasil já implica a compreensão do caráter universal da filosofia europeia e norte-americana, cabendo apenas catalogar os intelectuais brasileiros que absorveram, interpretaram e tentaram reproduzir, com menor ou maior adequação, esse pensamento à realidade nacional. Para ele,
-O aprofundamento do conceito de filosofia nacional requer um trabalho paciente de confronto de nossa meditação, tomando problemas restritos e momentos históricos delimitados, com a relação teórica contemporânea que tem lugar nos principais países ocidentais a que nos achamos ligados, culturalmente, de forma mais estreita- (PAIM, 1984, p.14).
Segundo Paim, o conteúdo da história cognitiva brasileira deveria recair, portanto, sobre o modo como a filosofia europeia foi recepcionada no Brasil, entendendo-se aqui, por recepção, a apropriação ativa de autores, ideias e temas do sistema cultural-intelectual do Ocidente, de uma visão de mundo cosmopolita, que representaria o universal. Por isso, um pensamento filosófico -no- Brasil e não -do- Brasil. É o que o professor Christian Lynch(2013) chama de -inserção subalterna da cultura ibero-americana-.
Sem querer caracterizar em bloco os pensadores do IBF, faço um recorte da figura do filósofo cearense Djacir Menezes (1907-1996) e o seu -culturalismo dialético- como a tentativa de apontar um caminho para o pensamento nacional através, principalmente, dos seus aspectos culturais. Em que pese a visão majoritariamente conservadora do IBF, Menezes articulou uma antologia de contribuições de pensadores nacionais acerca do próprio Brasil, chamada de O Brasil no pensamento brasileiro, onde há uma intencionalidade de reunir um conteúdo do que seria um pensamento nacional. Com esse desígnio, Menezes procura destacar a máxima: -ensinar a pensar não é adestrar para repetir- (MENESES, 2011, p.21).
O cosmopolitismo filosófico empregado por Paim e por partes do IBF vai encontrar resistências no ISEB, particularmente nas figuras dos filósofos Álvaro Vieira Pinto e Roland Corbisier. Com a publicação em 1960 do livro Consciência e realidade nacional, Vieira Pinto traz à tona não o problema da consciência na sua universalidade, mas o processo de criação de uma consciência crítica em face da realidade nacional. Tal consciência crítica emergiria da sua forma ingênua ao reconhecer os fatores que delegam ao nosso país a condição de periférico economicamente e culturalmente. Trata-se de trazer à consciência pensante a relação determinante entre a metrópole e a condição colonial.
Nesta mesma senda colocou-se Corbisier. No livro Formação e problema da cultura brasileira, de1960, ele aponta um caminho para o desenvolvimento de uma filosofia nacional. Como destaca Sérgio Castanho,
-Corbisier, na linha de Álvaro Vieira Pinto, chega a propor uma filosofia brasileira, -entendida como autoconsciência da cultura-, -como tarefa histórica de libertação e não como exercício acadêmico-, uma filosofia que traga- a revelação de nossa própria entidade, de nosso ser como destino-- (CASTANHO, 2006, p. 6-7).
Corbisier avalia em sua argumentação que, se a questão do subdesenvolvimento nacional encontra sua contraproposta prática no desenvolvimento, então o problema da superação do estatuto semicolonial implicava a confecção de um aparato teórico capaz de fazer frente a essa alienação da metrópole pensante. Mas isso não poderia ser algo formal, separado da realidade. Para ele, a cultura brasileira, entendida como -totalidade das manifestações vitais que, em seu conjunto, definem o povo brasileiro-, forneceria a matéria-prima original sobre como poderíamos descobrir nossa própria forma de pensar.
Há aqui um entendimento mais profundo sobre a amplitude do que deveríamos conceber por filosofia e pensamento nacional. A compreensão dos discursos devem sempre pressupor os aspectos históricos, sociais e políticos como elementos determinantes do modo de vida e da visão de mundo, sendo o verdadeiro chão ontológico de qualquer pensamento que se quer autônomo. Temos então um ponto chave de abertura para compreensão de um pensamento filosófico genuinamente nacional: a constatação de que o pensamento, a linguagem, as práticas, as instituições - em resumo, a nossa história - são determinados pelo nosso modo de vida, a maneira como produzimos nossa própria visão do mundo.
Relacionar a questão do discurso filosófico ao problema da liberdade e da autodeterminação da comunidade nacional não seria uma simples opção teórica, mas sim uma determinação do nosso modo de vida e de como enxergamos o mundo, isto é, uma destinação das relações do ser histórico-social. Esse tratamento sobre a maneira de pensar a filosofia no Brasil foi uma ruptura nos cenários aristocráticos até então estabelecidos acerca dessa questão.
