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Edição 126 > Reforma Política para ampliar ou restringir a democracia?
Reforma Política para ampliar ou restringir a democracia?
A proposta da presidenta Dilma de realização de um plebiscito para que os eleitores opinem sobre a Reforma Política foi bombardeada pela mídia conservadora e a oposição sob a alegação de que a questão é "complexa" para o povo opinar, numa evidente subestimação da capacidade de nosso povo. Na verdade, é receio da manifestação popular

A proposta da presidenta Dilma de realização de um plebiscito para que os eleitores opinem sobre a Reforma Política foi bombardeada pela mídia conservadora e a oposição sob a alegação de que a questão é -complexa- para o povo opinar - numa evidente subestimação da capacidade de nosso povo. Na verdade, é receio da manifestação popular.
Para avaliar a tendência da população brasileira sobre a Reforma Política a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) contratou uma pesquisa ao Instituto Brasileiro de Opinião Pública e Estatística (Ibope), cujos resultados foram divulgados recentemente.
A pesquisa indicou que 85% dos entrevistados se manifestaram a favor de uma reforma política. Sobre o financiamento de campanha por empresas 78% se manifestaram contra. A punição mais rigorosa ao -caixa dois- de campanha foi apoiada por 90%. Em defesa da eleição feita em torno de propostas e listas de candidatos 56% se manifestaram a favor. Opinaram a favor de um projeto de lei de iniciativa popular 92%. E 84% se manifestaram a favor de que a Reforma Política vigore para as próximas eleições.
Esta pesquisa colocou abaixo falsas formulações sobre a preferência popular em torno da Reforma Política. Demonstrou o grande interesse no tema e a manifestação contra o atual sistema eleitoral e a defesa de questões relacionadas a uma Reforma Política Democrática.
A crise de representação política, expressa nas manifestações de rua, colocou na pauta política do país o debate sobre a Reforma Política. E uma questão que divide as opiniões essa reforma diz respeito a qual seria a causa fundamental da crise de representação política.
Enquanto os defensores de uma Reforma Política Democrática identificam no financiamento privado de campanha a raiz da crise de representação política, os defensores da Reforma Política Antidemocrática estão preocupados com a governabilidade. Para atingir este objetivo pretendem uma redução drástica do número de partidos.
Financiamento público exclusivo e lista fechada de candidatos
O financiamento privado de campanha, sobretudo o financiamento por empresas, é a raiz da crise de representação. Os eleitos passam a defender seus financiadores e não seus eleitores - o que provoca uma justa revolta na sociedade.
A influência do poder econômico no processo político foi denunciada por várias pessoas que se manifestaram na Audiência Pública realizada no Supremo Tribunal Federal (STF) para discutir a Ação Direta de Inconstitucionalidade da OAB sobre o financiamento de campanha. A Ordem alegou que o financiamento de campanha por empresas é inconstitucional porque a Constituição estabelece que -todo poder emana do povo- e que empresa não é povo. Portanto, não pode influenciar na constituição do poder político.
Prestando depoimento perante o STF o deputado Henrique Fontana denunciou que os gastos gerais da campanha eleitoral de 2002 foram de 827 milhões de reais e na de 2010 de 4 bilhões e 900 milhões, num crescimento vertiginoso. E informou que, dos 513 deputados eleitos em 2010, 369 estão entre os que dispunham de mais recursos para suas campanhas.
Na mesma oportunidade, o diretor de Pesquisas do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj), Geraldo Tadeu, demonstrou que tem havido um aumento da contribuição de empresas. Em 2008 elas doaram 86% dos recursos da campanha eleitoral. Em 2010, 91,30% e, em 2012, 95,10%. Tais números indicam as causas do agravamento da crise de representação política.
Cada vez mais os eleitos se aproximam de seus financiadores e se distanciam do povo.
Comentando o financiamento de campanha, a Folha de S.Paulo, de 3 de julho de 2013, saiu abertamente em defesa do financiamento por empresas afirmando: -não faz sentido impedir que pessoas ou empresas colaborem com candidatos de sua escolha-.
Os que se opõem ao financiamento público argumentam, falsamente, que o financiamento público de campanha representará gastos ao poder público. Mas, o dito financiamento privado, na verdade é público. O empresário que faz o financiamento privado por meio do ilegal -caixa dois- recebe através do superfaturamento de obras, e de muitos outros mecanismos, um volume de recursos públicos muitas vezes maior do que sua -doação- de campanha. E quem paga isto é o contribuinte.
No entanto, o financiamento público de campanha exige um novo sistema eleitoral onde os recursos sejam destinados aos partidos e não aos candidatos. A solução para resolver este problema está na adoção do sistema proporcional com lista fechada.
