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Edição 131 > Cúpula do BRICS
Uma estratégia econômica para o Brasil e a América do SulJ.
Cúpula do BRICS
Uma estratégia econômica para o Brasil e a América do SulJ.
preciso que haja uma reação sobre o fato de os fluxos internacionais de comércio estarem movendo-se contra os nossos interesses.
Uma estratégia para a retomada do desenvolvimento industrial a partir do uso soberano de nossos recursos naturais abre o horizonte de um destino promissor para o Brasil e a América do Sul, com benefícios também para os demais países do bloco BRICS.

A crise financeira de 2008, que ainda persiste em grande parte do planeta, sobretudo na Europa, introduziu mudanças que tendem a ser permanentes ou no mínimo duradouras no sistema econômico mundial - o que aponta para o Brasil a necessidade de um realinhamento em termos de alianças estratégicas.
A mudança que mais nos afeta diretamente, enquanto país e enquanto região, é a busca por parte de todos os países desenvolvidos de superávits no comércio de manufaturados, num movimento simultâneo único pela primeira vez na história.
Essa questão deveria estar no centro das preocupações das elites dirigentes brasileiras, de empresários, dos diplomatas, da universidade e dos profissionais da segurança nacional.
É que não se trata de um momento no ciclo econômico mundial.
É o efeito de uma determinação de caráter político, explícita na área do euro, onde políticas fiscais e monetárias extremamente restritivas empurram os países para buscarem saldos comerciais como único mecanismo de recuperação da atividade econômica, não obstante o recorrente fracasso dessa estratégia.
No contexto mundial atual, esses superávits só podem ser obtidos a partir de déficits dos países em desenvolvimento.
Também não é um fenômeno temporário.
A justificação para as políticas monetárias e fiscais restritivas é o endividamento público considerado alto na área do euro, medido pela relação dívida pública/PIB.
Entretanto, as políticas restritivas produzem o efeito paradoxal de aumentar, e não reduzir, a relação dívida/PIB.
Como consequência da continuada retração ou estagnação do PIB, o denominador cai, enquanto a dívida sobe para países que não emitem a própria moeda em razão da incidência de juros de mercado.
Isso significa contração econômica num tempo indefinido, e um apelo ainda maior nos países com dívidas públicas consideradas elevadas no sentido de geração de saldos comerciais por aumento de exportações e redução de importações.
Essa situação não é resultado apenas de uma idiossincrasia política alemã por seus traumas passados com hiperinflações.
É certo que as elites empresariais e políticas alemãs são profundamente ortodoxas e neoliberais, mas elas não poderiam impor sua ordem econômica ao resto da Europa se não contassem com a concordância militante dos dirigentes franceses, italianos e espanhóis, que há muito abriram mão de suas convicções socialdemocratas para aceitar taxas pornográficas de desemprego.
Na realidade, é surpreendente que nenhum político eleito importante da Europa tenha reagido indignado quando, pouco depois de sua posse no Banco Central Europeu, Mario Draghi disse abertamente que para enfrentar a crise era necessário destruir o Estado de bem-estar social.
A absoluta prevalência dos interesses especulativos contra os interesses sociais nos países industrializados avançados, embora não totalmente nos Estados Unidos - estes fizeram uma pseudorreforma pífia e disfuncional do sistema financeiro -, conta com o respaldo total das agências multilaterais como FMI e Banco Mundial, o BCE e a própria Comissão Europeia.
Ao lado disso, as agências de risco se tornaram uma espécie de reguladoras privadas das políticas econômicas mundiais pela influência direta que têm no custo dos empréstimos internacionais.
É praticamente impossível romper essa conspiração, que tenta, na realidade, deixar tudo como está no sentido da restauração das relações financeiras especulativas mundiais nas mesmas bases em que funcionavam antes do colapso de 2008.
Note-se que tudo poderia ter sido diferente não fosse a determinação europeia de perseguir a ortodoxia monetária e financeira.
Sim, porque imediatamente após a crise, para salvar o sistema capitalista do colapso total, o G20 estabeleceu um consenso em torno de políticas keynesianas anticíclicas nas reuniões de Washington, Londres e Pittsburgo.
A ruptura desse consenso, quando as economias afetadas pela crise já se recuperavam em decorrência justamente dele, veio na reunião de Toronto, em 2010, quando Alemanha, Inglaterra e França patrocinaram as chamadas -estratégias de saída-, ou seja, o retorno à ortodoxia fiscal e a obsessão com a redução da dívida pública.
Na Europa, as economias que seguiram esse conselho voltaram a desmoronar, e estão desmoronadas até hoje.
É importante assinalar, para os que não estão familiarizados com a terminologia econômica, que política monetária ortodoxa não tem nada a ver com responsabilidade monetária.
Em determinadas circunstâncias, inclusive agora, é seu oposto.
