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Edição 126 > Mais médicos para o Brasil e mais recursos para o SUS
Mais médicos para o Brasil e mais recursos para o SUS

O Sistema Único de Saúde (SUS) completa 25 anos de sua aprovação na Constituição de 1988. Logo nos seus primeiros anos enfrentou a avalanche do neoliberalismo que provocou, entre outras mazelas, o desmonte do Estado brasileiro que teve suas instituições enfraquecidas. A saúde como direito de todos e dever do Estado também sofreu com esse desmonte. De que Estado precisamos para fazer valer esse direito constitucional- Esse é o debate.
Os serviços públicos foram gradativamente desmantelados, e sem reposição da força de trabalho, a gestão foi fragmentada com a transferência de muitos desses serviços para as organizações sociais e outras formas de entidades privadas. No final do governo Collor/Itamar havia 683/641 mil servidores públicos e a relação despesa pessoal e receita corrente líquida da União, no final do governo Itamar, era de 29,8%; já no final do segundo governo FHC havia 530 mil servidores públicos e a relação despesa pessoal e receita corrente líquida da União era de 15,7%. Atualmente esses números são respectivamente de 635 mil e 16,3%, indicando a necessidade de se debater no governo e na sociedade sobre qual Estado queremos para garantir serviços públicos de qualidade.
O sistema de saúde público não pode ficar suscetível aos impactos de lutas políticas. Mas foi isto que aconteceu quando o Congresso Nacional, em vez de realizar mudanças para garantir o uso da CPMF exclusivamente para a saúde, aprovou sua extinção, retirando bilhões de reais da saúde, sem criar alternativas para garantir o financiamento adequado para o SUS.
Além disso, a regulamentação do financiamento do SUS foi retardada e somente aconteceu em 2011, ainda de forma incompleta. Os recursos da União não foram ampliados como estava previsto e continuam sendo necessários, sendo essa a principal bandeira do -Movimento Saúde Mais 10- que encaminha a coleta de assinaturas para projeto de iniciativa popular ampliando os recursos federais para a saúde.
Ato do Movimento Saúde + 10
Os grupos econômicos que disputam o mercado da saúde são muito poderosos, têm apetite insaciável e influenciam todas as esferas de governo, tanto no parlamento como nos poderes Executivo e Judiciário. Pressionam e têm grande influência na Agência Nacional de Saúde (ANS) na definição das regras dos planos de saúde, muitas vezes prejudicando os seus usuários. Eliminar as insuficiências do SUS, evidentemente, reduziria o público consumidor dos planos privados.
O SUS depende de uma boa articulação entre as três esferas de governo e tem de ser construído como política de Estado para não ser prejudicado pelas diferenças de interesses entre os mandatários em cada esfera de poder.
Os números de atendimento no SUS impressionam e quase sempre o médico é indispensável:
- 3,7 bilhões de procedimentos ambulatoriais por ano;
- 531 milhões de consultas médicas por ano;
- 11 milhões de internações por ano;
- 98% do mercado de vacinas estão no SUS;
- 32,8 milhões de procedimentos oncológicos;
- 97% da quimioterapia são realizados no SUS;
- 4,7 milhões de órteses e próteses (cadeiras de rodas, muletas, aparelhos auditivos etc.) distribuídas pelo SUS.
Além disso, o SUS é o sistema público que realiza o maior número de transplantes no mundo.
Portanto, os médicos brasileiros e os demais profissionais de saúde têm prestado relevante serviço ao nosso povo. Mas, não há como escamotear a insatisfação de importante contingente de brasileiros que não são atendidos ou são mal-atendidos; ou são atendidos e ao serem referenciados para serviços mais complexos, para a continuidade do tratamento, enfrentam limites de vagas ou mesmo ausência e imprevisibilidade de possibilidades no SUS.
