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Edição 129 > A ascensão brasileira em xeque
A ascensão brasileira em xeque
Como a evolução recente do quadro geopolítico e impasses e dilemas a respeito do projeto nacional condicionam a estatura estratégica adquirida pelo Brasil na última década

O projeto brasileiro de tornar-se uma potência, emergindo como polo de poder no que resultará da atual transição no sistema internacional está em xeque. Antes de mais nada, pelo curso da evolução geopolítica internacional, onde há forte movimento por prolongar o status quo por parte das potências estabelecidas. Mas também por impasses e indefinições estratégicos do país num momento em que será necessário superar nova encruzilhada política para transitar ao Novo Projeto Nacional de Desenvolvimento.
O objetivo de tornar-se um dos polos no mundo multipolar que emerge deriva, primeiramente, da busca por lograr condições exógenas mais favoráveis para o curso do projeto nacional, uma vez que como um dos grandes atores no sistema internacional o Brasil terá melhor condições de defender seus próprios interesses e de seus aliados, evitando que outros constranjam ou contraditem as legítimas aspirações nacionais.
Neste início do século XXI, o Brasil viveu uma espiral de autonomia inédita na trajetória nacional. Posicionou-se buscando maximizar a janela aberta derivada do rebalanceamento do quadro de forças no mundo. No entanto, as aspirações estratégicas nacionais por aprofundar essa autonomia, logrando ascender ao grau de potência ou polo no mundo multipolar que emerge, são contraditadas, quer por forças externas, quer endogenamente, no qual poderosas forças políticas e sociais questionam a ambição brasileira de ter presença internacional condizente com sua estatura.
Essa obstrução à ascensão nacional parte, antes de mais nada, do modo como esta se realiza. Historicamente novas potências surgem pelo recurso à guerra ou resultante desta. A própria consolidação da ascensão dos Estados Unidos como hegemon do sistema internacional no pós-Segunda Guerra se deu assim.
Mas a atual transição de forças no sistema internacional contemporâneo ocorre de forma distinta, inédita e, por isso mesmo, é mais lenta e sujeita a contratendências. A antiga -periferia- do sistema passa a crescentemente fazer valer seu peso relativo. O que anima os grandes polos emergentes - notadamente os países BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) - é a agenda reformista onde se busca, ao contrário de posturas imperialistas clássicas ocorridas em outros momentos da história, gerar maior espaço para suas próprias políticas nacionais de desenvolvimento.
A contratendência em curso na transição geopolítica
No período mais recente, a evolução do quadro internacional tem tido como característica, ademais da resiliência da crise internacional do capitalismo, movimentos que buscam fazer vitoriosa contratendência em relação à tendência observada nesta primeira década do século XXI: a do declínio, ainda que lento e gradual, das potências tradicionais - nomeadamente os Estados Unidos e as da Europa - e a da ascensão de grandes países em desenvolvimento, sobretudos os BRICS, e entre estes especialmente a China.
A ascensão da -periferia- tem sido a grande marca do início do século XXI. Do final dos anos 1990 até recentemente, um em cada sete países em desenvolvimento superou o crescimento dos Estados Unidos em 3,3% ao ano, em média, pelo que, em 2013, pela primeira vez os -emergentes- responderam por mais da metade do Produto Interno Bruto (PIB) mundial em paridade de poder de compra.
A crise internacional, por certo, atingiu antes o centro do que a periferia - dado fenômeno intrínseco ao capitalismo relativo a seu desenvolvimento desigual que confere maior dinamismo relativo às -novas fronteiras- do capitalismo. Duradoura, entretanto, nos últimos anos registrou transbordamento para os países em desenvolvimento - ainda que não no grau observado nos países centrais, sobretudo na Europa, que sofre prolongada recessão e crise social. Mas o fato é que os BRICs, que respondiam por dois terços do crescimento do PIB mundial em 2008, responderam, em 2012, por menos da metade - fator que deverá manter-se estável nos próximos anos, segundo projeções do Fundo Monetário Internacional (FMI).