É claro que o projeto filosófico de Corbisier não tirou todas as consequências dessa constatação, não tendo sido, portanto, plenamente finalizado. Muito pelo contrário. O que ele possibilitou, no meu entender, foi uma amplitude de abordagens sobre o assunto. A essa desobstrução de perspectivas, novos problemas serão agregados, além da necessidade de melhor fundamentar as diversas objeções que a questão levanta.
Universalismos epistêmicos versus particularidades práticas
Uma das principais objeções ao tratamento de uma filosofia nacional seria o caráter necessariamente universal da razão humana. O logos universal, argumentam, seria uma barreira intransponível para qualquer pensamento específico, não havendo, portanto, nenhum discurso local que poderia receber qualificação de filosófico. Nessa corrente de argumentação se estriba Ivan Domingues que, em recente artigo intitulado Filosofia no/do Brasil: os últimos cinquenta anos - desafios e legados(2013), expõe que o sistema filosófico brasileiro ou o que se poderia chamar de uma filosofia produzida no Brasil, estaria restrito à instauração -dos primeiros departamentos de filosofia, na esteira da fundação das primeiras universidades no século XX- (2013, p. 77). Para ele, com a reforma universitária de 1968 e a criação da CAPES, o Brasil pôde finalmente construir um -sistema filosófico erigido conforme o padrão internacional e capaz de anular e vencer o déficit histórico das lacunas e deficiências- (2013, p. 101).
Domingues defende que não haveria, portanto, filosofia stricto sensu antes das universidades cosmopolitas, pois na colônia, no império e na República Velha tínhamos apenas diletantismo, o que não pode se comparar com os sistemas europeus e norte-americanos. Sobre a produção filosófica da colônia pergunta:
-Era de esperar que, junto com o modo de produção colonial, avistássemos por toda parte o império da língua e da cultura portuguesa. Mas não foi isto que aconteceu nos dois primeiros séculos do período colonial: como língua de comunicação, em vez do português, a língua franca e geral era o nhangatu; como língua de erudição e da cultura letrada, a língua vigente nos colégios e seminários religiosos não era o português, nem o nhangatu, mas o latim. Neste quadro, se as línguas eram o nhangatu e o latim, como falar de uma filosofia brasileira ou mesmo luso-brasileira-- (DOMINGUES, 2013, p. 82).
Sobre a ideia de uma filosofia nacional argumenta:
-Mostro então que tais são os casos da ideia de filosofia nacional e das confusões que a acompanham, como o psicologismo e o naturalismo metafísico, ao se falar de espírito dos povos, do caráter das nações e dos eflúvios da natureza, como se eles irrompessem diretamente da terra ou da alma, conduzindo uns a falar de filosofia francesa, alemã e inglesa, e outros a perguntar pela filosofia argentina, mexicana ou brasileira. Ora, como a matemática e a biologia, a filosofia transcende as nações, é fruto do intelecto e está enraizada na experiência humana-(DOMINGUES, 2013, p. 89).
Essa argumentação não deixa claro como conciliar, num mesmo discurso, ciências particulares, que possuem conhecimentos de objetos formais, e naturais de uma -experiência humana- histórica e social que se pretende saber universal. Parece haver aqui uma tentativa de transpor a régua metodológica que mede o sucesso das ciências naturais e formais para o conjunto do mundo da vida.
Mais uma vez o branco da teoria não compreende o colorido da vida. Ora, uma das traduções possíveis para o termo -linguagem- no grego é logos. Isto porque subjazem a qualquer sistema linguístico, por mais simples que possa parecer, elementos do pensamento, de leis, das tradições, dos conceitos de cada povo. Por isso, a clássica definição de Aristóteles do homem como dotado de logos, de linguagem, estabelecendo sua diferença definitiva com os animais. Desde os gregos essa é, pois, a verdadeira universalidade do homem, tanto na sua relação com os outros como de acesso ao mundo natural. A linguagem possui um caráter ontológico que escapa às pretensões de um saber particular.
O próprio nhangatu, por exemplo, tem a fantástica marca do esforço de conjunção entre o classicismo ibérico, representado pelo Latim, o humanismo dos jesuítas, expresso no Português, e a realidade do novo mundo, manifestado principalmente pelo Tupi. Temos, então, uma fusão de horizontes linguísticos, cuja peculiar forma de conhecimento vai requerer um juízo com vistas a um todo que não está dado a priori, nem pensado à base de conceitos iluministas. O universal aqui está regulado pelo campo da práxis, dos costumes, do ethos. Sempre será necessária uma complementação produtiva na avaliação dos casos concretos.
