Educação
Edição 125 > Três motivos de fundo para investir o pré-sal na educação (Final)
Três motivos de fundo para investir o pré-sal na educação (Final)
Na parte inicial deste artigo, publicada na edição 124 de PrincÃpios, demos um primeiro motivo (superar a opressão intelectual que pesa sobre nosso povo) para o Brasil investir pesado em educação-conhecimento. A seguir, outros dois motivos de fundo

Segundo motivo
Para entrar na era da economia do conhecimento
A história mundial da conexão entre o conhecimento e a produção de riquezas pode ser dividida em três fases, muito distintas por sua duração e conteúdo. Nesta virada de milênio, a humanidade está começando a desbravar a terceira fase, denominada por muitos de economia do conhecimento.
Primeira fase: casamento
Durante um enorme período inicial, o saber produtivo e o produtor, o trabalhador, estiveram indissoluvelmente unidos. Cada lavrador, pastor ou artesão adquiria, empiricamente ou aprendendo com seus iguais, a integridade dos conhecimentos necessários ao seu labor. Em contraste, desde a aurora das civilizações o saber erudito só se ocupava de temas mais transcendentes, diáfanos, de preferência metafísicos; desprezava as coisas da produção material como plebeias e ordinárias demais para merecer atenção. As primeiras universidades, na Europa Medieval, dedicavam-se a estudar direito, medicina e teologia. As -artes mecânicas- e -ciências lucrativas- ficavam de fora.
Isto durou incontáveis milhares de anos, desde a aurora da humanidade até os primeiros passos da Revolução Industrial.
Segunda fase: divórcio
A mudança ocorreu à medida que o século 19 se aproximava do fim. Enquanto a burguesia e a classe trabalhadora moderna se impunham como os protagonistas do novo sistema, tanto o casamento saber produtivo-produtor como a separação saber erudito-produção entraram em curto circuito.
O conhecimento de elite, e seu principal baluarte, a academia, renderam-se às antes desprezadas artes mecânicas. O saber erudito teve de abrir espaço às -ciências lucrativas- e até gravitar em torno delas.
Em um movimento simétrico, os trabalhadores da revolução industrial perderam o controle do saber produtivo. Além da alienação essencial, da propriedade sobre os meios de produção, e com base nesta, eles se viram alienados dos conhecimentos que orientavam seu próprio trabalho.
Isto se deu por força da lógica do sistema, por estímulo da crescente sofisticação científica e tecnológica da atividade industrial, mas também devido a uma decisão subjetiva, uma escolha deliberada dos gestores do sistema. A opção foi explicitada pelo engenheiro norte-americano Frederick Winslow Taylor (1856-1915), pai do taylorismo (embora alguns prefiram chamar o mesmo modelo de fordismo, em referência a Henry Ford, 1863-1947, primeiro a utilizar a linha de montagem em sua fábrica de automóveis, a Ford Motor, de Detroit).
Taylor articulou seu sistema no livro Princípios da gestão científica (1911), tido como uma pedra fundamental da chamada II Revolução Industrial. Ele consiste em: segmentar minuciosamente o processo produtivo em uma infinidade de operações elementares e rotineiras; selecionar, de cronômetro em punho, o modo mais rápido de executar cada uma delas, eliminando todo movimento inútil; e separar completamente a gerência da execução do trabalho, o -cérebro- das -mãos-.
Certa vez, Taylor interpelou um operário durante uma inspeção: -Você não está aqui para pensar. Há outros aqui que são pagos para pensar.- Em outra ocasião, comparou o trabalhador ideal a um boi: -O primeiríssimo requisito para um homem que trabalhe com ferro-gusa é que ele seja tão estúpido e fleugmático que seu perfil mental se assemelhe mais ao de um boi-. O olho implacável de Charles Chaplin retratou com ironia esse padrão de trabalho no filme Tempos modernos (1936).
Durante os três quartos iniciais do século 20 o taylorismo-fordismo se impôs como padrão produtivo dominante na grande indústria mundial. E em uma primeira fase isso aumentou brutalmente tanto a produção como o lucro patronal. Graças à introdução da linha de montagem, tipicamente taylorista, entre 1908 e 1914 a Ford Motor multiplicou por sete o número de seus empregados e por 30 a sua produção de automóveis.
Terceira fase: reatamento
No entanto, como já advertira o Manifesto Comunista de 1848, no capitalismo -tudo que é sólido desmancha no ar-. O padrão criado por Taylor e caricaturado por Chaplin caducou há pouco mais de uma geração. No lugar do taylorismo, impôs-se o toyotismo, nascido no Japão nas duras condições do pós-Segunda Guerra Mundial. Embora sob muitos aspectos o toyotismo seja um desenvolvimento do taylorismo e não a sua negação, na questão específica da relação trabalhadores-conhecimento ele representou um verdadeiro cavalo-de-pau.
O padrão taylorista, da II Revolução Industrial, era especializado, fragmentado, não-qualificado, intenso, rotineiro, insalubre, verticalizado, rigidamente hierarquizado, produção em massa, basicamente de bens materiais. Já o padrão toyotista, da III Revolução Industrial, é bem distinto: polivalente, integrado, em equipe, intensíssimo, flexível, estressante, terceirizado, menos hierarquizado, produção -enxuta-, de bens materiais e, em escala crescente, também imateriais.