Por certo, a desaceleração dos -emergentes- acima produziu exageros, presentes, sobretudo, em interpretações americanófilas. Mas, de fato, nem os Estados Unidos voltam a ser motor da economia mundial - como anunciam mais com base em desejos do que na realidade alguns mais afoitos -, nem a desaceleração dos -emergentes- é tão brusca como estas tentam apresentá-la - a China, por exemplo, seguirá com crescimento relativamente elevado para seus padrões, de 7,5% do PIB.
A busca, pelos países centrais, de fazer vitoriosa uma contratendência na prolongada luta em curso por qual será o desfecho da transição tem marcantes características geopolíticas e geoestratégicas. Há notória reabilitação, na orientação estratégica dos países centrais - notadamente dos Estados Unidos -, de preceitos e teorias geopolíticas clássicas, sobretudo de autores que formulam as teorias da contenção.
Opera-se nova divisão de trabalho no âmbito da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan); enquanto os Estados Unidos encaminham-se decididamente para a política do pivot asiático - buscando obter a hegemonia na bacia do Pacifico, espremendo a China o quanto possível em seu próprio mar territorial -, os europeus, cada vez mais amuralhados em sua própria fortaleza, buscam encarregar-se de -estabilizar- seu longo e instável entorno regional - que vai do Sahel norte-africano até a Ucrânia, atual objeto de queda de braço estratégica entre Moscou e Bruxelas.
Nesse contexto, como nunca operações de regime change passam a ser utilizadas com maior frequência, numa escalada que segue roteiro que vai da demonização de seus líderes, pelo aparato propagandístico mundial e fomento de divisões internas nos países-alvo, até a intervenção direta propriamente dita. O caso recente da Líbia, e atualmente o da Síria e da Ucrânia, são exemplos latentes. Não se descarta a utilização do mesmo modus operandi em relação a outros países, inclusive os BRICS.
A -retirada- americana do Oriente Médio - alvo de queixas públicas de Israel e da Arábia Saudita - e a tentativa da presidência de Obama de resolver o dossiê iraniano respondem a necessidade de concentrar-se na tentativa de reverter a ascensão de grandes países em desenvolvimento - especialmente da China, mas também, de forma menos explícita, dos demais BRICS. Novas potências, que naturalmente passam a ser contestadoras do status quo anterior, passam a ser a prioridade estratégica no raio de ação da principal potência mundial. Assim, nesta virada estratégica norte-americana, reabilitam-se a atualizam-se doutrinas geopolíticas clássicas, como o almirante Mahan, o geoestrategista Nicholas Spykman e o embaixador George Kennan.
Uma importante novidade, derivada da evolução tecnológica, que permite maior espaço nesta manobra norte-americana é a produção de petróleo e gás baseado em xisto - que, a despeito de dúvidas quanto a sua durabilidade, tem permitido importante substituição de importação. Os otimistas chegam a falar em autossuficiência energética deste país já na década de 2020, fato com notórios efeitos estratégicos.
A centralidade da geopolítica, materializada pela retomada mais explícita da política de contenção aos polos emergentes por parte da principal potência mundial, se dá de forma multifacética, não se expressando apenas no terreno estratégico-militar.
Por exemplo, são nítidos os objetivos geopolíticos presentes nas negociações de regras econômicas levadas a cabo atualmente pelos Estados Unidos com o TPP (sigla em inglês para o acordo de Parceira TransPacífica) - que, incluindo o entorno chinês, exclui Pequim -, e o TTIP (sigla em inglês para Parceria de Comércio e Investimento Transatlântica, entre os Estados Unidos e a União Europeia). No plano hemisférico, a Aliança do Pacífico, surgida sob nítida inspiração do Departamento de Estado estadunidense, tem igual motivação estratégica: isolar o Brasil e o bloco de países sul-americanos mais autônomos. Como atestou recentemente um nada suspeito analista norte-americano próximo ao mercado financeiro, Jean Pierre Lehmann, -com o TPP e a TTIP, os Estados Unidos lideram uma contraofensiva para conter e isolar rivais econômicos como Brasil, Índia e China-.
Pressões por recuo estratégico brasileiro
Os três períodos presidenciais, iniciados por Lula em 2003, apresentam como legado-chave, ademais da mobilidade social vertiginosa, a ascensão internacional soberana do Brasil no mundo.