O sistema proporcional, incorporado à Constituição brasileira, representou um importante avanço democrático em vários países de mundo. Ele se tornou uma necessidade em decorrência da incorporação de grandes massas ao processo eleitoral, com a ampliação do sufrágio universal.
No sistema proporcional, os partidos elegem um número de parlamentares proporcional ao número de votos que obtêm no processo eleitoral. Assim, um partido ou coligação que obtiver 30% dos votos terá, aproximadamente, 30% da representação parlamentar.
Falando sobre o sistema proporcional em seminário realizado na Universidade de Brasília (UnB), no ano de 1980, o ex-presidente Tancredo Neves afirmou: -Tenho para mim, com base na minha longa experiência de vida pública, sobretudo encarando o aspecto da realidade socioeconômica do Brasil, que o sistema proporcional é o único capaz, como instrumento de ação política, de promover a rápida democratização das estruturas e das instituições brasileiras. O sistema proporcional é realmente uma ação política que determina que as resistências reacionárias, conservadoras e imobilistas têm que ceder à pressão das reivindicações populares, fazendo que a história siga sua marcha implacável-.
Mas o sistema proporcional brasileiro adota a lista aberta de candidatos. Ou seja, a lista de candidatos não obedece a uma ordem. O voto é dado a qualquer dos candidatos da lista. Assim, a disputa eleitoral é feita em torno de projetos individuais. E o eleito é aquele que obtiver a maior votação. E o poder econômico passa a ser o diferencial a garantir a eleição. Desse modo, trava-se uma guerra em que os comitês eleitorais dos candidatos se transformam em verdadeiros partidos dentro de um partido. O único objetivo é a eleição de determinado candidato.
Os males do sistema proporcional com lista aberta podem ser superados com a adoção da lista fechada. Neste sistema, os candidatos são ordenados na lista pelos partidos políticos. E o voto é dado em um partido, em seu programa e em sua lista de candidatos. Isto assegura uma campanha eleitoral feita em torno dos programas partidários e não em torno de indivíduos. Eleva o nível político das campanhas eleitorais e obriga aos partidos a buscarem maior definição político-ideológica e programática. Sem isto não conseguirão obter votação. Tal alternativa reduz os gastos de campanha, possibilitando o financiamento público, já que os recursos serão repassados aos partidos e não aos candidatos. A adoção da lista fechada deverá ser acompanhada de normas para estabelecer, democraticamente, a lista de candidatos e a distribuição dos recursos. A lista de candidatos permite, também, assegurar a efetiva participação de um terço das mulheres nas instâncias de poder.
Sistema eleitoral majoritário
Contra o financiamento público de campanha e o voto em lista se unem a grande mídia, a oposição e os setores conservadores da sociedade. Eles defendem a adoção do sistema distrital puro ou misto. Esta é a posição defendida pelo Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB) e por importantes segmentos de outros partidos.
A história política revela que o sistema majoritário, distrital, foi o primeiro a ser adotado. Nele, os eleitos representam o poder da elite local sem nenhum compromisso com as camadas pobres da população.
No Brasil, o sistema eleitoral distrital foi adotado, com suas peculiaridades, por 70 anos durante o Império e a República Velha. A Revolução de 1930, representando um avanço democrático, acabou com o sistema distrital e implantou o sistema proporcional. A Constituição de 1946 incorporou em seu texto o sistema eleitoral proporcional para as eleições de deputados federais, estaduais e vereadores.
Durante a ditadura militar, por iniciativa do general Figueiredo, foi estabelecido o sistema distrital misto no país. No entanto, não foi colocado em prática. Com o fim da ditadura, o Congresso revogou, em maio de 1985, este entulho autoritário.
Os argumentos dos defensores do sistema eleitoral distrital têm claramente a marca de restrição à democracia. É um sistema defendido pelos partidos conservadores que querem manter o controle do sistema político com maior facilidade, e por partidos que incorporaram concepções neoliberais que no plano político se relacionam com a limitação da democracia.
No sistema eleitoral majoritário, o país é dividido em distritos, sendo eleito o candidato mais votado de cada um deles. Este sistema distorce a vontade dos eleitores e reduz drasticamente a representação das minorias, mesmo sendo elas expressivas. Isto porque, por hipótese, um partido que obtiver 51% dos votos em 10 distritos obtém as 10 cadeiras no parlamento. O outro partido com 49% dos votos não terá nenhuma cadeira. Esta é a distorção mais grave do sistema majoritário.
O voto distrital é excludente da representação de grande parte do eleitorado ao não assegurar a representação política da parcela minoritária da sociedade mesmo com uma votação próxima da metade do eleitorado. Induz ao bipartidarismo por assegurar a representação política somente aos grandes partidos. Aniquila as minorias. Promove a ditadura da maioria. Golpeia o voto de opinião.