Citaremos en passant o caso do padre jesuíta José de Anchieta (1534-1597). Formado na educação do renascimento, que compreendia os studiahumanitatis (1), tornou-se grande humanista, o que favoreceu em muito seu trabalho como missionário jesuíta no Brasil colonial. Em 1555 esboçou a primeira gramática da língua Tupi apreendendo a hermenêutica da nova língua. Segundo Navarro (2004, p. XXII), -conceitos cristão que não tinham correspondência em Tupi eram apresentados com palavras portuguesas ou então eram criadas outras palavras que os traduzissem-. Assim,
-Ao transpor para a língua do índio a mensagem cristã, Anchieta realizava adaptações que faziam com que ele saísse da teologia tradicional da igreja e criasse uma esfera simbólica que não era nem a do índio nem a dos europeus. Ele criava uma teologia híbrida, usando o nome de divindades indígenas para significar o Deus cristão-(NAVARRO, 2004, p. XXXI).
Ora, essa miscigenação linguística nada mais era que o resultado da fusão de práticas sociais que estavam a constituir o que seria a nação brasileira. Já está contido nas determinações linguísticas o complexo de disposições que compõem o modo de produção da vida e a visão de mundo que, longe de serem efêmeras, estão enraizadas no meio histórico e social.
Ao negar pensamento filosófico à pluralidade linguística do Brasil colônia, Domingues demonstra apenas que não consegue aplicar a filosofia universal e abstrata do iluminismo a um caso particular concreto. Essa limitação ocorre porque o caráter decisivo do logos, seu aspecto dialético, implica sempre sua pretensão de validade concreta, onde cada interpretação de um conceito universal, frente a um caso particular, colabora, através da sua exposição na realidade, para a evolução do próprio conceito geral. Não se trata de o universal se exprimir no particular, mas, antes, de reconhecer no particular os elementos do universal.
As raízes profundas desse entendimento universalista acerca do pensamento filosófico encontram-se na clássica distinção platônica dos níveis de conhecimento expostos na República. Para Platão temos, por um lado, a Doxa como uma simples opinião, particular e empírica, e, por outro, a episteme, como conhecimento da realidade das coisas através da ideia universal, pleno de certeza e evidente por si mesmo, cujo maior exemplo é a matemática. Haveria uma conjunção irrevogável entre conhecimento universal e episteme. Essa classificação do saber platônico vai ser apropriada e reinterpretada na Europa dos séculos XVI e XVII, que revigora o termo episteme, compreendido agora como -ciência-, isto é, como conhecimento que segue o moderno método científico cuja paternidade se atribui a Galileu Galilei.
Mas é somente no século XIX que o termo episteme ou ciência será usado para caracterizar os eventos históricos e sociais. A partir de então, discursar sobre os processos humanos é estar condicionado pelo paradigma científico moderno, que localiza nos pressupostos da positividade iluminista e na aurora do mundo contemporâneo, a instauração da ciência sociológica, seguindo o modelo da física social, centrada fundamentalmente na capacidade de explicação de teorias universais. Portanto, segundo essa visão, é somente no horizonte de significados da discussão epistemológica que poderemos abordar os processos históricos e sociais como -ciências humanas-. Fora desse paradigma temos apenas mitos, costumes e arte, mas não conhecimento do universal.
Ora, não é novidade a depreciação que o evolucionismo cientificista causou na autoimagem do país enquanto nação, desvalorizando o povo, a cultura e a história. Ao aceitarem passivamente o universal abstrato oriundo da epistemologia moderna aplicada aos eventos históricos e sociais, as elites locais ratificavam o domínio eurocêntrico, prático e teórico, na divisão internacional do trabalho e do saber. Para elas, somente sob as lentes da ciência social universal é que nossa sociedade deve ser vista a partir de então, esquecendo ou apagando, sob a qualificação de pré-científico, três séculos e meio de construção linguística, prática, cultural e institucional da comunidade nacional.
Mas não seria um exagero da nossa parte atribuir à jurisdição epistemológica contemporânea uma restrição ao conhecimento do nosso país- Afinal, as ciências humanas não visam a conhecer a realidade histórica e social- A questão central é que o caráter de exclusividade da metodologia científica acadêmica, que se quer livre de toda e qualquer pressuposição e influência da história local, impede o alcance desse saber no real conhecimento da história e das práticas do nosso povo. Essa característica metodológica das ciências sociais contemporâneas advém de uma transposição mecânica dos métodos das ciências naturais para a sociedade e a história. A distância do observador com relação ao seu objeto é uma invenção do método físico-matemático que foi transposto para as ciências humanas e adotado como paradigma da cientificidade universal.
