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Edição 125 > Marxismo, questão agrária e projeto nacional
Marxismo, questão agrária e projeto nacional
A questão agrária tem sido tema amplamente debatida na esquerda brasileira durante toda a sua história, mas temos conseguido acompanhar o desenvolvimento nacional e reformular as bandeiras de luta que tem nos guiado- A interpretação marxista da realidade social é não apenas um método de análise, mas a força fundamental da crítica voltada à transformação revolucionária da sociedade.

Introdução
Quando se pretende analisar a realidade agrária brasileira é necessário não perder a perspectiva crítica de mudança social, pois compreender a realidade concreta é a base sobre a qual elaboramos nossas estratégias de luta e de construção de uma nova sociedade. Dentro dessa perspectiva, é importante lembrar que o materialismo dialético é o método que consegue dar respostas satisfatórias às nossas indagações sobre a questão agrária por dois motivos centrais: 1) o entendimento do caráter histórico das grandes transformações no campo; e 2) a importância da compreensão de que a realidade é um todo unido, ligado e dependente entre si e está em constante movimento, cujo motor são suas contradições internas. Dessa forma, não é possível entender a agricultura por ela mesma, enquanto atividade agrícola apenas -dentro da porteira-, mas é fundamental compreendê-la como relação social mais ampla, integrada aos diversos setores econômicos e sociais.
I
Ao compararmos o período do debate clássico sobre o papel da agricultura na sociedade brasileira (anos 1960) com o período atual, vemos que os grandes temas debatidos pela esquerda, na época, agora são praticamente ignorados. A ideia do desenvolvimento (Iseb - Instituto Superior de Estudos Brasileiros; Cepal - Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe; PCB), que os setores de esquerda tinham como estratégia para a chegada ao socialismo, foi abandonada e essa -nova esquerda- - envergonhada com o comunismo, ou apenas anticomunista - tem nas questões micropolíticas as suas principais preocupações.
Marx e Engels no Manifesto do Partido Comunista (Marx e Engels, 1975), já faziam severas críticas à literatura socialista do século 19. Entre outros, criticavam o que chamavam de socialismo pequeno-burguês, cujas propostas que se concentravam na defesa dos pequenos proprietários, camponeses artesãos etc. visando a reestabelecer os antigos meios de produção e troca, buscando -encarcerar à força os modernos meios de produção e troca no quadro das velhas relações de propriedade-, ou seja, impedir que o avanço das forças produtivas impulsionassem novas relações de produção. Para Marx e Engels, tal visão não passava de algo utópico e reacionário.
Muito do que se debate hoje enquanto questão agrária pode ser incluído exatamente nessa conceituação de socialismo pequeno-burguês. Basta ver que grande parte das críticas às estruturas agrárias brasileiras culpa a modernização da agricultura, que transformou a vida do -camponês- obrigando-o a se inserir no mercado capitalista. O abandono do marxismo como método de análise acaba por modificar as bandeiras socialistas de transformação radical da sociedade em meras formas de remediar os males da sociedade burguesa.
Decorre daí a crítica por muitas vezes equivocada do avanço das forças produtivas na agricultura, em geral manifestada pela interpretação sobre os aspectos -perversos- da modernização da agricultura.
A -demonização- da modernização da agricultura, que destrói a forma de vida dos camponeses, torna-se a parte central da crítica. Tomando por base a análise marxista, que entende a dicotomia entre o avanço das forças produtivas e das relações de produção como ponto central desse processo, propõe-se uma interpretação diferente da modernização, retirando-se dela o seu caráter -demoníaco-.
A modernização da agricultura efetuada durante a ditadura militar brasileira (1964-84), tornou-se conhecida como -modernização conservadora-, ou seja, quando se moderniza a produção agrícola com a adoção do -pacote verde-, mas sem alterar as estruturas agrárias existentes. Assim, o caráter conservador dessa modernização se mostrou presente em alguns fatores, amplamente citados na literatura especializada: a manutenção ou ampliação da concentração fundiária; a manutenção ou aumento da concentração de renda; e o foco das políticas modernizantes nos setores agroexportadores e nos grandes produtores. Em decorrência desses fatores uma das consequências apresentadas foi o aumento da pobreza e o êxodo rural.