Registra-se, no período, o lançamento de importantes iniciativas relacionadas ao -entorno estratégico brasileiro-, em especial a Oeste (América do Sul) e a Leste (Atlântico Sul e África). Ao mesmo tempo, o Brasil engaja-se em iniciativas e alianças - das quais se destacam os BRICS - voltadas a reformar o sistema internacional. Em especial, na perspectiva brasileira, ganha destaque o objetivo de reformar o anacrônico Conselho de Segurança das Nações Unidas, que congela a realidade de 70 anos atrás, mas que segue sendo o centro de poder do sistema internacional.
Após doze anos, entretanto, o Brasil lida com ambiente externo crescentemente hostil a sua ascensão internacional, ao mesmo tempo em que se defronta com problemas internos para estabelecer-se como polo de poder no mundo. Assim, a ascensão brasileira esgota uma primeira etapa, necessitando claramente de renovar seus objetivos para aprofundar seu curso.
A ascensão brasileira carece, antes de mais nada, de uma coesão nacional maior em torno de seus postulados básicos, seus objetivos nacionais essenciais. Quanto menor esta coesão mais frágil esta será e maior margem de manobra os que a contestam terão.
Como observa José Luis Fiori, "a mudança de posição dentro da hierarquia de poder e da distribuição da riqueza internacional- foi obtida por -sociedades que se mobilizaram e atuaram de forma unificada, para enfrentar e superar momentos de dificuldades e suas situações de inferioridade, mantendo seu objetivo estratégico por longos períodos de tempo, independentemente das mudanças internas de governo".
A ascensão brasileira também é frágil por fatores objetivos
Antes de mais nada, de natureza estratégico-militar. A despeito de importantes avanços em curso no reaparelhamento das Forças Armadas e recomposição de base industrial e tecnológica de Defesa, o Brasil é um país sem capacidade militar relevante para defender seus interesses, se contraditado. Às vezes, inclusive, por autolimitação de capacidade estratégica, como é o caso da gratuita adesão nos anos 1990, sem qualquer contrapartida, a regimes restritivos como o Tratado de Não-Proliferação de Armas Nucleares (TNP) e o regime de controle de mísseis (MCTR).
A ascensão brasileira no sistema internacional também ocorre em bases econômicas frágeis. Os três governos iniciados em 2003 não lograram completar a transição do neoliberalismo a um Novo Projeto Nacional de Desenvolvimento. Apenas esboçaram esse Novo Projeto Nacional.
Condicionado por um pacto político estabelecido com o Plano Real, de subordinar qualquer outra questão à chamada -estabilidade da moeda-, há vinte anos o país permanece numa -camisa de força- que condiciona sua ascensão. Mesmo os governos progressistas de Lula e Dilma - dada a correlação de forças, por um lado, e a falta de convicções, por outro - não ousaram questionar este -consenso nacional-, inclusive pelo risco de verem erodidas as bases de sustentação política do governo.
Expressão de fragilização, nos doze anos de transição ocorre uma desindustrialização relativa da economia e reprimarização da pauta de exportação, fruto, sobretudo, de mais de uma década de câmbio sobrevalorizado e taxas de juros elevadas, além de problemas graves de produtividade que vão se acumulando, inclusive pela esgarçada infraestrutura logística e a insuficiente integração do território nacional.
Nos três períodos presidenciais, entretanto, a despeito de não completar a transição, ademais do crescente protagonismo brasileiro no mundo, investimentos sociais e estratégia de crescimento baseada no consumo logram constituir base social expressiva - sobretudo entre os trabalhadores - que, sendo sustentáculo político do atual projeto, deverá permitir um novo período de governo em outubro próximo.
Realizada de forma lenta e gradual, como se caracterizam as transições operadas no contexto singular da formação social brasileira, a iniciada em 2003 - tendo em vista especialmente baixo crescimento econômico registrado a partir do fim do ciclo de elevação nos preços das commodities (aproximadamente de 2004 a 2010) - tem sido objeto de pesada contestação de poderosas forças políticas e sociais, em especial daqueles setores mais polarizados pelo capital financeiro hegemônico.
