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Edição 133 > Entrevista com Michel Paty “A materialidade de nosso conhecimento do mundo material”
Entrevista com Michel Paty “A materialidade de nosso conhecimento do mundo material”

Numa tarde agradável do verão europeu em setembro último, tive a imensa satisfação de conversar e entrevistar o renomado cientista francês Michel Paty, em seu apartamento (em Ivry Sur Seine, Paris); região considerada tradicional reduto eleitoral do Partido Comunista Francês. Numa acolhida tipicamente “brasileira” – “Cida” ou Maria Aparecida sua esposa, aqui nasceu -, as conversas foram das indagações sobre o significado da reelei- ção de Dilma Rousseff, aos elogios a Olival Freire Jr., grande amigo e ex-orientando de Paty. Extremamente simpático e fluente (também) em português, Michel Paty – já recebeu diversas homenagens por sua longa relação científica com professores brasileiros, em especial da USP – concedeu a entrevista pouco antes do início da grande Festa do L’Humanité, órgão central do PCF. “Vou ver se consigo dar uma passada lá”, disse-me esse grande filósofo, físico e historiador da ciência contemporânea.
Veja, a seguir, a íntegra da entrevista:
Barroso: O pano de fundo da nossa conversa, sem nenhuma rigidez em torno do tema é o desenvolvimento da teoria marxista; do ponto de vista da Teoria do Conhecimento. Noutro ângulo, ao qual o senhor encaminha o pensamento científico, a entrevista se propõe de algum modo contribuir para estimular reflexões sobre o método do materialismo dialético e sua importância.
Em seu estudo Matéria e Necessidade no Conhecimento Científico, publicado na revista Scientia Studia (2006), o senhor aborda, entre outras questões, a formação do conhecimento como se expresso na representação simbólica relacionada sempre a uma realidade, ou seja, ao mundo material, natural etc. Por favor, explique isso melhor, professor.
Michel Paty: Este artigo ao qual você se refere se enquadra dentro de uma reflexão que eu comecei há alguns anos e que na verdade está muito ligada à minha própria aproximação da epistemologia, da filosofia da ciência e do conhecimento em geral. Mas acontece que, há dez ou quinze anos, comecei a trabalhar mais especificamente sobre o tema de que o conhecimento se exprime, se expressa, numa forma simbólica. Isto é, o conhecimento é diferente da coisa que ele descreve. O conhecimento é uma representação mental. É um processo mental que nós elaboramos, em nossas cabeças, e na comunicação entre as pessoas. E nós designamos assim o mundo, tal como o encontramos, e pensamos que seja. Fazemos ciência, descrevemos coisas (objetos, fenômenos etc.), seja as coisas fundamentais do conhecimento, seja as coisas do dia a dia, das nossas ações. Tudo isso tem uma forma simbólica. Quer dizer, quando nós falamos de alguma coisa não é a coisa mesma que está lá, mas a nossa representação dela. Essa ideia eu já tinha quando comecei meus estudos epistemológicos, no momento em que eu atuava como físico - de laboratório -, estudando e fazendo pesquisa sobre a matéria -elementar-, subatômica e subnuclear, sobre a matéria que constitui o mundo, considerada neste nível. Então, nessa minha primeira aproximação da epistemologia, quando escrevi meu livro A Matéria Roubada (Edusp, 1995), que você conhece, eu o começo abordando a questão da representação da matéria com uma ideia realista e também materialista. Esse livro me foi encomendado, foi publicado na França, em 1977, e depois traduzido para o português e publicado no Brasil. E me fora encomendado por um famoso filósofo da ciência italiano, Ludovico Geymonat (1908-1991), que você conhece de nome com certeza, pois ele é bem conhecido internacionalmente. Ele é o -pai intelectual- de muitos filósofos italianos da geração seguinte e de várias outras gerações. Cheguei a conhecê-lo, nos simpatizamos e ele me pediu para escrever um livro sobre a física da matéria quântica, do ponto de vista da epistemologia e da filosofia, e com a nossa visão materialista - à qual defendíamos, embora com certas diferenças. De maneira engraçada, fiz questão de começar o livro não tomando as coisas como se faziam classicamente, se fazia para os filósofos materialistas, mas começando pelo ponto de vista da matéria etc., como se estivéssemos dentro dela, falando por ela, por assim dizer! Eu disse claramente: o nosso conhecimento está feito nas nossas cabeças e não está identificado fundamentalmente com as coisas que nós descrevemos, embora sejam elas que queiramos descrever: ele está orientado em direção a estas coisas. Está dirigido rumo a elas. Não está acabado. Vamos sempre ter que modificar esse conhecimento para adequá-lo mais e mais a estas coisas, ou melhor, a essa realidade. E isso vai ter uma importância na história e na cultura das pessoas. Porque, para mim, isso é uma maneira de mostrar, ou de ser consciente, de que não podemos ser dogmáticos. Para ser mais claro, eu sou materialista, mas não sou dogmático. Quer dizer, esse materialismo tem um sentido, uma significação, bem preciso, e penso que tem sentido falar da matéria e dizer que os processos são materiais, e assim por diante. Mas temos que saber que essa matéria que nós pensamos em descrever, nós a pensamos, antes de tudo. Quer dizer, para descrevê-la, nós a pensamos.
