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Edição 130 > Entrevista com Ignacio Cano: “A crise das UPPs é parte de uma crise mais ampla”
Entrevista com Ignacio Cano: “A crise das UPPs é parte de uma crise mais ampla”

No último dia 2 de abril, Princípios esteve no campus da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), na capital fluminense, para conversar com o sociólogo espanhol Ignacio Cano, professor associado e pesquisador daquela universidade e coordenador do Laboratório de Análise da Violência (LAV). No mesmo dia da entrevista, a imprensa repercutia a prisão, por associação ao tráfico, de cinco policiais que atuavam na Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) na favela da Rocinha, onde, no ano passado, o pedreiro Amarildo foi vítima de violência policial e está até hoje desaparecido. A descoberta da relação dos policiais da Rocinha com traficantes é mais uma de uma série enorme de episódios negativos envolvendo as UPPs. O último caso de maior repercussão foi a morte do jovem Douglas Rafael, dançarino de um programa de auditório da Rede Globo. Ele foi encontrado morto em uma creche na comunidade pacificada Pavão-Pavãozinho, onde também foi assassinado outro jovem, Edilson da Silva dos Santos. Semanas antes, já havia ganhado as manchetes a morte da auxiliar de serviços gerais, Claudia da Silva Ferreira, arrastada por um carro da PM após ser baleada no Morro da Congonha, em Madureira. A cada dia novos casos de violência em áreas pacificadas do Rio de Janeiro são noticiados, revelando o quanto a questão da segurança pública é complexa e de difícil solução.
Para o professor Ignacio Cano, essa crise é parte de uma crise mais ampla da política de segurança do Rio que fez com que resultados positivos conquistados nos últimos anos com as UPPs perdessem fôlego. Cano acredita que as UPPs podem continuar desempenhando um papel positivo se o governo corrigir rumos. Muitas ideias para isso foram apontadas no estudo que o professor coordenou através do LAV e que em 2012 foi publicado com o título Os Donos do Morro.
Para Cano, o sucesso global do projeto passa pela transformação das políticas de segurança, saindo da visão de que estamos em uma -guerra-, para uma visão da polícia como prestadora de serviços, próxima e simpática à população local. -A UPP ficou no estágio inicial: ocupou territórios, foram colocados policiais lá, mas não se avançou suficientemente na mudança das relações e no diálogo entre a polícia e a comunidade-, diz o professor.
Leia abaixo a entrevista completa:
Princípios: O projeto das UPPs está em crise-
Ignacio Cano: Sim, definitivamente. Não é o único que está em crise. Há uma crise da segurança em geral. Houve uma redução de homicídios bastante pronunciada entre 2009 e 2012. Num primeiro momento, as UPPs promoveram, de fato, uma situação de menos violência no Rio de Janeiro. Mas em 2012 já começa a subir na baixada fluminense e, em 2013, sobe em todo o estado. Os roubos, que também haviam diminuído nos últimos anos, voltaram a crescer. Houve também crescimento nos índices de outros crimes, mas esses dois que citei - roubos e homicídios - são particularmente graves, não só pelo impacto que geram na sociedade, mas porque são crimes pelos quais a polícia é premiada quando diminuem. Ou seja, se eles não conseguem reduzir nem os crimes pelos quais são premiados, com certeza estamos numa situação de crise. E a UPP é uma crise dentro da crise mais ampla.
Princípios: O senhor coordenou uma pesquisa muito importante sobre as UPPs, que resultou no relatório Os Donos do Morro. Esse estudo foi levado em conta pelo governo estadual para corrigir rumos do projeto?
Ignacio Cano: A gente vem discutindo com eles durante um tempo, inclusive depois do relatório fizemos uma consultoria para o governo. Produzimos um sistema de monitoramento e avaliação para as UPPs, mas nunca foi implantado. A conjuntura mudou e, enfim, agora, em ano eleitoral, com certeza nada vai acontecer. Diante da crise nas UPPs, o que o governo fez- Chamou de volta o modelo do BOPE [Batalhão de Operações Policiais Especiais]. Chamou oficiais do BOPE, incluindo o major Edson, da Rocinha, tristemente conhecido no caso Amarildo. Porque a ideia que eles ainda têm é: se dá errado, se não funciona, vamos voltar ao que a gente já fez. Então, a transformação foi muito parcial e a gente avançou menos justamente em áreas onde era mais importante avançar. Algumas coisas eles implantaram, para sermos justos, mas muitas outras não. As questões centrais ficaram de lado.