A teoria keynesiana aconselha que, em situações de recessão ou de depressão, o Estado não só pode como deve ampliar seus gastos deficitários.
É a forma de restaurar a demanda, o investimento e o emprego.
Já quando a economia está crescendo e marchando para o pleno emprego, deve fazer o oposto, ou seja, reduzir ou eliminar o déficit e diminuir a dívida pública.
A ortodoxia prega uma situação permanente de equilíbrio ou mesmo superávit fiscal, não obstante o ciclo econômico.
É fácil ver que isso é uma estupidez ideológica.
Presume que os Estados que se endividaram no passado, e foram todos, agiram sempre de forma irresponsável.
O que os ortodoxos mais temem nas políticas anticíclicas é a consequência delas em termos de um aumento temporário do poder econômico e coordenador do Estado, seja pelo lado do investimento público, seja pelo lado de uma política monetária expansiva.
Por isso, na Europa do euro, o BCE, sendo independente dos governos, é um guardião rigoroso dos interesses bancários privados e bloqueia qualquer tentativa de política fiscal expansiva.
É importante assinalar que isso não acontece nos Estados Unidos: a despeito da pressão contrária do Partido Republicano, o governo Obama enfrenta o risco de estagnação com déficit fiscal e políticas monetárias expansivas - algo que o conjunto dos países desenvolvidos costuma negar aos países em desenvolvimento, exceto quando estes já não dependem diretamente do FMI para equilibrar contas externas.
Já a realidade político-eleitoral europeia não traz qualquer sinalização de pressão efetiva por parte da cidadania em favor de mudanças na política econômica no sentido da retomada da expansão.
Ao contrário, o que as últimas eleições para o Parlamento Europeu indicaram foi um crescimento da direita a partir de temas sociais que lhe são caros, como racismo e imigração, sem grande ênfase nos temas econômicos.
Isso prenuncia um movimento do eleitorado na mesma direção quando se iniciarem as eleições nacionais, de resultado mais efetivo.
Mesmo na Espanha e na Grécia, com mais de 25% de taxa de desemprego (mais de 50% entre os jovens), movimentos como o dos -Indignados- murcharam ou desapareceram.
Os riscos que a prolongada crise europeia, a estagnação japonesa e a marcha lenta americana colocam para o Brasil não se refletem na imprensa ou na política brasileira.
Os pré-candidatos presidenciais se voltam exclusivamente para temas paroquiais, como se eventos externos, sobretudo os que afetam estruturas produtivas globais, não nos dissessem respeito.
Isso significa, simplesmente, uma crise generalizada de visão estratégica, mesmo porque, como se insiste aqui, a ameaça, efetivamente, não vem apenas da Europa Ocidental, mas também dos demais países industrializados.
É que os EUA, embora não seguindo política fiscal ortodoxa e apelando para uma política monetária expansiva, estão, além disso, sustentando a meta de dobrar exportações a cada cinco anos, anunciada por Obama desde 2010.
Já o Japão fez agressiva desvalorização do câmbio de 20% para recuperar exportações.
Dos grandes países líderes do comércio, a China, afetada pela contração do mercado europeu, é a única que deliberadamente, com um esforço de reconversão da demanda para o mercado interno, reduziu seus superávits com o resto do mundo.
Isso, inversamente, se refletiu também na balança comercial com o Brasil, com o superávit com a China afetado por queda de preços e volumes de commodities exportadas.
Essa situação sem precedentes coloca para os países emergentes um desafio histórico.
Para países como o Brasil, se não houver uma mudança drástica em sua estratégia de desenvolvimento, seremos condenados à marginalização no mercado mundial de manufaturados, com evidente risco para o emprego e a trajetória de reservas cambiais.
É um contexto que mostra a temeridade de propostas como a do acordo de livre comércio entre Mercosul (ou Brasil) e União Europeia, que acentuaria o desequilíbrio dessas relações.
Entretanto, considerando não só o Brasil para toda a América do Sul, somos um país e uma das regiões mais ricas do mundo em recursos naturais, desde abundantes fontes de água doce aos diversos minerais.
Podemos ancorar uma arrancada de desenvolvimento comum mediante industrialização desses recursos minerais desde que se equacione, por um lado, o financiamento do investimento e, por outro, a demanda num contexto de baixo crescimento no mundo industrializado avançado.
A premissa fundamental numa estratégia com esse objetivo é estimular firmemente a industrialização de recursos minerais e agropecuários considerando-se três momentos articulados: a mineração, a industrialização e a logística de transportes, tudo conectado a uma estratégia de crescimento interno e de expansão das oportunidades de exportação de produtos com valor agregado.
Se houver infraestrutura, pode-se induzir o setor privado a assumir a mineração e a industrialização com adequado financiamento que teremos com o Banco do Sul e o Banco do BRICS.