Geymonat é engraçado, porque ele gostava muito do meu livro, cuja redação ele acompanhou capítulo por capítulo, e, lendo esses primeiros capítulos, me disse que coincidentemente estava relendo Lênin, sempre entusiasmado pela leitura de suas obras completas. Eu respeito muito Lênin também como personagem histórico e como pensador. Mas não vou dizer que minha filosofia é a filosofia de Lênin, tal como exposta no livro dele que trata de ciência e de filosofia, o Materialismo e empiriocriticismo. Porque este é um livro antes de tudo político [1], polêmico, não é um livro de epistemologia propriamente dito. Então, Geymonat me disse: -Engraçado, nesses capítulos, você que é um filósofo materialista, se apoia muito nesse filósofo idealista que é Ernst Cassirer-. Então, respondi: -pode ser que ele não seja tão idealista como você diz, porque na verdade ele também toma a realidade como base, objeto do pensamento científico, só que ele insiste sobre o caráter simbólico do pensamento-. Cassirer publicou nos anos 1920 três livros que têm como título, no conjunto, Filosofia das formas simbólicas, onde ele estuda a linguagem, os mitos e o conhecimento científico, que são três exemplos característicos dessas formas, mostrando que existe uma relação entre os três temas. Então, Geymonat, que era muito aberto, não dogmático de maneira nenhuma, me disse: -Está bom, se você pensa assim, tudo bem, continua- (risadas).
Barroso: Ainda sobre o mesmo texto, o senhor diz também que o movimento do conhecimento nos aparece, de qualquer modo, dirigido para o futuro. E também que não podemos prever o novo, mas apenas nos preparar para reconhecê-lo quando o momento chegar. Achei essa formulação muito interessante, instigante...
Paty: A ideia é que o que dirige o movimento do conhecimento não somos nós, mesmo que sejamos nós que o fazemos, que teçamos esse conhecimento. A ideia de tecer é uma boa imagem para falarmos do que está nessa ideia. Nós tecemos o conhecimento, mas não somos nós que dirigimos o movimento. É a isto que visamos nessa tecelagem. Isto a que nós visamos é a matéria. Tomo a palavra matéria aqui no sentido geral de -material com o qual está feito o mundo-, mas pode ser também a matéria no nível da cultura humana; mas é a realidade, digamos, como um conjunto. Porque, finalmente, haveria aqui de falar da questão da diferença exata entre realismo e materialismo. Tem aí uma diferença sutil, do ponto de vista filosófico, mas de certa maneira podemos dizer que a realidade e a matéria são a mesma coisa. Porque na matéria, na minha concepção, incluo na ideia de matéria o pensamento, o espírito, a estética, a ética: são formas nascidas da mesma matéria que esta nascida da física ou da biologia, porém diferentes, com propriedades específicas. Tudo isso faz parte da realidade. Não há uma ruptura ontológica entre o material e o pensar.
