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Edição 126 > Reforma Política necessária, urgente e democratizante
Reforma Política necessária, urgente e democratizante
A democratização da vida política brasileira é quase um consenso nacional. Mas as propostas que estão em debate para a Reforma Política têm matizes diferentes, às vezes opostas aos anseios populares. Cumpre desenvolver um amplo esclarecimento sobre elas

A necessidade de construirmos uma Reforma Política ampla tem sido defendida por nós do Partido Comunista do Brasil (PCdoB) desde a redemocratização. Na Constituinte de 1988, nossos parlamentares já lutavam contra o então chamado -Centrão- para que houvesse liberdade de organização e, ao mesmo tempo, mecanismos de participação popular efetiva tanto no parlamento quanto nas instâncias formuladoras de políticas públicas do Executivo.
Mas a luta contra interesses assentados na máquina pública sempre foi difícel e árdua apesar de um aparente consenso, que alimenta muitos discursos e oculta propostas fortemente excludentes.
Faço este pequeno retrospecto para que tenhamos claro que a ressignificação de bandeiras de luta - instrumento usado pelo neoliberalismo - serve a interesses muito distantes dos defendidos pelo povo e pelos setores progressistas.
A título de combater a corrupção eleitoral são apresentadas propostas como a redução de partidos, cláusulas de barreira, proibição de coligações e outras distorções. E são argumentos que ignoram as imensas distorções que o nosso sistema político comporta.
Nosso sistema eleitoral proporcional de listas abertas, adotado desde 1935, sofreu apenas duas alterações significativas. A primeira na década de 1950 para vedar a candidatura de uma mesma pessoa em dois estados diferentes na mesma eleição; e a segunda, na década de 1990, para retirar do voto em branco a qualificação de voto válido para o efeito de cálculo do quociente eleitoral.
Além do Brasil, tal sistema é adotado na Finlândia, na Polônia e no Chile. Cada partido apresenta uma lista não-ordenada de candidatos e o eleitor vota no nome de um deles; os votos recebidos pelos candidatos da lista são somados e utilizados para definir o número de cadeiras conquistadas pelo partido; e estas serão ocupadas pelos candidatos mais votados.
Além da lista, questões centrais como o financiamento das campanhas sempre foram escanteadas e secundarizadas. O resultado do atual sistema político no país é uma enorme distorção de representação nos Legislativos de todos os níveis.
Em um país com aproximadamente 51% da população afro-descendente, temos uma participação no Congresso Nacional de apenas 8,5% de negros, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e da União dos Negros pela Igualdade (Unegro).
Do mesmo modo, é gritante a desproporção entre a participação de homens e mulheres nos espaços políticos. Nas últimas eleições, o Brasil elegeu apenas uma governadora e temos uma participação muito pequena de mulheres no Congresso. Somos 8,7% na Câmara; e 12% no Senado.
Este verdadeiro apartheid político é filho direto do sistema em que apenas o capital é responsável pelo financiamento das campanhas políticas.
No início do século passado, o marxista Antonio Gramsci destacava que uma estrutura econômica não é suficiente para manter-se por si mesma necessitando de um instrumento político-jurídico: -o Estado é o instrumento para adequar a sociedade civil à estrutura econômica-.
Isso explica em parte a dificuldade de estabelecermos um novo modelo de financiamento de campanha que impeça empresas privadas de financiarem as campanhas, o que seria imprescindível para a ampliação da participação política de jovens, negros e mulheres.
Manifestações
A proibição do financiamento de campanhas por empresas privadas e outras medidas passam necessariamente pela Reforma Política. Esta é uma compreensão do PCdoB e também dos movimentos sociais.
A pesquisa divulgada pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) mostra de forma inequívoca que o povo brasileiro aprova a proibição de doações de empresas privadas para as campanhas e quer que a Reforma Política tenha efeito já em 2014. Os números não deixam dúvidas: 85% dos entrevistados são favoráveis à Reforma Política e 78% querem a proibição das doações de empresas privadas.
As manifestações de junho, apesar das críticas à atuação de alguns segmentos e também da tentativa de incorporação de bandeiras estranhas às lutas de nosso povo, foram a face mais visível de que as barreiras e distorções à participação política estão a cada dia mais insuportáveis para grandes parcelas de nossa população. As bandeiras levantadas em centenas de cidades são as bandeiras que defendemos há anos.
Pois bem, apesar do esforço da grande mídia de redirecionar o foco das manifestações contra o governo Dilma - numa completa ressignificação da luta pelo Passe Livre -, amplas parcelas da nossa sociedade fizeram-se ouvir com as marchas em todo o país.
Um aspecto importante dessas manifestações foi destacado pelo cientista político Armando Boito Junior em artigo publicado no jornal Brasil de Fato: -O que se ouviu nas ruas foi um grito por -mais Estado-: subsídio ao transporte público, educação, saúde, nova regulamentação da lei do inquilinato. Em julho, quando o sindicalismo operário entrou em cena, o tom continuou o mesmo: imposição legal da jornada de 40 horas semanais, regulamentação estatal restritiva da terceirização etc. Aglutinada em torno da bandeira do -Estado mínimo-, a oposição burguesa neoliberal não tem nada a dizer àqueles que saíram às ruas-.