As recentes jornadas de mobilização social destacaram com força a necessidade de melhoria na qualidade dos serviços públicos em especial da saúde, educação e transporte, pressionando o governo que acelerou o lançamento de várias medidas que estavam em discussão, para melhorar o sistema de saúde e que têm polemizado a opinião de especialistas, de médicos e da população. É fato relevante o SUS ter ocupado espaço na agenda política do país, -objeto de desejo- daqueles que militam em defesa da saúde pública, pois a conquista de 1988 foi fruto da convergência do debate que acontecia no meio acadêmico, da luta dos profissionais de saúde e principalmente do ascenso da mobilização popular na luta por direitos sociais e democráticos.
O sentido das medidas anunciadas pela presidenta Dilma está correto, mas elas precisam de ajustes para dar algumas respostas emergenciais e principalmente para que sejam complementadas por medidas estruturantes com reformas estratégicas indispensáveis para a continuidade do processo de mudanças e avanços sociais.
Programa Mais Médicos
O programa Mais Médicos procura responder à principal reclamação da população que usa o SUS. As entidades médicas travam intensa polêmica afirmando que o problema é a má-distribuição decorrente da falta de condições em muitos municípios e nas periferias das grandes cidades. Esse ponto de partida das entidades -bate de frente- com o sentimento e a experiência concreta da população, com o cotidiano dos gestores da saúde e com os dados disponíveis.
Os dados do Brasil em comparação com os de outros países mostram uma realidade muito desfavorável para nós.
Além disso, em 700 municípios não temos nenhum médico e em 22 estados a proporção de médicos por 1.000 habitantes é menor que a média nacional. Apenas São Paulo, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul e Espírito Santo estão acima dessa média e, mesmo assim, os usuários do SUS desses estados também enfrentam muitas dificuldades para garantir o direito à saúde, ter o acesso com qualidade no momento em que necessitam. Mesmo em São Paulo há 344 municípios com índice menor que a média nacional. Na cidade de Registro, por exemplo, existe apenas 0,75 médico / 1.000 habitantes.
Dos 22 estados abaixo da média nacional, Acre, Amapá, Maranhão, Pará e Piauí têm menos de um médico por mil habitantes.
De 2003 a 2011 surgiram 146 mil postos de trabalho em emprego formal, mas nesse mesmo período, só 93 mil médicos se formaram. E, em função da ampliação do número de Unidades Básicas de Saúde (UBS) e de Unidades de Pronto Atendimento (UPAS), deverão ser criadas 35 mil novas vagas para médicos até 2014.
O Ministério da Saúde projeta a criação de 11.500 vagas de graduação e 12.400 de residência médica. Especialistas, como o professor Gastão Wagner, da Unicamp, defendem a ampliação de 3 a 4 mil vagas de graduação, nas universidades públicas.
Milton Arruda, professor da Faculdade de Medicina da USP e ex-secretário de Gestão do Trabalho do Ministério da Saúde, em recente entrevista, disse: -No caso do Brasil, eu consigo dizer que faltam médicos e eles estão inadequadamente distribuídos, mas não consigo dizer, o que é muito ruim para o país, quantos médicos o Brasil deve ter-.
As referências do número de médicos de outros países são importantes como termos de comparação em nossas análises, mas as peculiaridades do Brasil e do SUS devem ser consideradas. Ampliar o grau de resolutividade da atenção básica e a organização das regiões de saúde para otimizar o uso dos recursos e garantir a universalidade, a integralidade e a equidade são estratégias essenciais. Também é indispensável aprofundar a implantação do novo modelo de atenção, centrado na promoção da saúde e com equipes multidisciplinares organizadas em redes regionais.
A falta e a má-distribuição de médicos são determinadas por vários fatores e exigem múltiplas intervenções que não devem ser ditadas pela categoria para evitar o viés elitista e corporativista, mas devem, necessariamente, ser discutidas com suas entidades representativas. Mesmo a maioria dos médicos fazendo parte dos setores sociais bem situados economicamente, é possível defender seus interesses, respeitando o direito à saúde da população brasileira. Para exemplificar, o jornal Folha de S.Paulo, de 13 de julho, mostra dados sobre os aprovados no vestibular da Universidade Estadual Paulista (Unesp) que revelam que apenas 2% vieram de escolas públicas, 20% são de famílias com renda superior a 20 mil reais, e não havia nenhum negro na turma de 2013.