Princípios: Qual, por exemplo?
Ignacio Cano: Uma coisa que a gente sempre defendeu foi que a UPP deveria se localizar em função do nível local de violência. Isso significaria várias coisas. Em primeiro lugar, o impacto maior na taxa de homicídios. Em segundo lugar, o nosso estudo mostra que o impacto da UPP não se dá apenas dentro da comunidade, mas no entorno também, de forma que, quanto mais espalhadas estiverem as UPPs, maior vai ser o impacto global. Se você concentra todas elas, o impacto vai ser reduzido. Em terceiro lugar, talvez mais importante, é que, se você escolhe a UPP de acordo com o nível local de violência, você está mandando um sinal para o mundo do crime no sentido de que quem usar muita violência vai perder o território. E o território é a base do negócio no crime do Rio de Janeiro. Domínio territorial para venda de drogas e etc. Então eu acho que isso poderia induzir as facções criminosas a trabalharem com níveis inferiores de violência. Mas, enfim, isso, por exemplo, nunca foi ouvido. O governo preferiu continuar com o planejamento que visa a algumas áreas da cidade. Eu acho que o que está por trás deste planejamento é uma visão, um projeto mais amplo para a cidade do Rio de Janeiro, como um centro internacional de turismo e de negócios. Para esse projeto o que acontece na Zona Oeste é quase irrelevante e é por isso que as UPPs estão onde elas estão hoje, infelizmente.
Princípios: Para priorizar os corredores por onde circulam turistas e onde as empresas se instalam?
Ignacio Cano: Não qualquer empresa. Empresas financeiras. A indústria, por exemplo, não é tão importante. A implantação em áreas específicas vai ao encontro de um projeto de cidade que esse governo tem que busca transformar o Rio de Janeiro em um centro internacional de turismo e também de negócios e comércio.
Princípios: E qual deveria ser o eixo do projeto?
Ignacio Cano: Para nós e para um setor dentro da polícia, as UPPs são uma grande chance para transformar o modelo de segurança e para reformar a polícia. Para sair da velha guerra contra o crime, que produziu e produz ainda tantas vítimas e que nunca trouxe nenhum benefício para a cidade, e entrar em um outro paradigma de segurança no qual o objetivo seja a proteção das pessoas e não a guerra ao crime.
Princípios: Seria uma visão desmilitarizada da polícia...
Ignacio Cano: Desmilitarizada, sim. Não só da polícia, mas da Secretaria (de Segurança Pública). Hoje em dia discute-se muito sobre desmilitarização da PM. Eu sou a favor! Os praças também são a favor. Agora, a gente vê a Polícia Civil no Rio, por exemplo, com um veículo blindado exatamente igual ao do BOPE, e faz as mesmas operações que o BOPE. E é uma polícia de investigação, civil. Desde quando blindado investiga- Portanto, o que está militarizado não é apenas a PM, é o conjunto das políticas de segurança. A UPP seria uma grande chance para transformar esse cenário e a gente ficou muito aquém nesse projeto de transformação.
Além disso, a formação policial ainda é muito deficiente e muito ancorada no velho modelo. Formação policial ainda é muito exercício físico, que sequer é visto como uma ferramenta de saúde pública, de saúde no trabalho. É simplesmente um critério de entrada para eles serem muito másculos.
Princípios: Existe uma evidente estratégia de colocar soldados novos, supostamente -ainda não corrompidos-, para atuar nas UPPs. Como o senhor avalia isso?
Ignacio Cano: Optaram por soldados recém-formados desde o início, pela ideia de que seriam menos corruptos etc. Mas não no comando. Como disse, cada vez que há crise eles chamam para comandar as UPPs pessoas com o perfil mais operacional, mais tradicional, mais do BOPE. Alguns de fato vêm do BOPE. Durante um tempo, por exemplo, o comandante das UPPs, o coronel Paulo Henrique, era alguém saído do BOPE. Enfim, o BOPE tem que participar na fase inicial, não há dúvida nenhuma. Mas, a ideia de que quando temos crise chamamos os caras do BOPE significa que não estamos conseguindo mudar o modelo, não é- E que os policiais não acreditam no projeto UPP. Segundo mostram várias pesquisas do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC), a maioria dos policiais de UPP, na verdade, preferia trabalhar fora delas. Isso é um problema muito sério para a legitimidade interna do projeto.