Num país tão vasto e complexo como o Brasil, onde existem grandes diferenças sociais, ideológicas, políticas, regionais e religiosas, o sistema político tem que ser capaz de abarcar todos estes interesses e opiniões.
Ao regionalizar o processo eleitoral o sistema distrital afasta o debate político dos grandes temas nacionais. Transforma o deputado federal em despachante de luxo, em um vereador federal voltado, quase exclusivamente, para os problemas paroquiais e regionais. Agrava a influência do poder econômico nas eleições. Ao delimitar a eleição a um distrito, o sistema permite que o candidato endinheirado gaste um volume maior de recursos num território bem menor.
Além do sistema distrital puro há o sistema distrital misto, que atenua, mas não altera os problemas causados pelo sistema majoritário. Parte de seus membros é eleita pelo sistema proporcional e parte pelo sistema majoritário.
A ditadura militar fez várias tentativas para introduzir o sistema distrital misto. A Emenda Constitucional n° 22, de junho de 1982, estabeleceu o sistema distrital misto que não foi colocado em prática. Com o fim do regime ditatorial, a Câmara liquidou com o entulho autoritário, que incluía o sistema distrital misto.
A conclusão é cristalina. O sistema distrital puro ou misto visa a restringir a participação popular no processo político e assegurar um rígido controle sobre as estruturas de poder.
Sistema eleitoral proporcional com financiamento democrático de campanha e dois turnos
A proposta de financiamento público exclusivo e voto em lista fechada é a melhor alternativa. Porque assegura uma distribuição igual de recursos para os candidatos, garantindo uma disputa em igualdade de condições financeiras. E, com a lista fechada, o debate será exclusivamente em torno de propostas e projetos apresentados pelos partidos.
Todavia, esta proposta encontra resistências. As dificuldades do Congresso de aprovar uma Reforma Política indicam que só com uma grande união da sociedade será possível sua aprovação. O que poderá assegurar esta união é o Projeto de Iniciativa Popular da OAB, do Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral (MCCE) e de inúmeras outras entidades sociais.
Esta proposta se estrutura em torno de dois eixos: o Financiamento Democrático de Campanha e a eleição parlamentar em dois turnos. O Financiamento Democrático de Campanha, constituído com recursos públicos, visa a assegurar uma distribuição igualitária de recursos entre os candidatos. Ao lado dele, o projeto assegura o financiamento de campanha por pessoas físicas, limitado a R$ 700,00. Tais recursos serão destinados aos partidos políticos e não aos candidatos. O limite de arrecadação com doações individuais será de duas vezes o valor da quota do Fundo Democrático de Campanha destinado aos candidatos.
O projeto criminaliza o financiamento por empresa. Determina a cassação do registro da candidatura beneficiada. E a empresa financiadora ficará proibida de fazer contrato com o poder público por cinco anos, e receberá multa no valor de 10 vezes o valor doado indevidamente.
Já a proposta de eleição em dois turnos incorpora as vantagens do sistema proporcional com lista fechada e, ao mesmo tempo, leva em consideração a cultura política do povo acostumado a votar em candidatos.
No primeiro turno, o voto será dado ao partido, à sua plataforma política e à sua lista fechada de candidatos. Nessa etapa, será assegurado o debate em torno de ideias e projetos para solucionar os problemas do país. Com base no quociente eleitoral será definido o número de vagas parlamentares a serem preenchidas para cada partido.
No segundo turno, o voto será dado no candidato. Irá para o segundo turno o dobro de candidatos das vagas que cada partido obteve. Assim, o partido que obtiver cinco vagas no parlamento disputará o segundo turno com os dez primeiros nomes de sua lista partidária. Caberá ao eleitor dar a palavra final sobre quais seriam os eleitos. Esta proposta reduz drasticamente o número de candidatos, reduz os custos de campanha e permite uma efetiva fiscalização do processo eleitoral.
Para compor uma lista de candidatos, de forma democrática, deverão ser realizadas eleições primárias, com a participação de todos os filiados, e acompanhamento da justiça eleitoral e do ministério público.
A distribuição excessivamente desigual de recursos e tempo de televisão entre os partidos é uma fragilidade do atual sistema político brasileiro. A proposta de projeto de iniciativa popular, sem desconsiderar o tamanho da representação partidária no parlamento, prevê uma distribuição mais democrática dos recursos e do tempo de televisão.
Um dado relevante dessa proposta é que ela assegura a coligação proporcional realizada com base em programas políticos comuns. E proíbe a barganha da utilização do tempo de TV para assegurar a coligação. Com a coligação, o tempo de televisão será o do maior partido. Isto impede que partidos vendam seu tempo de TV. O texto prevê, também, a proibição da soma de recursos destinados à campanha. Isto dificultará a coligação proporcional, prejudicando os pequenos partidos.