Um pensamento que se quer nacional vem justamente argumentar, dentro da abertura iniciada por Corbisier, que há conhecimento, compreensões e práticas na cultura da nossa nação mesmo que estejam para além da jurisdição epistemológica da ciência social acadêmica. Esse encobrimento de relaçõescognoscentes, históricas e sociais anteriores ou fora da jurisdição do saber científico não seria somente uma questão teórica, mas diz respeito, em grande medida, a uma quebra da autoestima nacional, interferindo na relação de autonomia ou dependência que o país deve assumir perante as metrópoles.
Prospectando ainda mais o espaço aberto por essas reflexões, podemos apontar que a nossa atual crise civilizatória não é somente um problema econômico, mas também uma questão ética e política. A tão propalada -crise das ciências humanas- seria, pois, uma crise da nossa própria civilização. O tecnicismo social, a baixa estima, a degradação das práticas coletivas, a destruição da cultura nacional-popular e uma aporia sobre a finalidade do nosso agir político não estariam dissociados desse tratamento dado à maneira como nós próprios nos vemos.
Assim, tensionando ao máximo a abertura proposta pelo pensamento de Corbisier - segundo o qual a cultura brasileira, essencialmente pré-científica e não completamente ocidental, é a área onde reside a originalidade do pensamento nacional -, temos um horizonte particularmente fértil para o trabalho de autoconhecimento e autodeterminação acerca danossa anatomia histórica e social. Isto porque a cultura partilha formas de experiências que estão para além da ciência social contemporânea, como o secular conhecimento artístico, que contém em si explicações da vida e da vivência prática da história. São modos de compreensão que possuem uma verdade que não pode ser verificada somente pelos meios metodológicos da ciência social contemporânea, pois não é passível de generalização universal abstrata.
Mas, mesmo assim, é possível legitimar filosoficamente esses modos de conhecimento para além do tecnicismo da ciência social- Acreditamos que sim! Mas, para tanto, teremos que abandonar a distinção platônica de um saber universalista, abstrato e matemático, para adotar a classificação aristotélica, mais adequada às ciências sociais e a nossa tradição latina e ibérica. Aristóteles na Ética a Nicômaco distingue o conhecimento entre o theoretikós- universal, contemplativo, associado à physis, que não depende das nossas ações - e a phrónesis, que, ao contrário do universalismo da teoria e do seu aspecto contemplativo, é um saber prático que depende da nossa ação e se direciona para uma situação concreta, para as circunstâncias e suas infinitas variedades, associado à práxis.
Para Aristóteles, seo objeto do conhecimento for a práxis da existência concreta, isto é, a existência ética e histórica do homem tal como se configura nos seus feitos e nas suas obras, está decisivamente determinado pelas relações de uma comunidade linguística e política. Assim, a conclusão a partir do universal e a demonstração a partir de fundamentos abstratos e contemplativos não são suficientes para conhecê-lo, porque o decisivo aqui são as circunstâncias da vida. Sobre essa distinção, o filósofo alemão Gadamer argumenta que o antagonismo apontado por Aristóteles é mais do que uma simples diferença entre teórico e o prático, já que:
-Também significa a capacidade de subsunção do particular pelo universal, que denominamos -capacidade de juízo-. O que atua aí é, antes, um motivo ético, positivo, que também existe na doutrina estoica romana do sensuscommunis. Acolher e dominar eticamente uma situação concreta exige essa subsunção do dado sob o universal, ou seja, sob o fim que se persegue: que daí resulte o correto- (GADAMER, 2011, p. 59).
Na querela contra a episteme matemática platônica, a comunidade ética aristotélica aparece como sendo um -sentido para a justiça e o bem comum, que vive em todos os homens, e mais, um sentido que é adquirido através da vida em comum e determinado pelas ordenações e fins desta- (GADAMER, 2011, p.60).
A relação dialética entre o particular e o universal é aqui demonstrada como a mediação necessária entre ambos. A atividade do juízo de subsumir o particular no universal não diz respeito a uma aplicação do universal à cultura da comunidade, mas da concordância interna da cultura da comunidade com o universal. Não se trata, pois, de uma sabedoria teórica, de uma engenhosidade universal e nem de uma faculdade subjetiva a priori, mas de uma determinação do próprio ser histórico e social. A ação e o domínio da linguagem da vida real não são só uma questão de teoria, mas revestem-se de uma ação prática, da participação nas relações e costumes de uma sociedade.