Princípios: Isso dificulta o estabelecimento de laços com a comunidade, que seria um diferencial da UPP?
Ignacio Cano: Exatamente. A relação com a comunidade em alguns lugares é razoável; em outros, é tensa; e em alguns lugares é catastrófica! O que ocorreu em Manguinhos, por exemplo, onde houve vários ataques recentes, teve muita repercussão, mas as pessoas não estão sabendo que há pelo menos um ano estamos recebendo denúncias gravíssimas de intervenções policiais, morte de garotos... Então, se a gente não consegue fazer com que a comunidade perceba essa polícia como própria, como uma polícia que está lá para protegê-la, não resolve nada.
Os que apoiam a UPP apoiam criticamente. E não há uma opinião homogênea. Os jovens, por exemplo, não gostam porque não conseguem fazer funk, porque a polícia continua achando que o funk é criminoso, porque não pode ter barulho depois de um certo horário. Então a juventude não gosta. As pessoas mais idosas, mais pacatas, gostam mais. Mas é uma visão crítica.
Princípios: Não há nenhuma iniciativa para tentar superar este problema de animosidade entre polícia e comunidade?
Ignacio Cano: As iniciativas são localizadas. Depende mais do comando da UPP local do que propriamente de uma orientação geral. O comando da UPP ainda é central na relação entre a polícia e a comunidade. Vou citar um exemplo que vivenciamos. Pediram para mediarmos uma situação na UPP do Fallet, porque a situação lá era catastrófica entre a comunidade e a polícia. Houve morte de garotos e outros problemas que acompanhamos de perto. E aí fizemos uma mediação num contexto muito tenso. Falamos para a comunidade: -essa polícia está aqui pra proteger vocês.- Quase fomos linchados depois de dizer isso. Porque não correspondia ao que a comunidade sentia. A situação melhorou depois com a mudança do comando da UPP.
Então é um desafio enorme conseguir que a comunidade interiorize que aquela polícia é para eles.
Outro problema que nós temos é o seguinte: não há um esforço de integração das UPPs com o resto da polícia. E isso precisaria acontecer, pois não dá para manter a UPP indefinidamente. Pra se ter uma ideia de como é insustentável a situação, o número de policiais por habitante no Rio é entre dois e três para cada mil habitantes no conjunto do Estado. Nas UPPs, esse número vai para dezoito, dezenove. Então, isso em longo prazo é insustentável. Não vai ter policial suficiente para a demanda.
Princípios: E os policiais que não estão nas UPPs estão concentrados nos bairros de classe média. O resto da periferia fica descoberta.
Ignacio Cano: Exatamente. E, quando a gente pensa a cidade, uma coisa interessante é a seguinte: pessoas com maior poder aquisitivo, das classes média e alta ajudam a pagar com seus impostos a escola pública e o hospital público, mas, em geral, não os utilizam, preferem colocar os filhos em escola particular e pagar plano de saúde. Assim, pode-se dizer que há uma certa transferência de renda nessas áreas porque as pessoas com mais recursos ajudam a financiar serviços públicos dos quais não usufruem. Já na segurança pública, há uma dupla concentração porque a polícia é paga por todos, mas quem mais usufrui dessa polícia são os setores privilegiados. Eles têm acesso à segurança privada, mas ainda exigem e conseguem que o aparato público de segurança proteja primordialmente as áreas nobres. Se fôssemos transportar este exemplo para a educação é como se a classe alta mandasse os seus filhos para a escola privada, mas ainda assim exigisse que a escola pública estivesse localizada na zona sul. É uma lógica de dupla concentração.
Princípios: Como o senhor avalia a ordem de busca coletiva que um juiz concedeu autorizando a polícia a entrar em qualquer casa, sem motivo específico, no complexo de favelas da Maré?