No geral, as mesmas forças (a poderosa coalizão financista) que hoje falam de -esgotamento do modelo- e -fim de um ciclo- são aquelas que forçaram um recuo na transição de política econômica iniciada por Dilma - que, entre agosto de 2011 e outubro de 2012, derrubou a taxa de juros para o patamar mais baixo da história, 7,25%, em termos reais, cerca de 2%. A sabotagem teve componente externo: no 2º semestre de 2013, o país liderou, entre os emergentes, a fuga de capitais.
O modelo de inserção proposto pelos liberais
O bloco financista-liberal tem defendido o que um analista chamou de -novo ciclo de adesão à globalização-, a partir do diagnóstico de que o Brasil é uma -economia fechada-, fora das -cadeias globais de valor- e isolado e preso a um Mercado Comum do Sul (Mercosul) dominado por -bolivarianos-.
Aqui, antes de mais nada, é preciso compreender movimentos recentes que ocorrem e que, sem dúvida, terão impactos profundos sobre o curso do projeto nacional brasileiro. Refiro-me ao impulso normativo que caracteriza as relações econômicas globais contemporâneas que poderão criar pesadas novas condicionalidades para a autonomia do projeto nacional.
As atuais -mega-negociações em curso (os citados TPP e TTIP) envolvem pouco corte de tarifas de importação e exportação - já a níveis mínimos nos países desenvolvidos - e muitas regras e normas, tais como definições de barreiras fitossanitárias para bens agrícolas, padrões para produtos manufaturados, normas de propriedade intelectual, compras governamentais e até limitações para o papel de bancos públicos e empresas estatais. Ao definir normas restritivas no interior destes blocos econômicos que poderão surgir, desvia-se comércio dos que não aderirem para os que aderirem. Por exemplo, parte das exportações brasileiras seria substituída por terceiros no âmbito destes megablocos.
A adesão às condicionalidades e restrições que se gestam nestes blocos vincula e amarra as economias de países em desenvolvimento que aderirem ao projeto dos países centrais, limitando autonomia e margem de manobra para alavancar projetos autônomos de desenvolvimento. Assim, para o Brasil, a adesão a esses acordos limitaria imensamente a autonomia de política econômica ou aquilo que na literatura internacional é chamado de -national policy space-.
Exemplo recente é o processo que a União Europeia acaba de abrir na Organização Mundial do Comércio (OMC) contra o Brasil, questionando medidas de política industrial brasileira, como a política de preferência nacional aos carros produzidos no Brasil e as de desenvolvimento regional, como a Zona Franca de Manaus e as Zonas de Processamento de Exportações (ZPEs).
A mudança no modelo de inserção internacional nos termos propostos pelos liberais representaria, na prática, o fim do Mercosul.
Por exemplo, no contexto de enormes pressões sobre o governo Dilma, por acordo com a União Europeia a qualquer custo, propõem-se negociações a -duas velocidades- (isto é, sem a Argentina), no que representaria o fim da Tarifa Externa Comum (TEC), base da união aduaneira do Mercosul que, assim, retrocederia a um mero acordo de livre comércio. Estaria o Brasil, assim, no linguajar liberal, -livre- do Mercosul. Um -tiro no pé-, pois jogaria por terra o maior mercado de compra de produtos industriais brasileiros e, mais do que isso, liquidaria o Mercosul como vetor estratégico para um polo sul-americano.
Junto com a adesão a regras econômicas que restringem nossa autonomia de política econômica, outra mudança proposta é a vinculação às chamadas -cadeias globais de valor-. Identificando que a produção industrial moderna distribui suas cadeias de fornecimento pelo mundo, visando a obter vantagens comparativas, argumenta-se que a indústria brasileira, através desta vinculação, obteria salto tecnológico a partir das trocas como parte destas cadeias.