O gargalo é a infraestrutura de transportes.
Em casos de rodovias, ferrovias ou hidrovias pioneiras, é fundamental a ação direta do Estado.
Para que um programa público de infraestrutura tenha credibilidade, é importante definir fonte de financiamento estável, como foi em sua intenção original o Imposto Único sobre Combustíveis Líquidos e Gasosos (IUCLG) ou a Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico (CIDE), ou seja, um tributo sobre combustíveis vinculado formalmente a investimentos de infraestrutura.
No Brasil, a CIDE ainda existe legalmente, embora zerada.
Isso aconteceu no bojo das desonerações fiscais improvisadas de 2013.
De qualquer modo, seu desenho institucional é frágil pois sua receita era recolhida à caixa única do Tesouro, com vinculação apenas nominal a investimentos de infraestrutura.
O ideal, portanto, é que ela seja restaurada e sugerida aos outros países da América do Sul como um tributo formalmente vinculado, como acontece nos Estados Unidos, que sirva de base de alavancagem para empréstimos bancários ao setor de infraestrutura.
Haverá resistência, sobretudo das elites empresariais, à efetivação de um tributo vinculado a investimentos de infraestrutura logística não só no Brasil mas nos demais países da América do Sul, os quais, com exceção da Argentina, têm em média metade da carga tributária do Brasil.
A forma de lidar com isso seria condicionar a participação no projeto de desenvolvimento comum à instituição do tributo vinculado.
Note-se que, por um lado, um tributo sobre combustíveis, tendo uma base extremamente ampla, requer alíquotas individuais muito baixas.
Por outro lado, o fundo criado com esse tributo não seria um investidor direto nos projetos, mas uma base de alavancagem de empréstimos para investimentos; seria um garantidor.
Assim, uma receita anual de 1 milhão geraria uma capacidade de investimento em 20/30 anos de 20 ou 30 milhões.
Equacionado o problema da infraestrutura, poder-se-ia articular o programa estratégico no âmbito do BRICS inicialmente em parceria com a China, que deixaria de ser o inimigo comercial para ser um sócio do investimento.
Em primeiro lugar, seriam selecionados, no Brasil e no restante da América do Sul, projetos específicos de desenvolvimento industrial de recursos naturais.
A China arcaria com a parte principal do investimento, garantida pela própria demanda, e a governança seria exercida com o Brasil e com outros países sul-americanos participantes.
Seria aberto, dessa forma, um amplo e crescente mercado de bens de capital para as empresas brasileiras do setor, eventualmente em parceria com a indústria homônima chinesa, indiana e russa.
Com isso, seria salva a indústria de bens de capital brasileira de uma concorrência predatória dos países industrializados avançados.
O esquema interessaria à China no sentido de que ela se defronta com problemas energéticos e ambientais na forma de restrições à expansão territorial de sua indústria metalúrgica básica.
Nesse sentido, o financiamento do investimento nos projetos escolhidos poderia basear-se numa demanda garantida de metais pela China, que desenvolveria fora de seu território, mediante acordos específicos, o suprimento desses metais para continuar sustentando seu alto crescimento.
Foi dessa forma que se desenvolveu em parte Carajás, mediante demanda certa de produção futura convertida em financiamentos, com a diferença de que se tratava de um bem primário e o demandante era o Japão.
A estratégia aqui delineada abriria caminho para a articulação do Brasil e da América do Sul com a região economicamente mais dinâmica do mundo: o grande arco do Pacífico centrado na China.
A ponte de acesso a esse arco seria o bloco BRICS, que teria, de um lado, como grandes demandantes de metais, a China e a Índia e, de outro, como supridores de produtos da indústria básica, o Brasil e a África do Sul, ficando a Rússia numa posição intermediária.
A consolidação desse arco responderia a ameaças do neoliberalismo em sua forma comercial: os acordos de livre comércio assimétricos, que retardam em vez de estimular o desenvolvimento.
Essa sugestão não substitui políticas de curto prazo, sobretudo a cambial, que estão afetando drasticamente a indústria manufatureira brasileira, notadamente a indústria de bens de capital.
Contudo, como se pode ver nos gráficos, temos um desafio estrutural que se sobrepõe ao problema cambial de curto prazo, na medida em que são os fluxos internacionais de comércio que estão se movendo contra nossos interesses.
Deixar que isso aconteça, espontaneamente, sem reação, é um crime de lesa-pátria.
Uma estratégia para a retomada do desenvolvimento industrial a partir do uso soberano de nossos recursos naturais abre o horizonte de um destino promissor para o Brasil e a América do Sul, com benefícios também para os demais países do bloco BRICS.
* José C.
de Assis é economista, doutor em Engenharia de Produção pela Coppe/UFRJ, professor da Economia Internacional da UEPB, autor de mais de 20 livros sobre Economia Política brasileira