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Edição 130 > Prioridade para os interesses coletivos nas cidades
Prioridade para os interesses coletivos nas cidades
A Reforma Urbana tem de ser vista como instrumento para melhorar as condições da população e democratizar o acesso aos espaços públicos, priorizando os interesses coletivos nas cidades.

A gestão democrática é um aspecto importante nesse processo
Uma Reforma complexa
A política de desenvolvimento urbano contempla o planejamento e gestão do território, saneamento, regularização fundiária, habitação e a mobilidade, ou seja, alguns dos principais gargalos do desenvolvimento das cidades. As grandes catástrofes e os problemas urbanos que têm assolado diversas regiões do nosso país nos últimos anos estão ligados intrinsecamente à falta de planejamento na ocupação do solo e à falta de regularização fundiária, como também o manejo dos rios. Comunidades construídas em locais inadequados são reflexos da ineficiência do poder público no ordenamento da cidade e no combate à especulação.
O principal instrumento construído para democratizar o acesso à cidade é o Estatuto da Cidade, Lei 10.257/2001, que determina a elaboração de forma democrática dos Planos Diretores e disponibiliza uma série de instrumentos que, quando utilizados, auxiliam no combate à especulação imobiliária e fazem com que a terra urbana e a cidade possam cumprir a sua função social, como determina a Constituição de 1988.
Na esteira da construção do Estatuto da Cidade estão os marcos regulatórios do saneamento, mobilidade e habitação de interesse social, a construção do Ministério das Cidades e as Conferências e o Conselho das Cidades. Porém, passados praticamente 13 anos da criação desse avançado instrumento, poucas são as cidades que o colocam em prática.
A luta pelo desenvolvimento urbano é repleta de contradições, a construção de cidades mais justas e democráticas é um grande desafio. E entre os grandes desafios está o de avançar na construção de uma política de Estado e não somente em políticas de governo.
A construção do Sistema Nacional de Desenvolvimento Urbano é um instrumento fundamental para integrar as políticas setoriais entre as esferas de governo e entre as políticas de desenvolvimento urbano, no planejamento, financiamento e execução dessas ações. Este foi o tema central da 5ª Conferência Nacional das Cidades em que milhares de municípios no Brasil debateram e deliberaram sobre a política de desenvolvimento urbano que deverá ser a prioridade para o próximo período. Ficou claro que não basta criar normas nacionais que não possam, na prática, ser aplicadas nos estados e municípios.
Grandes recursos sem controle social
Recentemente, a presidenta Dilma Rousseff destacou que estão sendo investidos R$ 343 bilhões em dois grandes programas: O Minha Casa Minha Vida (R$ 200 bilhões) e o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) de Mobilidade Urbana (R$ 143 bilhões). Esses recursos muitas vezes são colocados em obras que não foram debatidas com as cidades e as comunidades afetadas. E, ao invés de se construírem pactos, nelas têm sido geradas mais especulações e desigualdades, produzindo-se cidade fora das cidades formais, aos setores de menor renda.
Sabemos que o programa Minha Casa Minha Vida era para ser uma medida anticíclica para manter a economia aquecida em um momento de crise econômica global, mas na prática ele substituiu todos os outros instrumentos que estavam sendo criados como política de produção de habitação de interesse social, e inclusive esvaziou os recursos que deveriam ser destinados ao Fundo do Sistema Nacional de Habitação de Interesse Social (FSNHIS).
O fato é que esses recursos, na maior parte das vezes, têm sido direcionados diretamente aos municípios e estados, utilizando-se unicamente critérios políticos sem levar em conta o que tem sido construído nesta última década. Além de não ser educativa essa prática fragiliza a necessidade de fortalecer a cultura de planejamento e participação.
Por outro lado, o Ministério das Cidades e o Conselho Nacional das Cidades têm sido enfraquecidos nas decisões políticas. No governo Lula os PACs, o Minha Casa Minha Vida eram definidos na Casa Civil. Na gestão da presidenta Dilma, no Ministério de Planejamento esta medida mostra a prioridade dessas ações, porém indica que - ao contrário do que estamos construindo - temos ainda políticas de governo e não de Estado. O Conselho Nacional das Cidades na realidade não exerce nesses programas o controle social.