A projeção da ampliação de vagas avaliadas pelo Ministério da Saúde é composta pela maioria absoluta dessas vagas de graduação em escolas privadas. A mensalidade das escolas particulares gira em torno de quatro mil reais. Se nelas hoje já temos 57,9% das vagas, a perspectiva é piorar a composição social dos alunos de medicina e não a de melhorar a democratização do acesso, com possibilidade de jovens de setores populares cursarem as faculdades de medicina. Sem dúvida, o Programa Universidade para Todos (ProUni) e o Financiamento Estudantil (Fies) são medidas positivas e contribuem na democratização do acesso, mas a melhoria do ensino médio e a ampliação das vagas de graduação do curso médico em escolas públicas são as medidas mais adequadas e estruturantes.
Governo altera a proposta mais polêmica - ampliação da graduação para oito anos
É mais adequado manter o curso de graduação com seis anos e incorporar os dois anos do chamado segundo ciclo de formação, apresentado inicialmente pelo governo na residência médica, que deve ofertar vagas para todos os recém-formados. A experiência mostra que a descentralização da residência médica contribui para a fixação do profissional, portanto o Estado deve ampliar as vagas prioritariamente para as regiões Norte e Nordeste e definir as especialidades necessárias. Atualmente, faltam médicos em várias áreas como pediatria, clínica médica, anestesiologia, neurologia, cardiologia, radiologia, nefrologia, UTI pediátrica.
O efeito dessas duas medidas só ocorrerá em médio prazo. Portanto, abrir a possibilidade de médicos estrangeiros cobrirem os locais não-preenchidos pelos brasileiros, com bolsas e supervisão de universidade pública e das Secretarias estadual e municipal de Saúde, é uma medida emergencial necessária. É recente a luta e a vitória da diplomacia brasileira para garantir que dentistas brasileiros exerçam a profissão em Portugal. A experiência de outros países articula dois caminhos: exame de validação, no qual, o profissional, sendo aprovado, pode exercer a medicina em qualquer região; e outra específica para as localidades mais carentes, em que o médico recebe autorização especial para atuação restrita àquela área. As entidades médicas exigem a realização do Revalida (revalidação de diploma médico), mas isso dá direito ao profissional aprovado de exercer a profissão em qualquer local do país e não nas regiões mais necessárias, definidas pelos gestores do SUS. Os critérios propostos para a contratação de médicos estrangeiros são: habilitação no país de origem; originário de país com proporção de médicos maior que no Brasil; e falar português.
O Programa Mais Médicos tem por meta levar médicos para 1.290 pequenos municípios com alta vulnerabilidade social, 201 municípios das regiões metropolitanas (incluindo as periferias das capitais), 66 municípios com mais de 80 mil habitantes, além de 25 distritos sanitários indígenas.
A afirmação das entidades médicas de que os médicos formados em outros países não teriam competência para prestar atendimento de qualidade, e que assim teríamos o SUS dos pobres, não tem sustentação. Convém olhar os indicadores de saúde dos países de origem dos mesmos. Cuba, que tem sido satanizada, Espanha, Argentina, Portugal possuem bons indicadores de saúde. Além disso, o trabalho será supervisionado por universidades.
Outro comentário muito frequente nas opiniões expressas pelos médicos é de que o médico sozinho não adianta, sendo necessários os demais profissionais da área da saúde e estrutura adequada. Sem dúvida, isso é verdade. No entanto, a carência que existe no SUS é do médico, e atualmente o número de profissionais formados das outras áreas da saúde é muito maior do que o número de vagas existentes no mercado de trabalho. Em relação à melhoria da estrutura, apesar de insuficiente, o investimento de recursos na construção e para equipar novas Unidades Básicas de Saúde é crescente. Está limitado por problemas de insuficiências da gestão pública e do valor do investimento global em saúde.