Ora, estamos diante do resgate de um conceito ético-político cujo centro se dá na vida comunitária, no ethos da sociedade. Por isso, não pode ser universal-abstrato, mas prático-concreto, pois materializa nas relações da comunidade nacional os arranjos específicos que constituem nossa própria visão de mundo. A phrónesis aristotélica sobreviveu na tradição latina da prudentia, chegando até nós, brasileiros, através dos ibéricos. Portanto, há uma tradição de saber que existe na nossa cultura e que, se bem compreendida, pode fornecer as bases para fundamentar uma visão de mundo própria, um modo de vida e produção que estimule novas formas e modelos de desenvolvimento.
Corbisier e a filosofia nacional
Como dissemos acima, Corbisier abriu a possibilidade de novas abordagens acerca da fundamentação de uma filosofia autóctone, na medida em que materializa historicamente as relações entre o discurso filosófico e o problema da liberdade e da autodeterminação da comunidade nacional. Contra o universalismo abstrato das formulações filosóficas clássicas afirmava a concretude da história:
-Essa é, a nosso ver, a grande, se não a principal, conquista do pensamento moderno, da filosofia moderna, a tomada de consciência de que não há uma -natureza humana-, pré-fabricada na eternidade, porque o Homem é a história do Homem- (CORBISIER, 1994B, p. 60).
Assim, o Brasil é a história do Brasil. É nela que devemos encontrar o elemento cultural e social específico, autônomo, para construir uma grande nação. Um caminho próprio de desenvolvimento, superando as conjunturas econômicas, políticas e culturais que nos impõem a condição de semicolônia na divisão internacional do trabalho e do saber.
Ao relembrar o centenário de nascimento de Roland Corbisier queremos, ao mesmo tempo, celebrar, conservar e renovar as perspectivas filosóficas abertas por esse grande brasileiro. ª
*Cristiano Capovillaé professor de Filosofia do COLUN-UFMA e mestrando em Epistemologia e Filosofia da Linguagem pelo MEE-UFPI
NOTA
1 - Os studia humanitatis abarcavam a gramática, a retórica, a história, a poética, o direito, a medicina, a história natural e a filosofia moral e, como disciplina paradigmática, ao fornecer-lhes métodos, a filologia.
Bibliografia Consultada
ALMEIDA, Custódio L. S. Hermenêutica e dialética: dos estudos platônicos ao encontro com Hegel. Porto Alegre: EDPUCRS, 2002.
CASTANHO, Sérgio. Roland Corbisier: o intelectual da -cultura brasileira-. 2006. Disponível em:
CORBISIER, Roland. Filosofia e Crítica Radical. São Paulo: Duas Cidades, 1976.
______. Introdução à Filosofia. Tomo I. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1983.
______. Introdução à Filosofia. Tomo II. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1994(A).
______. O Estado, a ética e a política. Princípios. Nº 34, p. 59-67, ago/set/out. de 1994 (B).
DOMINGUES, Ivan. Filosofia no/do Brasil: os últimos cinquenta anos - desafios e legados. ANALYTICA, Rio de Janeiro, vol 17 nº 2, p. 75-104, 2013.
GADAMER, H-G. Verdade e Método I. Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. Tradução de Flávio Paulo Meurer. Petrópolis: Vozes. Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco. 11º ed., 2011.
LYNCH, Christian E. C. Por que pensamento e não teoria- A imaginação político-social brasileira e o fantasma da condição periférica (1880-1970). Dados vol.56, Nº 4 Rio de Janeiro Oct./Dec. 2013. Disponível em:< http://dx.doi.org/10.1590/S0011-52582013000400001>
Menezes, Djacir. Premissas do Culturalismo Dialético: As componentes de um pensamento filosófico. Rio de Janeiro: Cátedra; Brasília: INL, 1979.
______. O Brasil no pensamento brasileiro. Brasília: Senado federal, Conselho editorial, 2011.
NAVARRO, Eduardo de A. Introdução e biografia. IN: ANCHIETA, José. Poemas: lírica portuguesa e tupi. Org. Eduardo de Almeida Navarro e Helder Perri Ferreira. 2ª Ed. São Paulo: Martins Fontes, 2004.
PAIM, Antônio. História das ideias filosóficas no Brasil. 3º edição. São Paulo: Convívio; Brasília: Fundação Nacional Pró-Memória, 1984.