Na verdade, nós dispomos hoje do conhecimento da evolução dos seres, do universo, da vida, do homem, que nos mostra que existe uma continuidade nessa estrutura das coisas que fazem a realidade. Por exemplo, o materialista não vai negar que existem ações intelectuais, que existem virtudes, que existem valores. Sem isso, ele nem pensaria em ser materialista. Tudo está ligado. Então, a ideia fundamental que tento sempre ressaltar é que: o que dirige nosso conhecimento é essa perspectiva que nós queremos, que nós vemos intuitivamente a partir de nossa experiência do mundo (de seres humanos imersos no mundo). Nós não a vemos totalmente nessa perspectiva, mas sabemos que ela está ali, que existe, que há uma realidade do mundo, só que sabemos somente um pouco dela, sabemos uma parte apenas. Mas, às vezes, essa parte da tecelagem do conhecimento é bem feita, razoavelmente bem conhecida: temos muitos meios, muitas vias na pesquisa científica, por exemplo. Mas a pesquisa científica, se ela tem um sentido não é o de dizer: -eu faço o modelo do universo, das partículas, da célula viva, e estes têm que se comportar como o nosso modelo diz-. Isso não seria pesquisa científica, mas uma construção técnica, por exemplo, fazendo aparelhos. Utilizamos o conhecimento já adquirido, fabricamos aparelhos e eles vão ser utilizados em nossa pesquisa. Mas, no entanto, esses aparelhos, apesar de serem construídos a partir do nosso conhecimento presente, na verdade eles vão ser abertos a outra coisa que a realidade do mundo vai revelar. Por exemplo, quando se fazem aceleradores de partículas, ou os telescópios superperformantes de hoje. Com efeito, eles não vão nos fornecer apenas a imagem que conhecemos já no abstrato, mas vão nos permitir ir além. Quando nós fazemos pesquisa, não pretendemos conhecer antecipadamente, não podemos fechar as coisas num modelo, num conjunto de coisas que já conhecemos hoje. Nós sabemos que isso é insuficiente e será sempre insuficiente.
É isso que quero dizer: o conhecimento nos vem, o movimento nos vem, do futuro. Não é uma coisa de ficção científica. É uma colocação que vem da nossa experiência. Nós sabemos que a ciência mudou e que ela sempre tem que mudar. Mesmo a matemática, que parece uma ciência puramente pensada, que não descreve o mundo material - mas descreve seres abstratos e puramente formais, seres ideais que são os objetos matemáticos -, também muda. Ela encontra novos caminhos e novas ideias a desenvolver e que vão ampliar o campo da matemática. Há um pensador que me fez entender isso muito bem. Um filósofo da matemática, um francês que foi assassinado pelos nazistas porque foi da resistência francesa durante a 2ª guerra: chama-se Jean Cavaillés. É um filosofo da matemática que escreveu três, quatro livros (morreu jovem, aos quarenta anos), fundamentais nesta perspectiva. São muito interessantes essas colocações de Cavaillés, em particular, porque ele se situava num momento onde os matemáticos e os outros se davam conta de que mesmo a matemática - que pode ser muito axiomatizada, que parece ser muito racionalizada - não está fechada, não pode ser baseada simplesmente na lógica (que é uma das disciplinas da matemática - a mais formal delas). E se a matemática pudesse ser fundamentada na lógica estaria fechada. Mas a questão é que enquanto vemos que a matemática vai progredindo ela também se desenvolve em todos seus ramos - e até criando novos!
Barroso: Em relação a um problema crucial - o senhor já se referiu a algumas questões -, da relatividade do conhecimento, o senhor defende uma perspectiva, onde preferencialmente uma teoria seria -mais completa-, entre aspas, por se aproximar o mais possível do objeto. Essa é a discussão sobre a ciência atualmente, em que o senhor fala também que o pensamento científico realiza-se hoje rumo a uma unidade cada vez maior, apesar do fracionamento dos conhecimentos especializados. Nesse sentido, gostaria que o senhor comentasse, a exemplo, esse pensador Larry Laudan - crítico também das opiniões do húngaro Imre Lakatos, e do norte-americano Thomas Kuhn -, que apresenta o problema do conhecimento relativo como ainda dependente do método e dos instrumentos que mensuram tal relatividade. A relatividade da aproximação, então, teria ainda que depender do observador. Quer dizer, do método utilizado e dos instrumentos, ou seja - relativizando mais ainda, em minha opinião -, o problema da relatividade da aproximação.