O valor da terra urbana
Neste contexto, o Minha Casa Minha Vida acentuou a exploração imobiliária nas cidades. Com a grande demanda de terra para a construção de moradias - principalmente para famílias com renda acima de R$ 1.600,00 -, houve um grande aumento do valor da terra urbana.
Isto tem gerado um grave problema, pois como não há terra em preços razoáveis - as moradias de interesse social, para famílias com renda abaixo de R$ 1.600,00 -, faz com que se tenha de construir infraestrutura de cidade fora da cidade. Essas famílias muitas vezes têm sido colocadas em locais com precárias condições de mobilidade, saneamento e com falta de equipamentos públicos de saúde, educação etc. Em outros locais esse tipo de empreendimento não encontra quem se disponha a construir a moradia, pois o preço da terra inviabiliza o empreendimento. Enquanto isto, os vazios urbanos no centro das cidades, e em áreas nobres, continuam se valorizando, sem que se possa combatê-los, pois os instrumentos disponíveis no Estatuto da Cidade não são aplicados nos planos diretores.
Por outro lado, muitas obras de infraestrutura urbana têm servido para deslocar comunidades históricas que, apesar das precariedades na urbanização, vivem em locais próximos ao centro ou de forte valor imobiliário. Com o pretexto da realização dessas obras têm-se gerado verdadeiros expurgos para bairros mais periféricos e/ou mesmo para fora da cidade, através de diversos instrumentos. O comum nessas ações que têm acontecido em todas as regiões do Brasil é que megaeventos e megaprojetos são utilizados como desculpa, e os diálogos com as comunidades ou não existem ou são feitos de uma maneira muito pouco transparente.
Outro grande desafio para o próximo período está em priorizar a regularização fundiária em relação à construção de -novas cidades-. Com o Minha Casa Minha Vida a regularização fundiária foi regulamentada, mas não está sendo priorizada, não há, da parte dos governos estaduais e municipais, o menor interesse em regularizá-la, visto os deslocamentos de famílias de áreas consolidadas em função dos megaprojetos e megaeventos.
Para se avançar na Reforma Urbana com firmeza é necessário enfrentar a questão da terra urbana. As cidades reproduzem a relação do capital e, assim como o rentismo, impedem o avanço no fortalecimento da produção e do desenvolvimento. Por isso, somente conseguiremos aplicar os instrumentos construídos nas cidades em que a propriedade e a terra possam cumprir sua função social, seja ambiental para equipamentos públicos ou para a construção de moradias.
O desafio de tornar atrativo o transporte coletivo
Uma das questões na ordem do dia, principalmente depois das manifestações de junho e julho de 2013, é a mobilidade urbana. Há, atualmente, um transporte coletivo de pouca qualidade com tarifa alta, cidades engarrafadas - fruto de uma política que historicamente incentivou o uso do automóvel em detrimento do transporte coletivo de massas.
A Política Nacional de Mobilidade Urbana é um dos instrumentos mais avançados que conseguimos aprovar neste último período. Ela aponta para um trânsito e mobilidade com prioridade para o pedestre, o transporte não-motorizado e o transporte coletivo em relação ao transporte individual motorizado. Nas últimas décadas, sempre as principais obras priorizaram o deslocamento do automóvel. Hoje é necessário priorizar o transporte coletivo. Mas isto ainda sofre grande resistência nos gestores que, visando a políticas imediatistas, preferem construir uma faixa a mais para os carros a dedicar uma faixa exclusiva para o ônibus. Um exemplo ímpar é o caso da cidade de São Paulo que teve a ousadia de colocar isso em prática e avançar com essas faixas exclusivas em grande parte da cidade.