Não cabe aqui um exame de conjunto dessa mutação produtiva. Nas condições de um capitalismo assanhado pela derrota do socialismo soviético (1991), ela não aliviou a exploração patronal. Pelo contrário: o movimento sindical coleciona um sem-número de denúncias a respeito. A mais usual é a das demissões. A mais sinistra é a do karoshi (do japonês karo, trabalho exaustivo, e shi, morte), a morte súbita por estafa. As estatísticas do governo japonês registram 157 mortes-ano em 2005-2006 e 189 em 2007. Ao mesmo tempo, um discurso de estímulo à participação, ao -empreendedorismo- e à -parceria trabalhador-empresa- persegue a adesão ideológica dos assalariados como fator anabolizante da competitividade empresarial.
Mas voltemos ao tema que nos ocupa: o saber produtivo nas relações técnicas de trabalho. A III Revolução Industrial provoca aqui uma verdadeira subversão de valores. O -trabalhador-boi- de Taylor é sumariamente demitido. A máxima -Você não é pago para pensar- se transforma no seu oposto.
Ao longo da última geração, pela primeira vez na história da humanidade, os trabalhadores passaram exatamente a ser pagos para pensar.
Informática e conhecimento
O divórcio taylorista - entre a direção de empresa que pensa tudo e os trabalhadores que não pensam nada - até conseguiu resultados econômicos, um século atrás. Porém conseguiu com ressalvas.
Primeiro porque na prática a teoria era outra: mesmo no mais taylorista dos sistemas produtivos, o saber operário sempre jogava um papel fundamental no chão da fábrica.
Segundo, e o mais importante: o -trabalhador-boi- fez algum sentido em um esquema rígido, especializado, monolítico a ponto de impor até uma cor única para os produtos. O célebre carro Modelo T (no Brasil, Ford Bigode), ícone do fordismo, durante 12 anos só saiu da fábrica pintado de preto. Henry Ford explicava: -Todo cliente pode ter seu carro pintado da cor que quiser, desde que seja preto-.
Porém ao longo do século 20 o desenvolvimento capitalista, com sua concorrência global cada vez mais acirrada, decretou o fim do prazo de validade dessa rigidez. A base técnica da indústria se renovou, graças principalmente ao computador e seus desdobramentos automatizantes, máquinas CNC (Controle Numérico Computadorizado) e robôs. Transformações similares atingiram também os serviços e a agropecuária, que -se industrializaram- conforme o mesmo padrão, embora mantendo peculiaridades.
O computador foi a alavanca técnica decisiva desta transformação. E teve impacto direto sobre a questão do saber produtivo, pois o computador é basicamente uma máquina de armazenar, processar e comunicar pensamento humano, com a aptidão suplementar e inédita de ser capaz de repassar esse pensamento às máquinas (1).
O novo padrão de trabalho
A informatização permitiu - e ao mesmo tempo exigiu - um novo padrão de trabalho: flexível, polivalente ou multifuncional, criativo, com rotinas em constante mudança, demandando do trabalhador não só a força dos seus braços, mas também aquelas do seu intelecto. O novo padrão foi batizado de economia do conhecimento (knowledge economy, ou simplesmente KM; os franceses preferem economia do saber, économie du savoir).
No capitalismo, a força de trabalho demandada pelo novo padrão compartilha com o -trabalhador-boi- de Taylor a condição básica de mão de obra assalariada, e a alienação originária em relação à propriedade dos meios de produção. Mas, como vimos, ela bate de frente com o taylorismo no que diz respeito ao lugar do conhecimento. Ao mesmo tempo, ela não é uma simples reedição do primitivo casamento saber produtivo-produtor. Este derivava direta e empiricamente da prática do trabalhador; além disso, se não era estático, desenvolvia-se muito lentamente, no ritmo pachorrento das forças produtivas pré-capitalistas.
O padrão toyotista requer dos trabalhadores muito mais que alguns anos suplementares de escolaridade. Exige também uma atitude qualitativamente nova, inédita, face ao saber. Demanda que se considere o aprendizado como um processo incessante, uma espiral sem fim que não cessa com a obtenção de um diploma, mas se prolonga pela vida inteira. Exige não apenas especialização, fragmentária, mas igualmente flexibilidade e polivalência, totalizantes. E reclama que se enxergue a produção e todos os seus elementos como uma coisa viva, mutante, que precisa ser permanentemente criticada, questionada e transformada.
Aquilo que nas rotinas produtivas anteriores já acontecia em germe, lenta, aleatória e toscamente, na III Revolução Industrial torna-se a pedra de toque, o critério das relações técnicas de trabalho requeridas pela economia do conhecimento. Ali, onde a ciência fundiu-se com a produção e tornou-se ela própria uma força produtiva fundamental, os trabalhadores passam a ser chamados a encarar a produção com olhos de cientistas.