Paty: Eu vou começar dizendo algo de minhas ideias, pois tenho minha ideia sobre essas questões, voltando em seguida aos autores que você menciona. É claro que o nosso conhecimento, sendo nossa elaboração, depende da nossa estrutura mental, depende dos nossos conhecimentos atuais, até hoje e mais além, mas depende também da utilização dos instrumentos que nós temos à nossa disposição. Mas essa instrumentação é baseada na evolução do nosso conhecimento anterior, e ela é limitada. Então, há uma coerência em tudo isso. Em resumo, constatamos que nosso conhecimento é dependente de vários fatores ligados à nossa condição humana. Ele é uma elaboração que se baseia nas nossas possibilidades mentais de linguagem, de técnicas e outras. Possibilidades que se baseiam no fato de o nosso conhecimento ter todo um passado - na verdade, tem toda uma história. São condições que limitam o conteúdo da nossa descrição do que queremos alcançar. Mas, ao mesmo tempo, são condições que permitiram que esta descrição chegasse até lá. Trata-se, por assim dizer, do peso e da dinâmica da nossa tarefa no conhecer, ou, para dizê-lo de outra maneira, da materialidade de nosso conhecimento do mundo material. Por abstratas que pareçam, as formas simbólicas são também -materiais-, pertencem a este mundo. Por isso, o passado da elaboração há de ser incluído na nossa perspectiva. A elaboração do conhecimento tem toda uma história que lhe dá sua força como se fosse concreta, seu arcabouço, sua trama, sua substancialidade-
O nosso conhecimento não surge de repente. Ele é tecido. Isso lhe dá uma substancialidade. Ele não se resume a puras abstrações, a ideias separadas ou a circunstâncias puramente contingentes. Foi tecido ao longo dos séculos, e mesmo se ocorrem transformações, mesmo se existem revoluções científicas, na verdade, o conhecimento de hoje se situa nessa linha que vem do passado, da história. Nós podemos fazer reformas mudanças muito importantes, como houve regularmente na história do conhecimento, mas não podemos negar que o conhecimento dos gregos não foi útil para começar a constituição da nossa ciência. Não vamos negar que o conhecimento do Renascimento foi útil, e que Newton foi útil, e Einstein, por exemplo. Porque, mesmo quando se faz a crítica, essa crítica é baseada no que existia no momento em que ela era feita. Esses instrumentos são fabricados e feitos a partir das ideias e dos conhecimentos que nós chegamos a ter para a construção de instrumentos. Tudo isso tem uma coerência forte nessa construção, nessa elaboração. Coerência não significa que aquilo está fixado de uma vez por todas, que não vai ser modificado, mas significa que nós temos uma espécie de terreno sólido por onde estamos pisando.
Pode ser essa ideia que falta a [Larry] Laudan. Na verdade, a ideia que falta é a que corresponde, no campo intelectual, no campo da formação das nossas ideias, ao fato de esse conhecimento ter uma história. A dimensão histórica, neste sentido de contribuição construtiva, me parece, é que faz falta. Teríamos que ver isso realmente com cuidado...
Assim, não tenho certeza de que essa consideração seja a mesma que a de Laudan, mas pode ser que tenha convergências, pois o mérito dele é de ter dado um peso verdadeiro à dimensão histórica do conhecimento científico, sem abandonar por isso a -dimensão racional-, enquanto se situa numa -tradição- filosófica ou intelectual que fazia questão de ignorar ou rejeitar o aspecto histórico em nome do julgamento lógico-racional (veja os positivistas lógicos, [Karl] Popper, e mesmo Lakatos, pois este achava necessário -reconstruir racionalmente- os achados históricos). Neste meio intelectual, na direção oposta, os que se interessavam por história, tal como Kuhn, deixavam de lado os fatores racionais dando tudo à explicação em termos sociais. Laudan, que se situa claramente numa perspectiva racional sobre a ciência, tenta modificá-la tomando conta da história tal como foi. Ele propõe, por exemplo, o conceito de -tradição intelectual- ou de pesquisa, ou de pensamento, que reencontra a linha de pensamento da epistemologia histórica. Pelo menos ele vê a necessidade dessa dimensão.
Barroso: Esse estudo a que o senhor se referiu é do final dos anos 1970 e somente agora foi traduzido para o português, em 2011: O problema do conhecimento científico. Rumo a uma teoria do crescimento científico (UNESP, 2011). Um livro inteligente...
Paty: Sim, tenho alguns livros dele em inglês. Gostei dele de certo modo, mas como eu gostei de [Imre] Lakatos, de Popper, mesmo de [Thomas] Kuhn... Eu digo -mesmo de Kuhn-, porque ele ainda está muito em moda hoje e há uma referência bastante exagerada à obra dele. Kuhn trouxe algumas coisas interessantes, mas ele também não é o final de tudo; e há outros que disseram o que ele disse até de maneira muito mais equilibrada (e antes dele), como Gaston Bachelard, Georges Canguilhem, Alexandre Koyré e outros. Então, acho exagerada a influência de Kuhn, ou mais exatamente a referência que se faz a ele. Isso não significa que se deveria negligenciar este pensador, pois ele fez sua parte no concerto. A meu ver, todos têm algo interessante. Acontece que todos estes são da linha cultural anglo-saxã anglo-saxã, Kuhn, Lakatos, Laudan etc. E há outras linhas culturais que hoje em dia são pouco levadas em conta, porque tem uma dominação da cultura, das empresas, do dinheiro, da influência anglo-saxã. É que em quase todo o mundo da pesquisa se lê e se publica em inglês, como se fosse uma receita para se saber de tudo ou a única língua de cultura. Mas não é verdade, pelo menos nas disciplinas onde a linguagem tem uma importância na expressão das ideias, como as ciências humanas e a filosofia. Nos países que utilizam preferencialmente a língua inglesa deveriam traduzir mais o que se faz em francês, em alemão, em espanhol, em português, em italiano, em polonês, em russo (sem falar do chinês e do japonês, e de outras línguas). Em particular, em língua portuguesa, porque devemos notar que hoje se faz muitas coisas interessantes no Brasil, por exemplo, importantes para outras áreas do conhecimento; e em Portugal, também, que é um país menor, mas que tem toda uma história e hoje é bem ativo nestes trabalhos.