Ignacio Cano: Um escândalo. É inadmissível! Não é a primeira vez que isso acontece e há pressão sobre os juízes para que eles deem este tipo de autorização. Eu sei porque os juízes já me contaram. Não é todo dia, mas não é uma coisa excepcional. Milhares de pessoas moram lá e a polícia pode invadir qualquer uma dessas casas. Imagine se isso acontecesse no Leblon! Cairia a República. Pelo menos o governo do Estado do Rio cairia, porque é inadmissível, é um desmantelamento do Estado democrático.
O mandado de busca, por definição, é um mandado específico. Se não, não seria mandado de busca, seria livre autorização da polícia para agir onde ela quiser. Então, o mandado tem que dizer: -neste lugar, nesta casa, essa pessoa, em função desta investigação-. Se o juiz concede um mandado genérico é como se ele não tivesse mais mandado, é como se não tivesse mais controle judicial.
O mandado de segurança coletivo é um acinte contra o princípio básico da presunção de inocência e da preservação dos direitos individuais em face da investigação. Esse equilíbrio que tem que haver entre os direitos individuais e investigação policial. Aí não tem nenhum equilíbrio, e as pessoas acham normal. Nós tivemos, pelo Conselho, reuniões muito duras com o comando anterior da Polícia Militar e eles diziam -professor, o que vocês querem que a gente faça- Que a gente não cumpra com o nosso trabalho--. Nós retrucamos: -o trabalho de vocês não é violar lei, violar Constituição!-. E eles insistem: -Não, mas tem um monte de arma aí que a gente tem que procurar.- Mais grave ainda. Não é só uma coisa ilegal, imoral, mas é uma burrice profunda, porque o trabalho da polícia depende fundamentalmente da confiança das pessoas, das informações que as pessoas fornecem.
Princípios: O crescente discurso de direita contra os direitos humanos, do tipo que espalha absurdos como -bandido bom é bandido morto- e defende grupos de justiceiros... de certa forma acaba referendando este comportamento da polícia, não é mesmo?
Ignacio Cano: Sem dúvida. Tem uma pesquisa da Secretaria Nacional de Direitos Humanos, publicada em 2008, que mostra que 32% dos brasileiros concordam totalmente com a frase -bandido bom é bandido morto- e 11% concordam parcialmente. Ou seja, temos 43% da população apoiando extermínios. Então, caras como (o deputado Jair) Bolsonaro não se elegem a si mesmos, tem um monte de gente que os escolhe e isso é um processo de transformação que a gente precisa encarar. Agora, se eu sou um gestor da segurança e sei que a vida dos meus policiais e a tranquilidade dependem da confiança das pessoas, se eu entro chutando porta, eu estou atirando no meu próprio pé. Então, inclusive do ponto de vista da segurança mais tradicional, fazer isso é uma grande burrice. Mas eles não conseguem sair disso, porque as elites, e parte da população, acham que é isso mesmo: segurança pública é guerra, e guerra se faz assim. Tem que chutar porta, tem que procurar as denúncias seja lá onde for. Isso é um erro estratégico.
Princípios: Puxando para um exemplo recente, com isso que está acontecendo no complexo da Maré você acha que o governo age certo mandando tropas federais para lá?
Ignacio Cano: Eu acho que o Exército não tem uma função de segurança pública, é um desvio de função. A doutrina é diferente. Há muitos paradoxos, porque, provavelmente, o exército brasileiro atua no Haiti respeitando mais os direitos humanos dos haitianos do que várias polícias militares no Brasil. Então há paradoxos, mas a função do exército não é essa, de atuar como polícia. Não se deve chamar, a princípio, forças militares para a função de segurança. Outra coisa é a força nacional. Por exemplo, a Polícia Federal etc. Agora, não é segredo para ninguém que a intervenção na Maré, basicamente, é para garantir segurança na Copa do Mundo e no deslocamento das pessoas entre o aeroporto e a cidade. É isso.
Princípios: Mas isso não é necessário?