Esta modificação, que em muitos aspectos mal começou, avança em meio às turbulências típicas dos processos históricos concretos. A grande crise global capitalista de 2008, ainda em andamento, provocou efeitos contraditórios nas metrópoles tradicionais da acumulação científico-tecnológica - Estados Unidos, Europa Ocidental, Japão -, enquanto abre uma janela de oportunidade para nações periféricas que investem em ramos industriais intensivos em trabalho e conhecimento - como a China (maior fabricante mundial de computadores pessoais desde 2011) e a Índia (maior exportador mundial de medicamentos genéricos). O Brasil só será uma economia próspera e avançada se investir maciçamente na economia do conhecimento.
Os novos parâmetros da III Revolução Industrial incidem com força também sobre o mundo da educação. Eles se entrelaçam com a revolução tecnológica na informática e nas comunicações, coletivizando o conhecimento, que passa a depender menos de centros e mais de uma rede.
Terceiro motivo
Para afirmar a civilização brasileira
Um projeto nacional não se faz apenas com coisas, nem se limita à economia, à sociedade e à política. Mais ainda quando somos, além de nação, uma civilização brasileira - como o afirmaram no século passado a intrépida editora de Ênio Silveira, diversos títulos de Darcy Ribeiro e a monumental História geral da civilização brasileira (1960-1972) organizada por Sérgio Buarque de Holanda.
Uma nação, ou uma civilização, é obra que se ergue em grande medida fora dos limites da materialidade - ainda que nesta esteja o seu ponto de partida. Nações têm a ver com uma consciência de si laboriosa e conflituosamente construída, debatida, testada, contestada, rebatida e projetada no decorrer das gerações. Têm a ver também com uma imagem que se projeta para fora e interage com outras formas de ser da humanidade.
Abaixo o -complexo
"De vira-lata"
Somos - todos repetem - um povo mestiço, mas também uma civilização mestiça. Nossa miscigenação foi muito além do DNA ou da cor das peles: engendrou um povo novo, um povo uno, uma só gente, uma mesma etnia, um povo nação (para usar palavras de Darcy) - que assombra e intriga quem nos vê de fora tão diversos na epiderme.
Mas temos outros atributos menos notórios, ou quase despercebidos, mas também merecedores de atenção. Somos, por exemplo, o único país de certo porte que há mais de um século - desde os tempos de Rio Branco - mantém o mesmo contorno, manso e pacífico, com 16.885 quilômetros de fronteiras partilhadas com dez países sem um único metro de litígio territorial.
Só o conhecimento nos permitirá decantar, coar, destilar a integridade do que somos. Sem preconceito, sem a menor soberba, o mais ínfimo chauvinismo. Mas também sem o -complexo de vira-lata- que, como descreveu o dramaturgo Nélson Rodrigues - criador da expressão -, -é a inferioridade em que o brasileiro se coloca, voluntariamente, em face do resto do mundo-. E o -complexo de vira-lata- tem raízes seculares na concepção de mundo colonizada das classes dominantes brasileiras.
Também aqui o reforço da educação jogará um papel. O sistema escolar é uma ferramenta decisiva para catalisar na sociedade a hegemonia das convicções requeridas por um novo projeto nacional. Porém, é aqui que mais se destaca o papel de outras áreas do conhecimento, como a produção e o consumo da cultura e das artes, a indústria cultural e ainda o mundo da informação-comunicação, que vive vertiginosa revolução. Em um Brasil do conhecimento, os brasileiros consumirão predominantemente a sua própria literatura, o seu cinema e o seu teatro, quem sabe os seus videogames, como já o fazem na esfera singular da música, pela vitalidade qualitativa e quantitativa de sua produção cultural - mantendo aberto o intercâmbio mutuamente enriquecedor com o conjunto do acervo da cultura planetária.
* * *
Pelos motivos citados, entre muitos outros, o fulcro do conhecimento tornou-se o ponto de apoio decisivo para o Brasil se alçar ao patamar de uma grande nação soberana, desenvolvida, próspera, democrática, socialmente avançada e integrada com seus vizinhos latino-americanos. Até ontem, a realização dessa proeza tropeçava na penúria de recursos que frustrou os sonhos de tantas inteligências arrojadas. Amanhã, o ouro negro do pré-sal deverá trazer considerável alívio a essa encruada indigência. Hoje, agora, é a hora de debater, polemizar, pactuar e levar à prática a fundamentação, a agenda e o programa da transformação, para que cada centavo do pré-sal germine, viceje, floresça e frutifique com esta destinação. Com a palavra os 200 milhões de brasileiros, com destaque para a juventude, que viverá o Brasil do conhecimento.
* Bernardo Joffily é jornalista e autor do Atlas histórico Brasil 500 anos e colunista da Princípios.
Nota:
(1) Em um artigo sobre o toyotismo, puplicado em 1993 em uma revista da CUT, escrevi: -No fundo o computador é uma nova linguagem. O homem aprendeu a falar há uns 2 milhões de anos, em algum lugar da África; a escrever há 6.000 anos, onde hoje fica o Iraque; e a imprimir há 443 anos, na Alemanha. A informática é a quarta linguagem- (o texto está disponível na internet em http://www.cefetsp.br/edu/eso/globalizacao/textocut.html).