A Europa, para isso, seria um lugar em que se deveria realmente aproveitar essa diversidade cultural enorme e muito rica, e que não se reduz à cultura anglo-saxã. Infelizmente, isso não é uma prioridade dos políticos que estão com a responsabilidade de desenvolver a Europa. Isso, para mim, é uma grande falha que precisaria de mais atenção. E não falei do russo - assim como do chinês -, mas claro que são contribuições fundamentais e importantes que terão de ser tomadas em conta na história do pensamento atual. Acho empobrecedora essa espécie de monocultura a que somos obrigados hoje; há um empobrecimento do pensamento que se manifesta na referência quase exclusiva a determinados pensadores na língua política e economicamente dominante. Laudan, muito bem. Mas não é o final. Ele deu sua contribuição como muitos outros contribuíram. Quem fala de [Jules] Vuillemin, de [Giles Gaston] Granger, de [Georges] Canguilhem- Na filosofia das ciências da vida, Canguilhem é fundamental, por exemplo. Então, há outros pensadores que são muito interessantes e merecem também ser levados em conta no debate, lidos, ensinados e discutidos. Eu relativizo isso, porque tem outros que não são levados em conta e que nos permitem ver mais o quadro geral.
Barroso: Sem querer ser chato, mas insistindo, é que ele apresenta essa ideia, nesse livro [de Laudan], de uma outra relativização da aproximação...
Paty: Uma vez que você constata que o pensamento é de uma outra natureza do que isso que ele descreve, que é de uma ordem simbólica, então você já tem isso mais claro...
Barroso: É o problema da história que o senhor situou. A evolução histórica do pensar, creio que ficou claro sim.
Mas, professor Paty, finalmente, uma coisa mais atual: há um debate de que essa situação do capitalismo que vivenciamos hoje, denominado por uns de neoliberal, outros falam de globalização, onde se tem desenvolvido e expandido a irracionalidade, do pensamento irracional, como por exemplo, a expansão e criação das seitas pentecostais, variantes do pensamento religioso ultra sectário e agressivo. Há uma correlação-
Paty: Eu não posso fazer uma teoria, pois não sou especialista nessa área, sou um simples cidadão que observa e relaciona. Mas são constatações que todos nós podemos fazer. Existe no rumo atual do capitalismo neoliberal, que tem aspectos e efeitos que podemos constatar, dos quais fazemos a experiência, que podem ser observados e relacionados entre si, analisados nos níveis socioeconômico e político, de melhor forma, o que já fazem, pesquisadores, certos (raros) jornalistas.
Há economistas que não são vítimas da ilusão ou da pressão do capitalismo neoliberal. Mas a economia como uma ciência é bastante problemática e muito mais fonte de pesquisas do que de certezas, de respostas já prontas. Escolher entre as teorias [econômicas] é mais complicado do que na física ou na biologia, porque existe uma interferência muito grande de muitos outros fatores que a doutrina neoliberal não considera - fatores sociopolíticos -, enquanto essa teoria reduz tudo à -natureza-, como se existisse uma aproximação -natural- dos fatos sociais. Pena que não temos, ou não sabemos se existe, uma análise crítica do neoliberalismo, de uma maneira como seria o equivalente da análise da sociedade capitalista no tempo de Marx, feita por este. Aliás, acho que realmente Marx fez uma análise crítica que é muito importante - o que é fundamental em sua obra. A meu ver, não tanto no aspecto de prever o futuro, porque ele se enganou como todo mundo. Mas quando se dogmatiza Marx como a União Soviética, na China, ou nos partidos de países não comunistas, ocorreu um engano.