É necessário, no entanto, refletir sobre algumas questões que devem ser levadas em consideração para um melhor entendimento das transformações na organização do espaço causada pela modernização da agricultura.
Uma das características da modernização agrícola é a sua inserção cada vez maior na lógica de produção industrial; assim qualquer estudo da agricultura não pode mais entendê-la de forma isolada dos demais setores. Se analisarmos o todo, a manutenção de algumas mazelas sociais no campo teria sido compensada pela melhoria geral das condições de vida nas cidades (barateamento dos alimentos, melhorias de condições de trabalho etc.). Basta vermos a enorme diminuição do preço dos alimentos nas cidades, associada ainda à melhoria de sua qualidade (GONÇALVES, 2012).
Grande parte da crítica à modernização agrícola no Brasil foi baseada na concentração das políticas modernizadoras em algumas regiões (Sul e Sudeste) e produtos (soja, laranja, cana, eucalipto etc.). Esta crítica, no entanto, está mais associada ao fato de que a modernização deveria ter sido mais ampla e radical, atingindo mais regiões e mais produtores, ou seja, não é uma crítica à modernização, mas sim à falta de modernização em outras áreas.
O Brasil teve sua formação sócio-espacial em grande parte baseada no poder dos senhores de terra (RANGEL, 1981). A propriedade fundiária sempre foi uma das principais bases do poder político do Brasil independente (pactos de poder), grande parte do caráter conservador está associada à manutenção da estrutura fundiária por uma não-realização de reforma agrária distributiva. A penetração do capitalismo no campo, transformando o velho latifúndio em empresas agrícolas ligadas ao agronegócio, tem um imenso caráter transformador dessa realidade. A terra deixa de ser o principal ativo; e o capital, insumos, maquinarias e, principalmente, o financiamento da produção e comercialização tornaram-se os aspectos principais na produção agrícola. Ainda que haja uma especificidade do processo de acumulação na agricultura propriamente dita (GERMER, 2006), hoje a agricultura está inserida na lógica da cumulação industrial.
O avanço das forças produtivas e das relações de produção é um dos pontos centrais para a explicação da sociedade (MARX, 1985; GERMER, 2009). O papel da técnica, das inovações, da difusão tecnológica e o seu impacto nas formas de organização do trabalho e nas relações jurídico-políticas são fundamentais para explicar a dinâmica social em um aspecto mais amplo.
No caso da agricultura, a modernização representou um intenso avanço das forças produtivas, que teve papel central na transformação da agricultura rudimentar em uma agricultura integrada ao processo de acumulação industrial. A organização do espaço agrário não pode mais explicar-se por si só, mas necessita de uma explicação mais ampla, inserindo-a em uma lógica que vai além da produção agrícola, mas que também leve em conta a distribuição, a circulação e o consumo. Torna-se fundamental, nesta perspectiva, entender o abastecimento e distribuição de alimentos e matérias-primas para se poder compreender o real papel da modernização da agricultura e, dessa forma, explicar as contradições entre o seu caráter conservador e progressista.
II
Algumas análises equivocadas sobre a agricultura levaram à criação de debates sobre novas falsas dicotomias, sendo a principal delas a questão da produção familiar X agronegócio.
Em grande parte essas falsas dicotomias são fruto da falta de análise histórica do processo de desenvolvimento. A ideia do agricultor familiar como sujeito social do campo mostra bem a mudança do foco: o importante é o fato de se trabalhar com a família independentemente de ser proprietário, arrendatário, meeiro, posseiro ou trabalhador assalariado. Uma parte dessa -nova esquerda-, que ainda tem alguma influência no marxismo, adota o conceito de camponês, mas em grande parte abandonando toda a análise histórica que permitiria um uso mais adequado do conceito.