Além do estabelecimento de um verdadeiro canal de diálogo permanente entre governo e movimentos sociais, as manifestações de junho também alavancaram o debate sobre a necessidade da Reforma Política. A Ordem dos Advogados do Brasil e o Movimento Contra a Corrupção Eleitoral apresentaram um manifesto em que são elencadas propostas muito próximas às apresentadas e defendidas pelos comunistas.
Listas pré-ordenadas
Um dos aspectos defendidos pela OAB - e particularmente importante - é a lista fechada pré-ordenada. No sistema de lista fechada, cada partido apresentará à Justiça Eleitoral uma lista de candidatos pré-ordenada. E o eleitor poderá comparar, escolher e votar, na proposta apresentada pelo Partido. Esta proposta permite um aprofundamento do debate e posicionamento dos partidos, pois incorpora um conceito de dois turnos: no primeiro, para um partido; e no segundo turno em um candidato.
A lista pré-ordenada aprofunda a nossa democracia, e é uma síntese de boa parte dos anseios expressos nas ruas. É uma forma concreta de se garantir a maior participação das mulheres nas esferas de poder.
Esta proposta permite uma completa reorganização do nosso sistema de representação. O pesquisador Carlos Ranolfo de Mello destaca um aspecto desta mudança:
-(...) um novo fator, a mídia, torna possível o acesso dos políticos aos eleitores sem que estes tenham que necessariamente investir na construção de um partido ou de uma imagem partidária. Mais ainda, ao que tudo indica a competição política no país continuará se desenvolvendo no interior de uma estrutura de incentivos - materializada no sistema de lista aberta -, que torna a competição eleitoral uma disputa entre indivíduos e estimula a priorização de estratégias que favorecem a criação de laços entre os candidatos e os eleitores, bem como a afirmação de atributos pessoais em relação aos do partido (...) o atual sistema partidário continuará operando em um contexto onde é muito pouco provável que uma parcela expressiva dos eleitores passe a se identificar de forma mais consistente com os partidos e a utilizá-los como referência básica para suas escolhas eleitorais-.
A lista pré-ordenada é uma forma concreta de se garantir a maior participação das mulheres nas esferas de poder.
As cotas também são mais efetivas em garantir o aumento da representação feminina quando se exige algum tipo de alternância de posições entre os sexos, ou outro mecanismo para obrigar que as candidatas figurem entre as primeiras posições da lista ou entre as posições elegíveis - que são calculadas com base nas cadeiras conquistadas por um partido na eleição anterior, já que os partidos esperam ao menos manter as cadeiras na eleição subsequente. Isso significa que a posição das candidatas nas listas fechadas tem sido mais decisiva do que o número de mulheres constantes das listas partidárias abertas.
Exemplo bem sucedido na instituição de cotas é o da Argentina. Em 2004, foi aprovada uma reforma que introduziu no art. 37 da Constituição um dispositivo prevendo que a igualdade real de oportunidades entre homens e mulheres para o acesso aos cargos eletivos e partidários se garantirá por ações positivas na regulação dos partidos políticos e do regime eleitoral.
Além disso, a legislação daquele país determina que, na sequência estabelecida pela lista fechada de cada partido, deve constar pelo menos uma mulher para cada dois homens, sob pena de indeferimento do registro da lista. Dessa forma, ao menos dois dos candidatos que aparecem nas seis primeiras posições de cada lista partidária são mulheres. A representação feminina, nas eleições de 2007, atingiu 40% na Câmara dos Deputados, e 38,9% no Senado.
A França também promoveu uma reforma constitucional em 1999 com o objetivo de alcançar a igualdade política entre os sexos. Um ano depois, foi aprovada a Lei nº 2000-493 (Lei da Paridade), segundo a qual metade dos candidatos constantes das listas partidárias deve ser de um mesmo sexo, com alternância de posições entre homens e mulheres. Nos pleitos realizados com base no sistema proporcional, a alteração promoveu um aumento significativo do número de mulheres eleitas, que passaram a constituir 47,5% desses órgãos legislativos.
Desafios
A defesa dos partidos, da proibição do financiamento de campanha por empresas privadas, a votação em listas, e a plena possibilidade de expressão são propostas defendidas pelos setores mais progressistas. São medidas necessárias para o aprofundamento da nossa democracia. Nós do PCdoB lutamos há muitos anos por estas bandeiras e, ao contrário do que sugerem setores da mídia, as vozes das manifestações de junho reforçaram a nossa luta.
* Vanessa Grazziotin é farmacêutica, senadora da República pelo PCdoB/AM e membro do Comitê Central do PCdoB
Bibliografia:
BOITO Jr, A. -O impacto das manifestações de junho na política nacional-. In: Brasil de Fato, 02-08-2013.
CAVALCANTE, M. P. Hegemonia e formação da vontade coletiva em Gramsci, artigo apresentado no Seminário Gramsci e os movimentos populares. Disponível em: http://www.nufipeuff.org/seminario_gramsci_e_os_movimentos_populares/trabalhos/Margarete_Pereira_Cavalcante.pdf
MELLO, C. R. -Individualismo e Partidarismo em doze estados-. In: Revista Brasileira de Ciências Sociais, vol. 26, n° 75, p. 60.
LEGENDAS
Partidos de esquerda e entidades promovem ato político em defesa da Reforma Política (Brasília, 2011)