O que é fundamental na obra do Marx é essa crítica que ele fez do capitalismo no tempo dele. É disso que precisamos para nosso tempo. Eu não vou dizer que não existe, porque não sou da área da economia política, mas sei que existem muitas contribuições críticas úteis e lúcidas de vários economistas, pensadores, politólogos, sociólogos, filósofos, e outros, que vão nesta direção. Penso que seria bom dispor de um quadro de conjunto, de modo que essas ideias, essas críticas, fossem juntadas e confrontadas, em todos os aspectos dessas vertentes, a fim de obtermos uma contribuição útil. Nessa perspectiva que já se enfrentam os movimentos populares, na luta para uma sociedade melhor, centrada nos direitos e deveres dos seres humanos (isto é, considerados na sua dignidade própria e responsabilidade na vida social). Pode ser que esses movimentos populares existentes, que lutam para tal perspectiva, ainda não tenham uma teoria (ou, melhor, instrumentos teóricos) que poderia ajudá-los. Não que uma teoria (ou uma perspectiva teórica) possa dominar os movimentos populares, mas ela pode ajudar e ser útil como um instrumento, sem dogmatismo, e buscando um consenso razoável. Tenho expectativas disso. Porque esse sistema econômico neoliberal que nos domina atualmente, obcecado pela ideologia do -livre mercado-, se mostra a cada dia mais catastrófico. Uma catástrofe que conduz à guerra, gerando direta ou indiretamente injustiças extraordinárias e desigualdades acentuadas, desequilíbrios políticos em muitas regiões do mundo, comportamentos e ideologias irracionais, guerras localizadas, poluição enorme do nosso planeta etc. Eu não sou contra a mundialização, em princípio, porque todos os povos têm que se conhecer, entrar em contato e se beneficiar da cultura e das produções dos outros. Mas não pode ser feita à moda do neoliberalismo, que é totalmente enganador a respeito disso. Porque isso é e conduz a negação das culturas que se pretende conhecer. Isso é um campo muito vasto e eu só posso dizer as minhas preferências afetivas e intelectuais também, porque se pensando com inteligência se vê o que não é possível aceitar. Para isso, tem que se acreditar em algumas ideias, em certos valores, em igualdade, em liberdade, dignidade do homem.
Barroso: Mesmo as bandeiras da Revolução Francesa foram completamente abandonadas pela burguesia, mas continuam extremamente atuais. Mesmo elas hoje são difíceis... fraternidade, igualdade...
Paty: Essas ideias fundamentais estão lá. Mas a realidade vivida, inclusive na França, é bem complexa, e os problemas encontrados em nível econômico, social e político, nacional e internacionalmente, bem como na vida cotidiana, são preocupantes e, além de complexos, em grande parte inéditos. Nem os cidadãos nem os dirigentes políticos têm ideias claras sobre o rumo dos eventos, sobre o que há por baixo das situações que enfrentamos. Pelo menos, essas grandes ideias, esses valores, são os guias que ninguém deveria esquecer. Cada um tenta fazer seu caminho e precisa, ao lado das suas próprias forças e iniciativas, da ajuda da sociedade, particularmente através da sua organização e dos serviços (tal como os da educação, da saúde etc.), oferecendo em contrapartida seus talentos, sua dedicação, sua solidariedade- A vida social é feita de direitos e deveres, de lucidez, de responsabilidade - isso no nível individual, no nível social (que inclui o trabalho, o mundo das empresas), no nível político, das esferas locais às do Estado e às das concertações internacionais (no nível europeu, da ONU etc.). Essas são exigências que devem ser levadas em conta nas decisões tanto econômicas quanto políticas.
Mas o sistema econômico no qual estamos imersos, em nível mundial, o sistema capitalista -neoliberal-, tal como é, parece considerar-se uma entidade central - absoluta, fundadora, a saber -o mercado-, animado com a busca do maior lucro e a -livre competição- -, não inclui nas suas ideias básicas as exigências que acabo de recordar. É aqui o lugar de perguntar-se: afinal qual é o objeto da economia, que se pretende a ciência do movimento das sociedades- O mercado, o lucro, a competição sem regras- Todo o resto seria negligenciável, ou resultaria secundariamente, como um efeito natural, dessas leis pretendidas- Isso seria ciência- Todos podem responder: claro que não, isso é simplesmente enganação. E no entanto, isso é o dogma que prevalece nos meios especializados através do ensino econômico-administrativo-político, bem como no público, através da imprensa que é quase totalmente possuída pelos poderes empresariais e financeiros. Este dogma não é, de maneira alguma, ciência - apesar das aparências e do vocabulário -, mas pura ideologia. A lucidez, aqui, é primeiramente desmontar esta ideologia dominante: desmontá-la pela crítica, à qual todos nós podemos contribuir a partir da nossa experiência de vida e de nossa razão.