Ainda assim, procura tornar esse sujeito social quase uma -divindade- e criticar intensamente as interpretações marxistas em relação ao papel dúbio do camponês na transição ao socialismo, em especial a análise de Lênin. A resistência do camponês ao capitalismo tornou-se um tema explorado, mas muitas vezes essa resistência vai ser apresentada como uma resistência cultural, no âmbito dos costumes e na manutenção do seu modo de vida. Ao que parece, algo muito deslocado do mundo real e muito fora da análise marxista que reflete sobre o papel real que ele exerce na luta de classes. O domínio do idealismo nestas análises, que algumas vezes se apresentam como marxistas, mostra uma transformação do método de Marx em seu oposto (ver a crítica feita por GERMER, 2003).
Uma das consequencias desta análise é que tornou-se comum, nos meios socialistas, a defesa da propriedade privada da terra, desde que seja uma pequena propriedade. Alguns malabarismos teóricos-conceituais apresentam uma divisão da agricultura entre agricultores familiares (que produzem os alimentos que comemos) e o agronegócio que envenena nossos alimentos, que destrói a natureza, entre outras -maldades-. Ora, é necessário analisar qual a inserção destes agentes sociais no âmbito da produção, a dicotomia bem X mal; além de não explicar a realidade ainda nos confunde para a elaboração de nossas estratégias.
Um dos principais aspectos que se observa hoje em dia em relação à produção de alimentos está relacionado ao que produzir e como produzir, unindo dois aspectos fundamentais em relação às necessidades nacionais: o primeiro a produção de alimentos com qualidade e o segundo que possam ser efetuadas sem dependência do exterior.
Obviamente, esses dois aspectos mostram que a permissão para a produção de soja transgênica com o monopólio da Monsanto na comercialização das sementes é um atentado contra qualquer política de segurança e soberania alimentar. Não devemos, no entanto, romantizar e achar que o único alimento que deva ser consumido é aquele cultivado apenas com os recursos que a natureza dadivosa nos dá. O uso de tecnologia moderna, insumos químicos e defensivos não deve ser descartado de imediato. Uma agricultura ecologicamente correta, não -envenenada-, deve representar um passo adiante em relação ao desenvolvimento das forças produtivas, e não um passo atrás.
Algumas políticas ligadas à produção de alimentos e abastecimento presentes hoje ainda são visivelmente ligadas ao grau técnico de desenvolvimento da agricultura, como é o caso da necessidade da melhoria dos tipos de alimentos produzidos (ligados à diminuição do uso de agrotóxicos, por exemplo) e aos programas de combate à fome, fazendo chegar à mesa da população alimentos melhores e mais baratos. Tal objetivo pode ser atingido com o aumento do grau técnico da agricultura e não com sua diminuição por meio de políticas de -volta do homem ao campo-. Nas palavras de Gonçalves (2003, p.64),
-Por que a política para agricultura familiar, centrada no exemplo do feijão, mostra-se incompatível, e até mesmo antagônica, com os objetivos do programa contra a fome- Para combater a fome urbana ou de regiões com baixas possibilidades de produção suficiente, deve-se mobilizar os instrumentos de sucesso da agricultura brasileira. Assim, para uma mesma quantidade de recursos disponíveis, quanto menor o preço final pago pelo consumidor, maior a quantidade de alimentos adquirida e consumida. Feijão mais barato é mais feijão no prato, poderia ser o lema. Afinal, como produz feijão, uma lavoura modernizada nos padrões capitalistas, como os demais grãos--
Em outras palavras, uma política de combate à fome e de segurança alimentar deverá estar ligada à radicalização e à ampliação do processo de modernização da agricultura - com o aumento de nível técnico, mecanização, biotecnologia, tecnologias limpas etc. Não é possível produzir alimentos para quase duzentos milhões de habitantes utilizando-se sistemas arcaicos de produção.
