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Edição 126 > A Reforma Política e a participação das mulheres
A Reforma Política e a participação das mulheres
Num contexto histórico de distanciamento feminino dos espaços de poder e de representação, impõem-se profundas e radicais alterações nas instituições. Uma das mais importantes delas é a que assegura a ampliação da participação política da mulher

O debate sobre a emergência da Reforma Política cresce e se amplia no país, principalmente depois das -jornadas de junho-. Esse é um processo que corresponde a uma tendência histórica. A mudança da estrutura institucional do Brasil, em geral, se deu a partir de convulsão e de grande efervescência popular. Se passarmos em revista os momentos em que os processos constituintes aconteceram em nosso país, poderemos comprovar esta verdade. Eles corresponderam a alterações estruturais da sociedade brasileira lastreadas pela sua mobilização. E exatamente nesses períodos é que surgem as propostas de reformas de base apresentadas pelos setores organizados para criar alternativas de enfrentamento dos impasses.
As conquistas das mulheres se inserem nesse contexto. Elas sempre ocorreram em sintonia com mudanças estruturais, em períodos de expansão democrática, de mobilização, e com o apoio dos setores avançados da sociedade. Estas conquistas significaram, na maioria das vezes, processos de ruptura e tiveram como pano de fundo a subversão de valores sociais.
O direito ao voto feminino, por exemplo, foi um subproduto da Revolução de 1930, em oposição aos valores das oligarquias rurais. Naquele período, a expansão da sociedade industrial-urbana se confrontava com a estrutura de poder dos coronéis, que asseguravam sua representação política através dos famosos currais eleitorais. A universalização do voto era componente importante para a ruptura da hegemonia rural do poder político. A intensa mobilização das -sufragistas- contou com uma necessidade objetiva de modernização do Estado brasileiro. O voto feminino foi resultante desses dois movimentos.
Não se pode dizer que no atual momento estejam em gestação rupturas estruturais ou institucionais. Mas, após uma década do novo ciclo iniciado com o governo do presidente Lula, o país está em busca de um projeto ousado que liberte a estrutura econômica dos resquícios do neoliberalismo, que radicalize na democracia, onde cidadãos e cidadãs possam sentir-se integrados à construção do novo Brasil.
Vive-se o maior período contínuo de democracia desde a Proclamação da República, sob um governo de coalizão, que tem elevado a condição de vida do povo brasileiro e resgatado dívidas sociais. -No entanto, é impossível negar a existência de um mal-estar na sociedade brasileira, que diz respeito a todas as instituições em seus diferentes níveis... As mudanças econômicas e sociais dos últimos anos não foram acompanhadas pelas transformações institucionais necessárias dos poderes do Estado, dos partidos e também dos meios de comunicação- (GARCIA ).
Os vigorosos protestos de rua, das chamadas -jornadas de junho-, demonstraram com muita precisão a necessidade de se repensar a relação entre a sociedade e o poder em todas as suas dimensões.
No que se refere às mulheres há dívidas acumuladas a serem -pagas- pela sociedade. -Ainda que a formalidade da cidadania política por meio do voto tenha sido conquistada pelas brasileiras em 1932, sua presença como sujeito político coletivo (...) só emergiu com o surgimento de um movimento de mulheres com caráter feminista a partir dos anos 1970, no bojo de um processo internacional de ressurgimento do movimento, marcado por mudanças na área do trabalho, na educação, no acesso à anticoncepção e por enormes mudanças culturais- (GODINHO).
Realidade contraditória
Neste contexto histórico de distanciamento feminino dos espaços de poder e de representação - impactado hoje pela nova situação da mulher moderna, cujo protagonismo na sociedade cresce a cada dia -, impõem-se profundas e radicais alterações nas instituições. Uma das mais importantes delas é a que assegura a ampliação da participação política da mulher.
É expressão dessa nova realidade, o país ter chegado ao pleito de 2010 elegendo para a Presidência da República uma mulher, cuja trajetória é oriunda da resistência pela liberdade. É relevante que, no primeiro turno das referidas eleições, cerca de 70% do eleitorado brasileiro tenham dado seu voto a duas mulheres: Dilma Rousseff e Marina Silva. Ressalve-se aqui que as duas incorporaram, no terreno da política, demandas avançadas da sociedade.
