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Edição 126 > A Reforma Política, a consulta popular e o diálogo da esquerda com as ruas
A Reforma Política, a consulta popular e o diálogo da esquerda com as ruas
As forças de esquerda devem aprofundar a década de mudanças dos governos Lula e Dilma priorizando a luta por uma Reforma Política profunda e democrática. A defesa de uma Constituinte exclusiva para a reforma responde diretamente ao apelo que temos ouvido das ruas. Recente pesquisa do Ibope mostra que 85% desejam a reforma e 78% defendem o financiamento público exclusivo das campanhas eleitorais

O Brasil vive um momento especial, em uma década de conquistas patrocinadas pelos governos do Partido dos Trabalhadores (PT) e seus principais aliados, como o Partido Comunista do Brasil (PCdoB), força que está ao nosso lado desde a primeira hora e efetivamente empenhada na redução das desigualdades no país. Depois que nossos governos promoveram a ascensão social de 40 milhões de brasileiros, reduziram significativamente a miséria e permitiram o acesso de milhões de jovens à universidade, entre outros avanços, as exigências cresceram. A sociedade quer avançar mais.
Nesse contexto, tivemos recentemente uma movimentação expressiva da sociedade: em junho, uma parcela significativa da população foi às ruas reivindicar maior participação e aprofundamento dos avanços que tivemos com os governos do presidente Luiz Inácio Lula da Silva e da presidenta Dilma Rousseff. A população nas ruas não quis retrocesso: o que defendeu foi que o país siga trilhando o caminho do avanço.
Saudamos essas manifestações, sobretudo o caráter progressista que se fez presente nas reivindicações, em estreita sintonia com nossas bandeiras. Bandeiras que se consolidaram na última década por obra das forças de esquerda.
Temos, entretanto, toda consciência de que a juventude e as novas gerações de trabalhadores nos observam de maneira crítica. Sabendo disto e sem subestimar as dificuldades, estamos convencidos de que nossos vínculos sociais e nossos compromissos programáticos possibilitarão, mais uma vez, dar um passo à frente em nossa luta pela democracia e pelo socialismo no Brasil.
Os protestos no Brasil tiveram em comum com movimentos vividos no mundo - a Primavera Árabe, as manifestações na Europa e o movimento Occupy, como apontou o sociólogo espanhol Manuel Castells - sua origem e seus resultados. Tiveram início na internet e ganharam corpo em razão da desproporção da repressão policial, sobretudo a que se verificou em São Paulo, cujo governo sob o comando do Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB) sabidamente não lida com os movimentos sociais, não sabe ouvir a contestação e não tem nenhuma aptidão ao diálogo.
Como resultado, as manifestações se amplificaram e expuseram em todo o Brasil uma insatisfação generalizada com o modelo político.
Este cenário, gestado por meio de mobilizações pela internet, desaguou em uma nova situação política. Espontâneas, as manifestações surgiram à margem das instituições tradicionais de representação e organização, mas, no conjunto, reagiram às condições de vida materiais nas grandes metrópoles. E sua confluência foi a rejeição ao sistema político de representação e às instituições herdadas da transição pelo alto, que encerrou o período ditatorial.
Seu saldo é então um desejo genuíno de que o país avance. Avance não só em setores como mobilidade urbana, saúde e educação, mas também avance em sua representação política e no modo como o sistema político responde aos anseios de uma população que a cada ano tem tido conquistas.
A energia necessária
Um dos passos seguintes, portanto, é a necessária energia para a promoção de uma verdadeira Reforma Política. Uma reforma que ataque efetivamente os problemas do sistema brasileiro, que amplie a participação popular, a transparência e permita ao Brasil seguir o virtuoso rumo atual, com sua população atendida em seus desejos por democracia.
Vale ressaltar que nada menos que 85% dos brasileiros desejam que se leve adiante a Reforma Política, como divulgou no último dia 6 de agosto o Instituto Ibope, em pesquisa contratada pelo Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral, que reúne Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, Ordem dos Advogados do Brasil e Associação dos Magistrados Brasileiros, entre outras entidades.
Fica não só claro que é um desejo expresso da sociedade, como também é vital que o PT, e os aliados à esquerda, se engajem na luta por essa reforma. Não podemos permitir que a vitalidade dos movimentos que ganharam as ruas seja capturada por pautas criadas pela direita. Pautas que se destinam a -turvar- o cenário e impor retrocessos. Pautas que buscam, sobretudo, desgastar o governo do Partido dos Trabalhadores e dos nossos aliados e não pretendem avanços, inserção da população nos processos decisórios ou transparência.
Positivamente, vivemos o contexto de um tempo de intensa pressão social sobre o Congresso Nacional e sobre todos os agentes políticos, reflexo direto das mobilizações. E devemos nos valer dessa energia positiva.
A presidenta Dilma Rousseff defendeu a realização de um plebiscito para a Reforma Política, tema que é caro ao PT e aos nossos aliados, como o PCdoB, já que sua realização significa que o povo entre em cena efetivamente e esteja à frente das mudanças de que o país precisa. Como bem apontou o sociólogo Castells, a presidenta Dilma é a primeira líder mundial que presta atenção, que ouve as demandas e propõe respostas às pessoas que estiveram nas ruas.