No entanto, é bom lembrarmos que hoje não é a produção o problema que mais nos preocupa. A produção de alimentos no Brasil já é em grande parte feita por propriedades modernas e com alto grau de produtividade. O não-acesso aos alimentos por grande parte da massa da população é uma questão de demanda e não de oferta. Os problemas que restam, dessa forma, dizem respeito à produção com melhor qualidade e às formas de fazer com que os alimentos cheguem à mesa da população. Portanto, discutir sobre a dicotomia entre o agronegócio e a agricultura familiar é um aspecto secundário da questão. O ponto fundamental está na discussão do crescimento econômico, da geração de empregos e da forma subordinada com que o país se inseriu na economia mundial.
III
O tema central para o debate sobre a realidade agrária deve ter como marco central o processo mais amplo do desenvolvimento, tornando mais relevante a análise da expansão da divisão social do trabalho que atenua as diferenças e acentua a interdependência entre rural e urbano. Do ponto de vista prático, esta relação vai se manifestar na questão do abastecimento de alimentos para as populações urbanas.
A produção de alimentos, antes dispersa e inserida ainda na lógica do complexo rural, teve com o processo de desenvolvimento de suas forças produtivas um impulso para se tornar cada vez mais especializada. Esta especialização vai se tornando mais intensa com a melhoria dos sistemas de transportes, que proporcionou a incorporação de novas terras (as fronteiras agrícolas) ao mercado nacional. Tal processo fez com que uma série de alimentos fosse produzida de forma intensiva em partes do território nacional e de lá partisse para o abastecimento do restante do país.
Um dos aspectos centrais a ser considerado é o fato de que a modernização não criou apenas uma integração mais ampla entre agricultura e indústria, razão da submissão da agricultura à lógica industrial, mas transformou a agricultura em um ramo industrial. Dessa forma, para entender a agricultura moderna é imprescindível entender a lógica de acumulação industrial, rompendo-se com as divisões setoriais clássicas (setor primário, secundário e terciário), pois na cadeia de produção do agronegócio tanto a terra quanto as indústrias e os serviços estão encadeados no mesmo setor produtivo.
É necessário, portanto, um exame da totalidade na qual a oposição campo/cidade e rural/urbano não seja tomada como fundamento das análises, pois a modernização da agricultura, sua transformação em agricultura capitalista, acabou com a centralidade de tal oposição. Ao tornar-se capitalista, a explicação da dinâmica agrícola se dá com base no processo de acumulação e no papel de seus atores, no qual as políticas públicas levadas a cabo pelas frações de classe que tomaram o Estado e as estratégias empresariais adquirem enorme importância como matriz explicativa da organização espacial.
Assim, a questão agrária não deve ser vista apenas como um debate sobre o direito à posse da terra, mas sim em uma dimensão mais ampla que visa à própria questão do abastecimento alimentar da população. Dominar o padrão tecnológico, desenvolver as forças produtivas de forma soberana é fundamental para qualquer projeto nacional que vislumbremos. Debater a questão agrária hoje só faz sentido se ela estiver inserida em um projeto nacional, buscando sua relação com a totalidade econômica e social do país.
Do ponto de vista nacional, ter a capacidade de alimentar sua população é tão ou mais importante que qualquer política relativa à defesa do território. Um país que não consegue produzir alimentos suficientes, ou não tem capacidade para fazer com que tais alimentos cheguem à mesa de sua população, acaba se tornando dependente de importações de alimentos fazendo com que sua soberania alimentar acabe se tornando um ponto fraco da própria consolidação da sua soberania nacional.
* Fernando dos Santos Sampaio é doutor em Geografia pela Universidade de São Paulo (USP); e professor associado da Unioeste (Universidade Estadual do Oeste do Paraná), campus Francisco Beltrão.
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