Ignacio Cano: É, mas a gente não pode acreditar que foi uma operação para melhorar a segurança do Rio em geral, porque é algo pra Copa, eleição, enfim. Vamos ver até quando durará. Não é uma operação de longo prazo, é uma operação de curto prazo. O precedente do Morro do Alemão acho que é muito esclarecedor. Na época, eu me manifestei contra a operação do Alemão e fui uma voz extremamente minoritária. Muita gente falou -Estamos tomando o quartel--general do crime-. Continuamos nessa lógica militar. -Eles são o nosso inimigo é nós temos que tomar o quartel general.- Entrar no Alemão supôs: trazer forças militares durante muito tempo e comprometer um contingente militar muito elevado - o que não vai resolveu a situação porque o Alemão hoje continua fora de controle. Portanto, investiram recursos que poderiam ser usados para criar muitas UPPs em locais muito violentos (não que o Alemão não seja) e não resolveram o problema. Mas, na época, a opinião pública apoiou porque achava que era a tomada dos territórios centrais do inimigo. Então, a gente tem que acabar com essa lógica. A lógica da intervenção tem que ser para onde a gente pode preservar o maior número de vidas. Onde vai conseguir diminuir o número de homicídios. Caso contrário, vamos apenas procurar o efeito simbólico de golpear. Inclusive nas últimas semanas e meses, com essa crise das UPPs e da segurança pública do Rio de forma mais ampla, muita gente, muitas matérias jornalísticas, estão nessa linha de -ah, tem que dar o troco.- Não existe troco, não estamos combatendo pela honra dos exércitos. Estamos combatendo pela segurança da população. Aliás, -combatendo- nem é a palavra certa.
Princípios: Aquela segunda fase das UPPs de levar serviços públicos para a comunidade não está sendo efetivada?
Ignacio Cano: Não. Em algumas comunidades houve um investimento razoável; em outras, um pequeno investimento; em muitas, não houve investimento nenhum. Agora, eu sou crítico também dessa lógica. E venho manifestando isso há algum tempo. Já conversei sobre isso com o Ricardo Henriques, da UPP Social. Eu acho a lógica de -uma vez pacificado vamos investir socialmente- é uma lógica equivocada. Primeiro: não é verdade. Toda a vida investiu-se em locais não pacificados. Favela, bairro ou parque, em qualquer lugar cabia oportunidade de investimento público. E, de fato, as melhores condições de habitabilidade, de saneamento das comunidades se dão sem pacificação nenhuma. Então, não é verdade que é preciso ter UPP paras investir. Dois: se a gente só investe onde está pacificado significa que estamos condenando as áreas não pacificadas, que são a maioria, a continuarem na violência e miséria. Então, a lógica de investimento deveria ser um investimento de acordo com as carências das pessoas e não casada com a lógica da pacificação. Sempre dissemos: -olha, tem que entrar com polícia só no início, mas tem que entrar com escola, com hospital...- Todos concordamos com isso. Mas o problema é que se a gente aceita que melhorias urbanas e sociais estão atreladas à intervenção de segurança e a intervenção de segurança é muito desigual, a gente tá aumentando a desigualdade. Foi o que eu falei para o Ricardo Henriques na ocasião: -Ricardo Henriques, se eu sou um jovem da zona oeste, que razão eu teria pra apoiar as UPPs quando os investimentos sociais vão ser dirigidos, sobretudo, às áreas pacificadas que nunca vão ser a minha- O risco, inclusive, mais macro das UPPs é tornar o modelo de segregação do Rio, que é um modelo muito particular, com pequenos territórios, de alta e baixa renda, convivendo em espaços relativamente reduzidos. Segue o modelo tradicional de centro e periferia, com o centro pacificado com maiores condições de vida e uma periferia violenta e pobre. E em termos das UPPs gera também, sobretudo em áreas nobres, uma revalorização dos terrenos muito grande, favorecendo a especulação imobiliária.
Essa intervenção do Estado faz com que o valor do imóvel, o valor do território, o preço do solo, subam muito e corre o risco, também, de mudar as populações. Expulsar as populações mais pobres e atrair populações mais ricas. Esse processo pode acabar nisso, centro pacificado e periferia pobre e violenta. Mas, agora, até esse centro está em crise. A crise atual não é só uma crise ao modelo seletivo, é uma crise no coração, do cerne do projeto que está agora sofrendo retrocessos, casos de violência, mortes de policiais, mortes de civis.
Princípios: O projeto da UPP teve inspiração em experiências ocorridas em outros países. Apenas copiaram o modelo ou adaptaram para a realidade do Rio- Ele poderia ser aplicado também em outras cidades brasileiras?