É com certo desgosto e indignação que eu vejo, em muitas regiões do mundo e no meu próprio país, que mesmo os políticos da minha tendência, de esquerda, ou uma boa parte deles, são mais ou menos formatados intelectualmente no mesmo molde que os de direita ou os da alta administração empresarial, independentemente de suas convicções sociopolíticas próprias, e levados a engolir o mesmo dogma. Ademais, ser político é entendido em nossos dias mais como uma profissão especializada, fruto de ambição pessoal, e não como um mandato conferido pelo povo.
As escolas superiores de estudos políticos, econômicos e administrativos, outorgam, claro, uma excelente competência técnica hoje necessária, mas veiculam ao mesmo tempo um conformismo ideológico (notavelmente com respeito à economia política), e, pelo que parece, bem pouco espírito crítico. Também o padrão ético no comportamento de demais dirigentes parece se enfraquecer frente ao canto das sereias da comunicação com seus modernos padrões. Observa-se frequentemente uma porosidade entre pessoal político, advogados de negócios, grandes empresários, até banqueiros. Suas carreiras se entrecruzam, eles frequentam os mesmos ambientes. Claro, o deus mercado-lucro gosta de promover seus sacerdotes naturais! Mas, que significa se dedicar à política senão pensar primeiramente no bem dos outros, servir à coletividade, ao povo, à nação, e também preocupar-se com os outros povos do nosso planeta Terra- Como entrar em política, ser político, sem ter uma ideia elevada da política, tanto interna quanto estrangeira- Se fazemos a comparação mesmo com tempos recentes, a diferença espanta, inclusive considerando cores políticas diferentes: penso num Jean Jaurès, num Charles De Gaulle, num Mendès-France, num Mandela. Que exemplo, que lição a vida de cada um apresenta! São casos particulares, exemplares, é verdade. E havia também na mesma época exemplos opostos. Mas, por fim, o quadro hoje não me parece entusiasmante, a política é uma coisa muito difícil, e muito decepcionante. Porém, é uma necessidade vital para as nossas sociedades incentivar a vocação e a formação de elites políticas perspicazes, motivadas, responsáveis, e que sabem se distanciar das miragens do poder.
Barroso: Há também uma clara naturalização desses aspectos regressivos da atividade política contemporânea, especialmente parlamentar, não-
Paty: Eu acho que a política não pode esquecer que existem valores que estão acima das circunstâncias e acima dos interesses particulares. É muito difícil manter tal exigência frente à complexidade das situações e às pressões dos interesses particulares ou dominantes, e no nível mundial, considerando a variedade dos países, das suas tradições e histórias, dos seus níveis de desenvolvimento e de maturidade política.
Você mencionou antes um outro aspecto, o das seitas religiosas, com a constatação de que há um crescimento do número e da influência delas em muitos países. São seitas religiosas que pretendem ser -evangélicas-, pois se reivindicam da Bíblia, lida e interpretada -literalmente-, no melhor dos casos, ou em geral deformada. Quase todas são originárias dos Estados Unidos, onde cresceram por causas provavelmente ligadas a tradições culturais e ao sistema econômico e político do qual os EUA são o líder mundial. Há naquele país uma espécie de tolerância deturpada a respeito dessas seitas, quando estão juntas, sem diferença, a outras correntes de pensamento, particularmente com as grandes religiões.
Há uma diferença entre as seitas e as religiões, e não precisa ser religioso para ver que se trata de uma diferença muito grande. As grandes religiões existem desde muito tempo e não podemos negar a importância delas. Elas têm milênios, ou as mais recentes centenas, de anos, participaram da construção histórica do nosso mundo, das nossas culturas, para o melhor e o pior. Elas vivem, por assim dizer, num certo padrão, que vou resumir dizendo de respeitabilidade, e em particular consideram a dignidade dos homens, e não negam sua dimensão racional. Mas as seitas que você evocou são bastante recentes, e parece que não integraram as aquisições culturais das sociedades modernas comuns tanto aos crentes quanto aos agnósticos e ateus, fazendo apelo à irracionalidade, à credulidade, ao fanatismo, submetendo os indivíduos à influência de pseudoprofetas, espécies de gurus, praticando lavagem cerebral - e sem falar das lucrativas colheitas de dinheiro e até doações patrimoniais obtidas de mentes influenciadas. A característica comum dessas seitas é de serem ricas, ligadas a setores do grande capital. Elas têm sucursais em muitos países, em particular em regiões com problemas sociais, de subdesenvolvimento e pobreza, particularmente na África e na América Latina, e também em regiões que encontraram mudanças rápidas, como em várias partes do Brasil.