Nós sempre defendemos no PT a participação popular. Seguindo essa ideia, estamos coletando assinaturas em todo o país em apoio à promoção do plebiscito. A coleta de assinaturas permite também dialogar com a população e mostrar que, sem partidos políticos autênticos e fortalecidos, sofre a democracia.
Ao falarmos em Reforma Política, queremos apontar o que mudar na democracia brasileira e por que fazê-lo - muito diferente de adotar outra estratégia comum na direita, que é manipular abstrações, como sempre faz, com o intuito de mera disputa política que não ataca os focos dos problemas.
Um ponto fundamental é a remoção de qualquer obstáculo à participação popular, com a redução das exigências legais para a realização de plebiscitos, referendos e projetos de iniciativa popular em matéria legislativa.
Poder feminino
Propomos também a obrigatoriedade das listas partidárias, elaboradas democraticamente pelos partidos, com a paridade de gênero, alternando homens e mulheres. As listas vinculam o voto a programas partidários e não apenas a pessoas. E a paridade garantirá uma participação maior das mulheres na política, corrigindo uma grave distorção: elas são maioria na sociedade, mas têm presença ainda irrisória na política.
Quando se fala em listas partidárias é preciso demonstrar a sua viabilidade e os seus objetivos. Com as chamadas -listas abertas-, como se dão hoje as eleições no Brasil, cada candidato tem um caixa de campanha, com múltiplas fontes de recursos. A consolidação de uma lista partidária permitiria acabar com a distorção das eleições, que dá margem à corrupção eleitoral.
A lista fechada também permite o resgate da discussão ideológica, já que o eleitor vota num programa de partido. Democracia forte demanda partidos fortes e que tenham programas políticos, voltados à defesa de questões importantes para a sociedade. Como exemplo, vale ressaltar que nas eleições na Argentina funciona dessa forma.
Em quase todos os países desenvolvidos predomina o sistema de listas fechadas, em que os partidos realizam prévias para decidir quem serão os candidatos e quais suas posições nas listas.
O preço da democracia
A democracia tem custo: se queremos esse sistema - e esse é, sem sombra alguma de dúvida, o melhor sistema político - precisamos ter isso em mente. Por isso, propomos financiamento público exclusivo para as campanhas eleitorais. O espírito do financiamento público, por um lado, compreende que se preserve o interesse público nas relações políticas e institucionais. Temos hoje um cenário em que as doações de empresas se pautam muitas vezes pela busca por contrapartidas. Por outro, o financiamento público exclusivo significa que todo o dinheiro investido em campanha seja público, obrigatoriamente. Doações de pessoas físicas e empresas são proibidas e sujeitas à punição. Se, de um lado, a ideia parece ofensiva ao bolso do contribuinte, de outro, menos empresários e lobistas se aproveitariam do sistema. Os brasileiros, no entanto, já demonstram compreender a necessidade do financiamento público exclusivo: a mesma pesquisa Ibope, ao mostrar que 85% dos entrevistados são a favor de uma Reforma Política, revela que 78% consideram que o financiamento das campanhas eleitorais deve ser exclusivamente público.
Para pontuar alguns exemplos de outros países, lembro que na Alemanha, o financiamento público existe desde 1959, na forma mista, com reembolso de gastos eleitorais e subsídio público de doações privadas. As empresas respondem atualmente por apenas 5%, em média, das receitas partidárias - o que, inequivocamente, evita a corrupção e as doações eleitorais que visem depois à contrapartida por parte daquele que é eleito.
O mesmo ocorre nos Estados Unidos, em que a operação se dá por meio de um fundo público com doações dos cidadãos. Partidos podem receber financiamento privado direto, mas caso optem pelo sistema devem responder a estritas regras e controles de gastos.
Já a França proibiu, em 1995, as doações de pessoas jurídicas. Na Itália existe financiamento público desde 1974, e, em um modelo um pouco diferente, o México prevê que as doações privadas não podem superar os financiamentos públicos dos partidos.
Para garantir uma Reforma Política ampla, propomos a convocação de uma Assembleia Nacional Constituinte específica. Quem for eleito exclusivamente para aquele fim não ficará apegado à preocupação de alterar o sistema político eleitoral, visto que seu mandato se esgotará ao término da Constituinte.
Em suma, o nosso partido e as forças progressistas, como é o caso do PCdoB - após dez anos proporcionando mudanças que transformam a cada dia o país em uma nação justa e soberana -, têm agora uma nova tarefa no horizonte. Temos mais uma vez que apontar caminhos à sociedade brasileira, demonstrar os avanços possíveis e os instrumentos para levá-los adiante.
O PT nunca se curvou ao senso comum. Nunca desertou do bom combate. Foi com esse espírito que nos mobilizamos na década de 1980 pelas Diretas Já. Foi também com esse espírito que promovemos, em dez anos de governos dos presidentes Lula e Dilma, transformações profundas voltadas à melhoria das condições de vida de milhões de brasileiros e brasileiras. E com esse espírito, e o empenho que está no nosso DNA e no de nossos aliados, como o PCdoB, venceremos o discurso fácil e acomodado de que a Reforma Política não pode ser levada adiante.
* Rui Falcão é jornalista e bacharel em direito pela USP, presidente nacional do Partido dos Trabalhadores (PT) e deputado estadual em São Paulo.
LEGENDAS
A presidenta Dilma Rousseff se reuniu no Palácio do Planalto, em Brasília, com representantes de movimentos da juventude que lideraram os protestos de junho