Ao mesmo tempo, é difícil compreender por que nas três últimas eleições nacionais, as bancadas do Senado e da Câmara Federal tenham estagnado. Em 2002, foram eleitas oito senadoras, mesmo número de 2010. Na Câmara Federal 42 deputadas em 2002, 46 em 2006 e 45 em 2010.
Fomos um dos primeiros países da América Latina a assegurar o direito de voto às mulheres, o que ocorreu em 1932. Desde então, os avanços têm sido insignificantes ante a dimensão da presença feminina neste país continental. Na verdade, as conquistas só foram retomadas quase 50 anos depois, após as jornadas das mulheres na década de 1980 e dos fóruns internacionais da Organização das Nações Unidas (ONU), já nos anos 1990.
A Lei 9.100/95 deflagrou a trajetória das cotas de gênero, para vagas de candidaturas de cada partido ou coligação, indicando o mínimo de 20%. Já em 1997, a Lei 9.504, que estabeleceu normas para as eleições, elevou este percentual para o mínimo de 30%. Atente-se que são vagas somente para candidaturas, e não vieram acompanhadas de outras medidas que pudessem ajudar na eleição efetiva de mulheres.
Num clima congressual mais suscetível às demandas femininas, aprovou-se em 2009 a Lei 12.034, que estabeleceu a destinação de -5% do fundo partidário à criação e manutenção de programas de promoção e difusão da participação política das mulheres-, e a diretiva de -reservar ao menos 10% do tempo de propaganda partidária para promover e difundir a participação política feminina-. Ficou assegurada, ainda, a obrigatoriedade do preenchimento das vagas estabelecidas pelas cotas, trocando o termo -deverá preencher- por -preencherá- (Revista do Observatório, SPM 2009).
Mesmo com avanços institucionais desse último período, é imensurável o déficit democrático que o Brasil tem com sua metade feminina. É evidente que este déficit é inerente a uma democracia ainda insuficiente para os desafios de uma Nação que precisa liberar as energias criadoras de sua gente. E é fruto de uma herança difícil de ser desconstruída. O Estado brasileiro é marcado pelo autoritarismo na elevada concentração de poder de sua República; pelo elitismo da sua representação eletiva, que se originou no voto censitário, onde o sufrágio e o poder econômico nasceram juntos; e na apropriação privada da coisa pública cujas históricas chagas da corrupção só agora vêm à plena luz do dia, na sua inteireza (MORAES).
Difícil ruptura para o novo sistema
Construir convicções na sociedade para garantir uma Reforma Política democrática não é tarefa fácil. Lá nos idos de novembro de 2000, o então deputado federal Haroldo Lima, do Partido Comunista do Brasil (PCdoB) afirmava em artigo do Correio Braziliense: -Não há dúvida de que o sistema eleitoral brasileiro necessita de mudanças. Em que sentido fazê-las é o problema. Desde o Império, em batalhas cíclicas, confrontam-se concepções diferentes sobre a forma de a sociedade escolher seus representantes-.
Há mais de 15 anos, propostas de Reforma Política tramitam no Congresso brasileiro. No entanto, as únicas mudanças relevantes na legislação eleitoral ao longo desse período foram a aprovação da reeleição - em 1997, passando a valer em 1998 para prefeitos, governadores e presidente - e a chamada Lei da Ficha Limpa que, embora aprovada em 2010, passou a vigorar somente em 2012, quando ficaram impedidos de concorrer políticos que tenham sido condenados, cassados ou renunciado para evitar a cassação (BBC Brasil). Apesar da inexistência de conquistas significativas nesse campo, na última década inúmeros projetos de reforma política ou eleitoral tramitaram no Congresso em 2003-2004, 2007, 2009, 2012 e 2013.
Em relação às mulheres, depois da conquista do voto e das cotas para candidaturas nenhuma mudança relevante ocorreu. Por isso, compreende-se que a ampliação de sua presença efetiva depende de alterações estruturais no sistema político e eleitoral que assegurem uma essência democrática. Depende também de uma efetiva participação das mulheres em todo o processo do debate da Reforma Política em curso. Atenta a essa necessidade, em audiência com o presidente da Câmara dos Deputados, Henrique Eduardo Alves, a bancada feminina solicitou e foi atendida com uma vaga, através da deputada Luiza Erundina, no seleto grupo de trabalho para tratar do tema, após as -jornadas de junho-.