Ignacio Cano: Acho que ele foi concebido, sim, para a realidade do Rio. Tanto é que quando as pessoas perguntam para a gente -será que não daria pra implantar em tal lugar-- dizemos que só faz sentido UPP se houver controle territorial por grupos armados e tiroteios constantes. Se você não tiver essa situação, a UPP é um investimento muito caro e que não necessariamente resolve seus problemas. As UPPs são um projeto para combater o tráfico, basicamente para o tráfico.
Outro tipo de dominação que nós temos no Rio: grupos de extermínio. O grupo de extermínio não controla a entrada nem a saída do território, mas está todo dia lá com o fuzil. O grupo de extermínio vai de noite lá e mata quem acha que tem que matar. Então, colocar UPP, por exemplo, em uma área de extermínio, provavelmente não vai conseguir evitar essas mortes e vai sair muito caro.
Um outro problema do projeto é que a Polícia Civil nunca foi incorporada nele. Sempre foi, e ainda é, um projeto da PM. Claro que a PM tem que ter um papel central, mas a Polícia Civil, a investigação, tem que ter um papel no projeto. Sugerimos ao governo a criação de algumas delegacias especiais de investigação para UPP, para pegar os casos mais graves e resolver logo. Eles nem responderam à sugestão. Enfim, acho que o projeto foi desenhado, sim, para a nossa realidade, mas continua no piloto automático, sem ajustes, sem uma melhor focalização. E o que nós estamos vendo hoje é o desgaste de um projeto que não conseguiu ir para onde deveria. Mas, certamente, é uma alternativa muito melhor do que a gente tinha antes.
Princípios: Várias unidades de UPP foram atacadas. Existe uma lógica comum para estes ataques ou cada local tem uma motivação?
Ignacio Cano:: É uma história complicada. Ataques à UPP existem há muito tempo, não são de agora. Agora concentrou, mas a percepção é de que antes não existia nada e agora estão atacando todas as UPPs. Existiram ataques sobretudo em determinadas regiões: Alemão, Manguinhos e acho que Lins. O governo apresentou isso como um ataque contra as UPPs no seu conjunto, e usou isso como argumento para discutir sobre ajuda federal e, no final, a ajuda federal nem sequer foi para essas UPPs atacadas, foi para a Maré. É preciso olhar para isso com muito cuidado, porque, por exemplo, da outra vez a situação que deflagrou a intervenção no Alemão, na ocupação de 2011, foram aqueles incêndios a carros. Estavam queimando vários carros em vários lugares da cidade. Isso foi apresentado como um ataque às UPPs. Isso não é uma versão muito sustentável. Primeiro, porque se tivessem decidido atacar as UPPs, teriam atacado antes das eleições, para colocar o governo contra a parede, não depois. E, segundo, porque aqueles ataques não eram contra PMs da UPP. Não faz sentido queimar carro em um lugar qualquer da cidade para atacar a UPP. Mas foi essa a desculpa que o governo usou.
Princípios: A política de segurança pública do governo do Rio hoje está basicamente focada nos problemas das comunidades. Vocês, no grupo de estudos daqui da UERJ, têm propostas ou políticas de segurança específicas para o conjunto da cidade?
Ignacio Cano:: Sim, a gente faz muitas propostas. E, embora a UPP seja mais visível, tem outras políticas também muito importantes. A criação de metas para os policiais para reduzir três indicadores de criminalidade é um dos exemplos. E a introdução das mortes pela polícia no indicador de homicídio foi essencial para inibir a violência policial. Em 2007, a polícia do Rio reconheceu que matou 1300 pessoas. Matou muito mais, com certeza, mas reconheceu 1300 casos. No ano passado, foram 400. O número ainda é elevadíssimo, maior do que em qualquer outro Estado, mas houve uma redução importante. Em comparação à população e ao contingente policial, a PM do Rio mata muito mais do que a de São Paulo. A estratégia aqui é a guerra.
As pessoas não têm muita noção, mas foi essencial a criação da divisão de homicídios. Tem várias políticas que estavam dando certo, o problema é que ficaram no piloto automático, ninguém avaliou, ninguém corrigiu. E eu acho que houve uma certa ingenuidade em pensar que essas políticas sozinhas iam conseguir uma diminuição dos índices ad eternum. Por exemplo, se eu crio premiação policial para diminuir determinado crime, vou conseguir que a polícia focalize sua atividade nesses indicadores. O que é bom. Agora, depois que a polícia fez isso, é preciso dar passos adiante. Não é porque você continua premiando que os índices vão continuar diminuindo necessariamente. Então, acho que houve esse problema.