Proibição da coligação proporcional e cláusula de barreira
Diante da dificuldade de os setores conservadores imporem o sistema distrital puro ou misto, já que isto implicaria reforma da Constituição, eles se voltam para liquidar as minorias através da antidemocrática proibição da coligação proporcional e da adoção da -cláusula de barreira-.
A Lei 9.096, de 1995, incorporou a cláusula de barreira à legislação brasileira. Todavia, o Partido Comunista do Brasil (PCdoB), com o apoio de outros seis partidos, entrou com uma ação direta de inconstitucionalidade alegando que a regra feria o direito das minorias. No final de 2006, por unanimidade, o STF acatou a ação direta de inconstitucionalidade, derrubando a vigência deste dispositivo.
Tais setores procuram esconder o objetivo de redução drástica do número de partidos, sob a capa do combate aos partidos de aluguel. Na verdade, o objetivo é restringir a democracia. Reduzir o quadro partidário para reduzir as vozes que defendem os direitos dos trabalhadores, a democracia e a soberania nacional.
A reação dos trabalhadores aos cortes dos direitos sociais tem levado a um crescente autoritarismo dos governos que adotam as políticas neoliberais. Visando a fragilizar a resistência dos trabalhadores e do povo, as elites neoliberais propalam que os partidos políticos e as tradicionais organizações dos trabalhadores e da sociedade estão superados. Fazem uma campanha aberta contra a política e os políticos. Na verdade, trata-se de um combate à democracia. Isto porque a democracia é incompatível com o corte de direitos.
Norberto Bobbio fez uma cáustica crítica ao neoliberalismo ao afirmar "Pode-se descrever sinteticamente este despertar do liberalismo através da seguinte progressão ou (regressão) histórica: a ofensiva dos liberais voltou-se historicamente contra o socialismo, seu natural adversário na versão coletivista (que de resto o mais autêntico); nestes últimos anos, voltou-se contra o Estado do bem-estar social, isto é a versão atenuada (segundo uma parte da esquerda também falsificada); agora é atacada a democracia, pura e simplesmente. A insídia é grave".
Diante da ofensiva dos setores conservadores tentando impor uma Reforma Política antidemocrática, contando com os grandes meios de comunicação, cabe às forças democráticas se unificarem em torno de uma proposta de Reforma Política Democrática.
Somente uma grande união do povo brasileiro, de caráter suprapartidário, contando com as diversas organizações da sociedade civil, os partidos e lideranças democráticas, será capaz de mobilizar a sociedade em torno deste objetivo como foi feito nas Diretas Já ou na Constituinte.
Nas condições atuais, a proposta que tem melhores condições de assegurar esta unificação é o Projeto de Lei de Iniciativa Popular apresentado pela OAB, pelo MCCE e por diversas organizações da sociedade.
Não há tempo a perder. Ou os setores democráticos se unem e mobilizam a sociedade ou podemos sofrer um retrocesso político com a aprovação de uma Reforma Política Antidemocrática.
O povo está sensível a maiores avanços democráticos, mas é necessário conseguir conectar a -voz das ruas- com uma proposta que possa ser apoiada por amplos setores. Daí o papel que a Proposta de Lei de Iniciativa Popular pode jogar. Neste momento é indispensável ter grandeza e colocar os interesses dos avanços democráticos acima de veleidades pessoais ou de grupos.
* Aldo Arantes é secretário da Comissão de Mobilização para a Reforma Política da OAB e membro da Comissão Política do Comitê Central do PCdoB.
Textos consultados
ARANTES, Aldo. Reeleição e Reforma Antidemocrática do Estado. Brasília: Câmara dos Deputados, 1997.
__________. Reforma Política para ampliar ou restringir a democracia-. Brasília: Câmara dos Deputados, 1998.
__________. Partidos políticos e realidade nacional. Brasília: Universidade de Brasília, 2001.
BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia. 4ª ed., p. 124. São Paulo: Paz e Terra, 1989.
BORON, Atílio. Estado, capitalismo e democracia na América Latina. São Paulo: Paz e Terra, 1994.
LIMA, Haroldo. Reforma Política - O golpe tramado contra a liberdade partidária e as alternativas progressistas. Brasília: Câmara dos Deputados, 2000.
NEVES, Tancredo. Modelos Alternativos de Representação Política no Brasil e Regime Eleitoral. Brasília: Pronunciamento realizado em 1980 na UnB.
NICOLAU, Jairo Marconi. Sistema Eleitoral e Reforma Política. Foglio.
SANTOS, Wanderley Guilherme. Regresso - máscaras institucionais do liberalismo oligárquico. Rio de Janeiro: Opera Nostra, 1994.