Vendido pelos liberais como panaceia, o encadeamento da indústria brasileira a cadeias globais teria como efeito aumento da dependência e diminuição da autonomia no domínio completo da produção de determinados bens. Se poderia ser uma solução em setores industriais menos complexos para aumentar exportações atar-se a -cadeias globais- é altamente questionável sobretudo em setores estratégicos de política industrial, na qual se buscam exatamente o inverso, isto é, obter autonomia na produção industrial - casos, por exemplo, do setor de fármacos e de Defesa.
Além disso, depositar todas as fichas nesse movimento desconsidera o porte industrial brasileiro, numa especialização indesejada num quadro em que a indústria brasileira é, todavia, caracterizada por sua diversificação.
Corre-se ainda o risco de amarrar a indústria nacional do país nos degraus mais baixos das etapas de produção, como se vê no caso mexicano com suas maquillas. Afinal, a participação em -cadeias globais- não necessariamente implica acesso a tecnologias avançadas. Por exemplo, estudo recente mostra que a montagem do Ipad e Iphone agrega pouco valor para a economia chinesa. Embora os produtos da Apple, incluindo a maioria dos seus componentes, sejam fabricados na China, os principais benefícios vão para a economia norte-americana, pois a Apple continua a manter o design do produto, desenvolvimento de software, gerenciamento do produto, marketing e as funções com altos salários nos EUA. Ou seja, a Apple continua com a maior parte do valor de suas inovações.
A defesa liberal da adesão incondicional do Brasil às regras normativas dos Tratados de Livre Comércio (TLCs) e suas pesadas condicionalidades à autonomia nacional e a defesa das cadeias globais de valor como panaceia para a inserção internacional resultam da atualização das velhas teses desta corrente política sobre especialização produtiva e vantagens comparativas. No mundo que vislumbram, só haverá espaço para três grandes produtores industriais: EUA, China e Alemanha. Ao Brasil caberia abrir mão de sua ambição de potência industrial do novo século.
O "problema" do Mercosul
Alvo predileto da corrente liberal é o Mercosul.
Sobretudo porque nos últimos dez anos, ainda que parcialmente, operou-se uma mudança de qualidade no bloco, que deixou de ser objeto exclusivo de trocas comerciais entre os vizinhos e passou a retomar gradualmente seu projeto original - que, pode-se dizer vem do pacto de 1985 - em ser instrumento da distensão estratégica entre Brasil e Argentina.
No plano comercial, estritamente, o Mercosul é um êxito. O comércio intrabloco multiplicou-se em mais de dez vezes em duas décadas, saltando de US$ 5,1 bilhões, em 1991, para US$ 58,2 bilhões em 2012. Gerou integração de cadeias produtivas em escala regional, especialmente da cadeia automotiva entre Brasil e Argentina. Em 2013 a corrente de comércio entre Brasil e Argentina alcançou o segundo maior volume em termos históricos (US$ 36 bilhões), atrás apenas, do registrado em 2011. Em 2013, a despeito da -crise- diária que se vê nos jornais brasileiros, as vendas para a Argentina cresceram 9%.
A despeito destes números, as críticas liberais concentram-se no -protecionismo- argentino - país que tenta reconstituir minimamente sua indústria, arrasada pelo neoliberalismo radical dos anos 1990 - e na necessidade de negociar acordos comerciais com terceiros em bloco, pela vigência da Tarifa Externa Comum.
Mas a -crise- do Mercosul é outra. De fato, há impasses que se acumulam e que exigem renovação do projeto, maior ambição.
Como tornar o Mercosul instrumento efetivo de enfretamento das assimetrias, da necessidade de integração das cadeias produtivas, de desenvolvimento industrial compartilhado- Fruto dessas vicissitudes, por exemplo, ao escrevermos este texto, em meados de fevereiro, todavia, não se realizou a Cúpula semestral de Chefes de Estado do Mercosul, que deveria ter ocorrido em dezembro último em Caracas.
Destes impasses, fruto, sobretudo, da limitada capacidade brasileira de iniciativa em relação à aceleração da integração sul-americana - cuja base é investimentos em infraestrutura, integração energética e produtiva -, tem sido criadas inúmeras dificuldades com pequenos países de nosso entorno, cujo dilema é esperar aportes do grande vizinho às suas aspirações nacionais pelo desenvolvimento ou aderir, como parte especializada de uma cadeia global, vivendo de suas -vantagens comparativas- - caso de países como Uruguai e Paraguai.