Neste sentido, grande parte das obras selecionadas no PAC Mobilidade é de transporte coletivo de massas, principalmente sobre trilhos: Metrôs e Veículos Leves sobre Trilhos (VLTs). E as obras rodoviárias são corredores para Bus Rapid Transit (BRTs, Trânsito Rápido de Ônibus, em português), faixas exclusivas e corredores de ônibus. Mas entendemos que parte desses recursos deveria ir, por exemplo, para qualificar, integrar e racionalizar os sistemas operacionais e tarifários de transporte coletivo. Mas algo fica claro: se o transporte coletivo não for atrativo as pessoas não vão deixar seu carro em casa. Assim também se o preço não for justo os trabalhadores têm fortes dificuldades para pagar a tarifa.
Talvez o maior avanço que podemos ter na Política de Mobilidade Urbana seja a elaboração, de forma democrática, dos planos de Mobilidade Urbana. Cada cidade terá o dever de articular o seu, que é um acordo, com as priorizações, ações e diretrizes de desenvolvimento da mobilidade do município, articuladas com o Plano Diretor. Nele, podem ser debatidos a questão da concessão do transporte coletivo, a qualidade do serviço e o valor da tarifa.
Planos municipais de saneamento
Na 5ª Conferência Nacional das Cidades, a presidenta Dilma Rousseff assinou o Decreto nº 8.141, de 20 de novembro de 2013, que institui o Grupo de Trabalho Interinstitucional de Acompanhamento da Implementação do Plano Nacional de Saneamento Básico (Plansab). Esse Plano foi publicado no Diário Oficial da União, de 6 de dezembro, com a aprovação de sete ministérios (Cidades, Fazenda, Casa Civil, Planejamento, Saúde, Meio Ambiente e Integração Nacional).
Com o Plansab, estão garantidos investimentos de R$ 508 bilhões no país nos próximos 20 anos para universalização do acesso aos serviços de abastecimento de água potável, esgotamento sanitário, limpeza urbana, manejo de resíduos sólidos e drenagem de manejo das águas pluviais e urbana.
A Lei nº 11.445/2007 estabelece as diretrizes nacionais e a Política Federal de Saneamento Básico e determina que todos os municípios brasileiros devem elaborar seus planos de saneamento. De acordo com a legislação vigente é responsabilidade da administração municipal organizar e prestar, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, os serviços de saneamento básico. A Lei estabelece também que os planos elaborados tenham prazos de 20 anos, avaliados anualmente e revisados a cada quatro anos. O Plano Municipal de Saneamento Básico é uma oportunidade para toda a sociedade conhecer e entender o que acontece em sua cidade. A Lei 11.445 estabelece ainda o controle social como um dos seus princípios fundamentais.
A necessidade do povo na rua
A Reforma Urbana tem de ser vista como instrumento para melhorar as condições da população, e democratizar o acesso aos espaços públicos, priorizando os interesses coletivos nas cidades. A gestão democrática é um aspecto importante nesse processo. A cultura do planejamento urbano somente vai se fortalecer se todos os segmentos das cidades decidirem se apropriar desse conceito, participando, colaborando, se sentindo parte atuante e protagonista dessa construção coletiva.
Movimentos como o Passe Livre e o Rolezinho não trazem pautas ou bandeiras novas para as cidades, mas são novos atores fortalecendo as bandeiras históricas dos movimentos organizados pela Reforma Urbana. Porém, esses movimentos jovens com suas características e ações diferenciadas fizeram com que outros segmentos e a imprensa voltassem sua atenção para essas bandeiras. E também acordaram o governo para a priorização de tais lemas. Podemos concluir que só será possível avançar com a participação popular, mobilização social e muita articulação.
Todos os avanços construídos no último período têm de ser aplicados. E, principalmente nas cidades, são fundamentais a pressão e a articulação dos movimentos urbanos, para que os gestores e parlamentares coloquem em prática as medidas necessárias para melhorar a qualidade de vida das pessoas. Isto num cenário em que outros segmentos pressionam para manter e ampliar seus privilégios e vantagens. A consolidação de um novo cenário é uma tarefa árdua e difícil, ao mesmo tempo em que as comunidades necessitam de respostas rápidas e eficazes para suas demandas históricas.
*Bartiria Lima da Costa é membro do Comitê Central do PCdoB, responsável pela Questão Urbana; integra os Conselhos Nacionais das Cidades e da Saúde e é presidenta da Confederação Nacional das Associações de Moradores (Conam)