Acrescento a este quadro a que assistimos há algumas décadas, a manifestação dumas seitas oriundas da deformação de outra religião respeitável, o Islã, e que parece culminar hoje no movimento terrorista chamado -Exército islâmico-, que se distingue por seus atos de crueldade e barbaridade contra populações aterrorizadas, e contra reféns que são assassinados e decapitados. Não obstante as diferenças - particularmente esses atos -, são seitas também regiamente financiadas (por certos poderes) e se aproveitando das falhas da sociedade, da miséria, dum estado de confusão política, e do sentimento de abandono, mal-estar e falta de ideal de certos jovens em tal contexto. As seitas chamadas -evangélicas- podem ser aparentemente menos violentas, mas na verdade podem também ser violentas, enquanto exercem controle ou dominação sobre as mentes de fiéis subjugados. Muitas pessoas são totalmente apegadas a tais seitas e perdem sua liberdade e autonomia. Tal fenômeno é um aspecto importante da nossa época, que sem dúvida está ligado ao neoliberalismo de várias maneiras. Pode ser que haja seitas em outro sistema econômico, pois elas existiram no decorrer de toda a história da humanidade, mas estas seitas atuais - seja as que se declaram do Evangelho, seja as que se declaram do Al Corão -, nas suas especificidades e diferenças, são geradas dentro do sistema do neoliberalismo globalizado, do qual são efeitos diretos ou indiretos e podem ser analisadas nessa perspectiva.
Elas têm que ser combatidas também, não só analisadas. Acho que a sociedade tem que se defender contra essas seitas porque representam ameaças à dignidade e à liberdade dos seres humanos. Não é a mesma coisa que as religiões, que requerem e merecem tolerância. Sempre haverá religiões, mesmo se se pensar que são ilusórias (pois teremos sempre ilusões). O homem começou a ter ideias misturando a aprendizagem do mundo com mitos, depois com a ideia de Deus, e de qualquer maneira ele precisa de transcendência, de valores, e às vezes é simplesmente isso que ele chama de Deus. O problema é saber se essas ideias, ou crenças, são benéficas ou não para o desenvolvimento, o florescimento dos homens. Cada um, tendo um pensamento pessoal, pode recusar a religião em si, mas não pode recusar a religião aos outros. A fé não se demonstra, e também a não fé: são maneiras de se ver o mundo. Eu sou muito a favor da tolerância: a laicidade da sociedade (que as seitas não admitem) garante a liberdade de pensar. Mas a tolerância tem limites quando se começa, em nome duma crença, duma fé, a desrespeitar os homens, explorando e manipulando, e finalmente destruindo-os. E, olhando bem, as seitas desrespeitam a lei civil. Por isso, quando for o caso, devem ser julgadas e condenadas. A sociedade tem que se defender, porém com seus meios racionalizados, civilizados, isto é, por meio da lei, comum a todos. Mas, sobretudo, ela deveria se preocupar em criar as condições para evitar tais alienações. Aqui nós voltamos ao nosso problema inicial: o sistema econômico que gera ou piora essas situações. E a função fundamental do exercício da razão crítica, em vista do conhecimento a ser ampliado, e da vida social a ser melhorada. ª
*Aloísio Sérgio Barroso é membro da Comissão Nacional de Formação e Propaganda do PCdoB e integra a direção da Fundação Maurício Grabois
-Michel Paty é diretor emérito de pesquisa do Centro Nacional de Investigação Científica (CNRS) e do Laboratório de Filosofia e História das Ciências (SPHERE - UMR 7219) da Universidade de Paris-7
NOTAS
[1] M. Paty se refere a Materialismo e empiriocriticismo. Notas críticas contra uma filosofia reacionária (1909), de V. Lênin. De fato, a obra de V. Lênin se voltava à intensa luta política e ideológica da Rússia após a derrota da revolução de 1905, contra a tentativa de liquidação do Partido Operário Socialdemocrata Russo (comunista). Foi escrito num momento de enorme perseguição aos comunistas, de prisões, exílios e alguns milhares de revolucionários executados. -Abatimento, desmoralização, cisões, divergências, renegação, pornografia em vez de política. Reforço da tendência para o idealismo filosófico; misticismo como disfarce de um estado de espírito contrarrevolucionário- - assim Lênin bem definiu, anos depois, o objetivo do livro. Para uma apreciação recente deste estudo, ver: BARATA-MOURA, José. Sobre Lénine e a filosofia. A reivindicação de uma ontologia materialista dialéctica com projecto. Lisboa: Avante! 2010 - especialmente o Capítulo 2.