O Mercosul é ainda tensionado atualmente pela instabilidade nos dois principais países que o nucleiam junto com o Brasil: a Argentina e a Venezuela. Com estes dois grandes países sul-americanos, sob ataque especulativo do mercado financeiro e vivendo ações de desestabilização no plano político, vai se criando ambiente de instabilidade em nosso entorno estratégico, dificultando a ascensão de polo sul-americano.
Relançar projeto de ascensão internacional do Brasil
Um dos cinco maiores países do mundo - se considerarmos território, população e PIB combinados (ver quadro) -, o Brasil, definitivamente, não pode jogar na segunda divisão. Ao contrário, por seu porte e potencialidades, precisa ter ativa política em todos os temas globais. Precisará no próximo período superar vulnerabilidades nacionais e completar a transição para um Novo Projeto Nacional de Desenvolvimento.
A relação entre política externa e projeto nacional é nítida; a primeira procura atuar no jogo de forças internacional buscando obter condições mais favoráveis à consecução do segundo. Noutras palavras, cada país atua no cenário internacional buscando reunir forças que criem condições mais favoráveis a seu projeto de desenvolvimento.
No que diz respeito à inserção internacional, a atual coalizão de forças nucleada em torno da campanha de reeleição da presidente Dilma precisará neste ano de forte embate ideológico com a oposição financista-liberal, e relançar, a partir do início de 2015, nosso projeto de adensamento da presença brasileira em nosso entorno estratégico.
Para isso, precisará equacionar problemas básicos.
O primeiro deles - parte de grande debate nacional que tem sua dimensão sul-americana - é como financiar o projeto de ascensão e desenvolvimento compartilhado com nosso entorno, principal impasse do projeto de integração sul-americana e para adensar nossa presença na África, nossas fronteiras a Oeste e a Leste.
Os instrumentos atualmente existentes para isso - o Fundo de Convergência Estrutural do Mercosul (Focem) e a Agência Brasileira de Cooperação (ABC) - têm sérias limitações financeiras. Na América do Sul, a carteira de projetos em infraestrutura da União das Nações Sul-Americanas (Unasul) - sendo que a infraestrutura é pressuposto da integração - tem imensas dificuldades financeiras para ir adiante.
O problema da integração produtiva, criando cadeias regionais de valor em nível sul-americano - como se vê, em escala regional, por exemplo, entre os países do Sudeste asiático -, precisa mobilizar governo e setor produtivo no próximo período. Um exemplo foi o debate recém-realizado na Unasul para buscar a criação de cadeias produtivas regionais a partir da industrialização dos recursos naturais.
No plano nacional, estará em questão o problema de como crescer a taxas elevadas de crescimento econômico, como ocorreu em boa parte do século XX. Essa será a questão a ser enfrentada para, no plano externo, reverter a grita liberal por vinculação do Brasil a projetos hegemonizados por outros - como é o caso das atuais negociações de -comércio-.
Está em questão como iniciarmos um novo ciclo de desenvolvimento -do século XXI-, que permita ao Brasil, por um lado, industrializar seus vastos recursos naturais e, por outro, investir em cadeias produtivas baseadas em conhecimento, modernas e intensivas em ciência e tecnologia, como, por exemplo, da indústria de Defesa, que se caracteriza por atuar na fronteira do conhecimento tecnológico e por sua característica dual.
Para isso, evidente problema será a administração de câmbio favorável à indústria. Com câmbio valorizado, como ocorreu na última década, não há política industrial, mas apenas mitigação das dificuldades - como vimos nas três tentativas de política industrial nos últimos doze anos.
Enfim, serão dilemas que se apresentarão com força nos próximos meses, e atualmente representam problema que, nas últimas décadas, volta e meia ressurge diante dos brasileiros na forma de encruzilhada estratégica, onde uma opção ou outra poderá acelerar ou atrasar a realização de nossas imensas potencialidades nacionais.
LEGENDAS
Processo aberto na OMC questiona a Zona Franca de Manaus