Outra questão: falta uma política para a área de milícia, para recuperar o controle de território da milícia. Falta uma política para transformar a polícia e esse paradigma que está aí de vez num paradigma de proteção da comunidade. Então, falta muita coisa. Mas a gente estava indo num rumo positivo, agora a gente não tem mais certeza disso.
Princípios: A corrupção policial é um problema crônico no Rio?
Ignacio Cano:: É um problema não só da polícia, mas do aparato do Estado no geral. Eu acho que a corrupção é endêmica no Brasil, em especial no Rio de Janeiro. Tem vários indicadores disso. Os dados da Ouvidoria de Polícia mostram que a proporção de casos de corrupção mais alta é no Rio de Janeiro. O INSS, por exemplo, tinha uma força tarefa contra a corrupção, e a corrupção mais elevada era também no Rio.
Princípios: Como você vê o papel da mídia na cobertura desses temas policiais e de segurança pública?
Ignacio Cano: É ambíguo. Por um lado, se não tivéssemos a mídia, estaríamos muito piores. A mídia tem um papel central na divulgação das denúncias. Mas, por outro lado, tem um papel negativo nessa cobertura ainda muito sensacionalista e muito pautada para casos individuais. Para eles, importa mais os casos de grande repercussão do que os índices, por exemplo. Devia ser o contrário. Porque nossa segurança depende muito mais da estatística dos homicídios do que dos casos de grande repercussão, mas a mídia procura uma história, uma história dramática, e pauta a cobertura por isso. E o que acontece em geral, com algumas exceções, é que os casos envolvendo pessoas de maior poder aquisitivo, de maior visibilidade, têm uma cobertura mais ampla. Então, um roubo numa área nobre gera muito mais repercussão do que numa área pobre.
Princípios: O caso da ajudante Cláudia Silva, arrastada por um carro da PM, se não tivesse sido filmado a história seria outra, não é mesmo?
Ignacio Cano: Completamente. Não teria dado a repercussão que teve, pois a cobertura da imprensa tende a ser muito antidemocrática. Ela privilegia crimes contra pessoas de alta visibilidade, em áreas nobres da cidade. E sempre foi assim no Rio de Janeiro. Lembro que, na época do Garotinho, morreu uma menina filha de um joalheiro. Aquilo pautou a imprensa durante semanas. E pauta a própria política pública, não só a imprensa.
Em nenhuma outra área eu acho que a imprensa tem tanto poder para pautar política pública. Esse poder tem que ser usado, mas tem que ser de uma forma mais criteriosa, privilegiando informações mais democráticas e que abordem a conjuntura da população, e não só o caso específico. A história tem que servir para exemplificar um fenômeno e não para nos concentrarmos apenas nela.
Outro problema é o discurso mais truculento, da repressão, do endurecimento penal. Esses programas especiais de segurança na TV costumam ser uma tragédia. Perpetuam essa guerra ao crime, essa política falida, estimulam a violação dos direitos humanos, a satanização dos criminosos, o desprezo pela vida dos outros, desde que o outro seja considerado inimigo. É preciso combater este tipo de programa pela via da informação e da educação. Não é possível proibi-los, então tem que esperar um dia em que as pessoas não assistam mais e as televisões percebam que outros tipos de programa têm mais audiência do que esses.
Princípios: O Laboratório de Análise da Violência está preparando mais alguma pesquisa sobre a situação da segurança pública?
Ignacio Cano: Estamos fazendo uma pesquisa sobre o impacto da violência no acesso à saúde nas favelas. Outra sobre o uso da força pela polícia, entrevistando policiais. E estamos preparando também uma pesquisa sobre programa de prevenção ao homicídio na América Latina. A gente nunca para.
*Cláudio Gonzalez, editor executivo de Princípios, e Caíque Tibiriçá, coordenador da seção fluminense da Fundação Maurício Grabois, entrevistaram o professor Ignacio Cano no campus da Uerj, na cidade do Rio de Janeiro, em 2 de abril de 2014