As mulheres podem e devem
É longa e diversa a trajetória das mulheres, em todo o mundo, para a ampliação dos seus espaços de poder. Em geral, o patamar alcançado em cada parcela da população feminina se relaciona com seus processos históricos. Exemplo disso foi a ampliação da presença de parlamentares mulheres nos países da América Latina após suas vivências de redemocratização, com a adoção de cotas e de sistemas com listas pré-ordenadas. E também a significativa presença feminina em vários países africanos após suas lutas anticoloniais onde as mulheres tiveram papel destacado.
Há muitos aspectos a considerar. Para Clara Araújo, -maior ou menor tradição igualitária teria impactos nas chances de ingresso das mulheres na vida política. A tradição igualitária, diz ela, não se atém ao aspecto das instituições políticas, mas, sobretudo, ao peso que valores relacionados com a inclusão social e o reconhecimento da necessidade de ações orientadas por igualar direitos e espaços de homens e mulheres podem ter nas orientações da própria política- (ARAÚJO: 2011).
Não se pode dizer que há modelos de sistemas eleitorais que possam garantir essa inclusão feminina tão desejada. Em tabela apresentada pela União Interparlamentar, em junho de 2011, citando 14 países, encontra-se apenas duas nações que têm lista aberta: o Brasil com 8,7% de presença feminina no Parlamento; e a Finlândia com 42,5%. Os demais se dividem em seis países com listas fechadas e outros seis com listas flexíveis. À exceção do Brasil, todos os demais superam os 27% de presença feminina nos Parlamentos.
Há, no entanto, uma percepção de que alguns elementos que compõem a estrutura dos sistemas políticos e eleitorais criam melhores condições para que as mulheres conquistem efetivos espaços. Entre esses elementos se destacam o financiamento público para lhes dar acesso a recursos de campanha; listas pré-ordenadas que garantam cotas de eleitos através da alternância de gênero; e voto proporcional que assegure a pluralidade da representação - que são componentes favoráveis à presença feminina nos Parlamentos.
O desafio que se coloca hoje é fazer a sociedade compreender o elo que liga a participação da mulher nas estruturas de poder e seu impacto nas demandas do país. O Brasil, para crescer, precisa ampliar investimentos e se apoiar na energia criadora de sua população, qualificando seus trabalhadores, desenvolvendo sua pesquisa científica. Na população feminina há elementos decisivos para esses desafios. A População Economicamente Ativa (PEA) conta com enorme parcela feminina: 41,7%. Há u21ma presença elevada de mulheres nas academias. Em 2010, de 128 mil pesquisadores cadastrados na base de dados (CNPq/MCTi), cerca de 49% eram mulheres. Em 1995, de cada 100 pesquisadores 39 eram mulheres (LUNKES; PORCIUNCULA; MARTINELLE).
Estamos em tempo de colheita. É chegada a hora de realizar uma reforma política democrática que proporcione o avanço da participação popular; que diminua a influência das oligarquias e de grupos econômicos; que extermine as possibilidades de o capital ser um cabo eleitoral determinante.
* Jô Moraes é deputada federal pelo PCdoB-MG e atual coordenadora da Bancada Feminina da Câmara dos Deputados. E é membro da Comissão Política Nacional do PCdoB
** Alice Portugal é deputada federal pelo PCdoB-BA, ex-coordenadora da Bancada Feminina da Câmara dos Deputados. E é membro do Comitê Central do PCdoB
Referências bibliográficas:
ARAÚJO, Clara. As mulheres e o poder político: desafios para a democracia nas próximas décadas. O progresso das mulheres no Brasil 2003-2010. ONU Mulheres: entidade das Nações Unidas para a Igualdade de Gênero e o Empoderamento das Mulheres. Cepia: Cidadania, Estudo, Pesquisa, Informação e Ação. Rio de Janeiro, outubro de 2011, p. 90-136.
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Sites:
BBC Brasil. Conheça as mais recentes propostas de reforma política no Brasil. Disponível em: http://goo.gl/q9AIey . Consultado em: 26 de junho de 2013.
MARTINELLE, Déverson. LUNKES, Nayara. PORCIUNCULA, Camila. As mulheres e a pesquisa científica. Site Noticiência Digital Blog. Disponível em: http://noticienciadigital.blogspot.com.br/ . Consultado em 13 de junho de 2013.
LEGENDAS
Congresso Nacional com iluminação em tons de rosa
Posse da nova coordenação da Bancada Feminina na Câmara dos Deputados
Seminário As Mulheres e a Reforma Política (Brasília, 2011)