Gastos per capita em USS/2011
Brasil 477
Uruguai 817,8
Argentina 969,4
Reino Unido 2.747
Portugal 1.681
Espanha 2.237,8
EUA 3.954,2
Noruega 4.859,2
Fonte: Organização Mundial de Saúde (OMS)
Como mostra a tabela acima, os gastos no Brasil são muito inferiores aos do Reino Unido, que também tem sistema público universal e aproximadamente corresponde a 50% dos nossos vizinhos Argentina e Uruguai.
Estudos do Ipea de 2011 mostram que quase 16 bilhões de reais deixaram de ser arrecadados pelo governo, por dedução no imposto de renda de pessoas físicas e jurídicas e desoneração fiscal da indústria farmacêutica e hospitais filantrópicos. Essa situação merece discussão criteriosa. Por exemplo, na área da educação há um teto para o desconto no imposto de renda, mas na saúde ele é ilimitado.
Carreira da atenção básica e ampliação do financiamento
Outra bandeira histórica das entidades médicas é a criação de carreira do médico do SUS. Os governos federal, estaduais e municipais precisam enfrentar essa discussão e romper as amarras para resolver esse crucial problema do SUS. O Ministério da Saúde apoia 13 projetos-piloto, regionais ou estaduais de planos de cargos carreiras e salários, em andamento, com custo de 60 milhões de reais.
No entanto, a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) impõe teto de gastos com pagamento de pessoal. Os 3,6% do PIB que hoje são gastos com o SUS, representam aproximadamente 60% da necessidade. A composição dos recursos advindos das três esferas da Federação indica a necessidade de ampliação dos recursos federais. É inadiável a aprovação no Congresso do PL de iniciativa popular determinando 10% das RCB da União para a saúde. O PL de taxação das grandes fortunas, a proposta de destinar 25% dos royalties do petróleo para a saúde, entre outros, devem compor as novas fontes para garantir os 10% do orçamento federal, cuja implementação pode ser progressiva, a exemplo do que aconteceu com estados e municípios.
A ampliação do financiamento deve ser para o SUS e não para privilegiar o setor privado como acontece hoje - sendo essencial o fortalecimento do controle social sobre todas as esferas de governo, através das conferências e dos Conselhos de Saúde, do poder Legislativo, do ministério público e de outros órgãos de controle.
Um milhão e meio de assinaturas foram recolhidas para o Projeto de iniciativa popular
Pacto pela saúde
Consideramos que o pacto pela saúde deve contemplar as seguintes diretrizes:
1. Para ampliar o acesso de qualidade à população é indispensável fortalecer a atenção básica em geral e do Programa de Saúde da Família, com unidades básicas de saúde adequadas à população a ser atendida, nas cidades, em áreas rurais ou ribeirinhas, com equipamentos necessários para ter resolutividade no atendimento prestado e profissionais de saúde qualificados com salários dignos.
2. Carreira de estado para os profissionais da Atenção Básica.
3. Ampliação das vagas de graduação e de Residência Médica, majoritariamente em instituições públicas, para todos, com dois anos de formação em serviço no SUS. O estado deve regular as vagas de especialistas respeitando as necessidades do sistema de saúde. O debate a respeito do número de vagas necessárias deve ser aberto envolvendo os especialistas no tema e os Conselhos de Saúde.
4. Ampliar o financiamento da saúde aprovando a proposta de 10% das receitas correntes brutas da União. Adequar o modelo de financiamento do SUS, substituindo o pagamento por produção e em conformidade com a regionalização do SUS.
5. Acelerar o processo de organização regional do SUS com a implementação do Decreto 7508 de 2011, que regulamentou a Lei Orgânica da Saúde - 8080 de 1990.
6. Fortalecer a participação da comunidade, com garantia de orçamento para organização e funcionamento dos Conselhos de Saúde nas três esferas da Federação.
Reafirmamos ser indispensável a intervenção do Estado para garantir saúde para todos, porque o mercado se mostrou incapaz de atender a essa necessidade da população.
* Júlia Roland é coordenadora nacional de Saúde do PCdoB; conselheira nacional de Saúde; diretora do Departamento de Apoio à Gestão Participativa do Ministério da Saúde