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Edição 125 > O desafio de produzir com sustentabilidade na Amazônia

O desafio de produzir com sustentabilidade na Amazônia

Eron Bezerra e Therezinha de Jesus Pinto Fraxe*
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O desafio contemporâneo das ciências e das decisões políticas é garantir, a um só tempo, a viabilidade econômica do sistema produtivo e o uso permanente dos recursos naturais que lhe dão sustentação. Isso é o que se pode definir como desenvolvimento sustentado

Desde que a humanidade dominou, há milhares de anos, os fundamentos da agricultura e da domesticação de animais, ela se tornou sedentária e passou a depender da produção de alimentos para assegurar a sua existência sobre a face da Terra e do manejo dos demais recursos naturais para acumular bens materiais. Por isso, sempre houve a tentativa de restringir esses recursos a uma pequena parcela da humanidade sob o argumento de que não haveria comida para todos. A fome existe não por falta de alimentos ou escassez de recursos para produzi-los e sim pela brutal concentração de rendas e de terra no modo de produção capitalista. O cultivo de 9% da parte sólida da terra é suficiente para alimentar os seus atuais 7 bilhões de habitantes; e para alimentar 200 milhões de brasileiros e 23 milhões de amazônidas, bastam apenas 4,29% e 0,76% de suas respectivas áreas.

Introdução

A saga da humanidade sobre a face da Terra é longa, tortuosa, e cheia de superações. Sem maiores recursos tecnológicos a humanidade venceu tragédias naturais, guerras e epidemias. E superou todos os obstáculos que a natureza ou a sociedade lhe impôs. Com o permanente desenvolvimento da ciência, da tecnologia e a crescente percepção de que a humanidade é parte indissolúvel do ambiente, é pouco provável que não se consiga encontrar uma solução adequada ao desafio contemporâneo de produzir alimentos com sustentabilidade, como preconiza Bezerra (2010, 2011) ao afirmar: -não há desenvolvimento sem sustentabilidade e nem sustentabilidade sem desenvolvimento-.

O rebanho primitivo surgiu por volta de um milhão de anos e o homo sapiens há pouco mais de 40 mil anos. Os dados científicos hoje conhecidos, especialmente no campo das ciências biológicas, arqueológicas, antropológicas, etnográficas, sociais e paleontológicas, indicam uma constante evolução econômica e social da humanidade, como atestam os estudos de Morgan, Tylor & Fraser (2009) e Thomsen, transcritos por Diakov e Kovalev (1976), na obra História da Antiguidade.

Nessa longa caminhada, a humanidade experimentou diferentes formas de organização econômica e social, como o regime comunitário primitivo e o surgimento do Estado e das classes sociais (escravagismo, feudalismo, capitalismo e socialismo). As classes e o Estado nasceram em condições e épocas diferentes, associadas ao desenvolvimento das forças produtivas. O regime comunitário primitivo, por exemplo, baseava-se na propriedade coletiva dos meios de produção porque o nível das forças produtivas era tão baixo que não permitia obter isoladamente os meios necessários de subsistência. Os homens eram obrigados a viver e a trabalhar em conjunto, gerando a propriedade comum dos meios de produção e dos frutos do trabalho. Tudo pertencia à coletividade. Ainda não se tinha ideia da propriedade privada dos meios de produção, da exploração do homem pelo homem, nem das classes sociais (DIAKOV & KOVALEV, 1976).

Segundo esses autores, a propriedade privada surgiu com o aumento da produtividade do trabalho, especialmente na agricultura e na criação de gado, o que permite a acumulação de riquezas nas mãos de particulares. O rendimento da criação dá a cada família a possibilidade de lutar com a natureza. O uso de técnicas, mesmo elementares, no cultivo da terra, permite cultivar uma superfície que antes só podia ser semeada por uma grande coletividade de agricultores munidos de picaretas.

De acordo com a classificação de Morgan, Tylor e Fraser (2009), as etnias que habitavam o continente americano quando do início da colonização europeia se encontravam em etapas bem diferenciadas, indo do estágio superior de selvageria ao estágio superior da barbárie. Enquanto os Incas já praticavam agricultura irrigada e faziam construções estruturadas, a maioria das etnias que habitavam o que seria hoje o Brasil sequer dominava a domesticação de animais, e praticava uma agricultura rudimentar, com exceção dos grupos que habitavam a parte superior do rio Amazonas (próximo ao Peru), onde havia uma agricultura regular e há registro da criação de animais nos escritos, dentre outros, de Frei Gaspar de Carvajal (1992), Padre João Daniel (2004), Charles-Marie de La Condamine (2000), Príncipe Adalberto da Prússia (2002), Alfred Russel Wallace (2004) e Louis Rodolph Agassiz & Elizabeth Cary Agassiz (2000).

Essa classificação é coerente com a tese de Mazoyer & Roudart (2010), segundo a qual, a humanidade dominou os fundamentos da agricultura e da domesticação de animais há 10 mil anos, quando então pôde abandonar a perambulação e se sedentarizar. Isso explica, por exemplo, a densa população agrupada em aldeias de até 25 km que Carvajal (1992) registra ao longo do rio Amazonas, quando da expedição Orelhana (1539-1542).

Desde então, o desenvolvimento de conhecimentos científicos e de técnicas cada vez mais eficazes tem elevado constantemente a produção e a produtividade das culturas agrícolas, o que não tem impedido, todavia, que pensadores contemporâneos, como os adeptos do -crescimento zero- (MEADOWS, Randers e Meadows, 2007), procurem reabilitar a teoria malthusiana, segundo a qual a humanidade tendia a desaparecer pela escassez de alimentos.

Para Mazoyer & Roudart (2010), porém, -se o homem abandonasse todos os ecossistemas cultivados do planeta, estes retornariam rapidamente a um estado de natureza próximo daquele no qual se encontrava há 10 mil anos. As plantas cultivadas e os animais domésticos seriam encobertos por uma vegetação e por uma fauna selvagem infinitamente mais poderosa que hoje-. Mas, -neste jardim do Éden, 9/10 da população humana pereceria, pois a simples predação (caça, pesca, colheita) certamente não permitiria alimentar mais de meio milhão de homens-.

Assim, o cultivo do planeta, a domesticação de plantas e animais, o domínio da vegetação e da fauna selvagem é a única forma segura que se tem para continuar alimentando a humanidade. Mas não há risco de colapso ambiental. Apenas 9% da parte sólida do planeta são suficientes para alimentar os seus 7 bilhões de habitantes e algo como 4,3 e 0,76% do território do Brasil e da Amazônia garantem a alimentação dos 200 milhões de brasileiros e dos 23 milhões de amazônidas.

E as áreas agricultáveis no mundo podem produzir uma quantidade bem maior de alimentos, no mesmo espaço, apenas recorrendo a manejos apropriados e tecnologias adequadas, hoje em boa parte restritos a uma pequena parcela de produtores.

Mazoyer & Roudart (2010) estimam que 80% dos agricultores da África e de 40% a 60% dos da América Latina e da Ásia continuam a trabalhar unicamente com equipamentos manuais, sendo que apenas de 15% a 30% deles dispõem de tração animal. Não há estatística confiável na Amazônia, mas esse retrato certamente é ainda mais dramático.

De onde se conclui, portanto, que a fome existe não por falta de alimentos ou escassez de recursos para produzi-los. Ela decorre da brutal concentração de rendas e de terras no modo de produção capitalista, como já advertiam Jean Jacques Rousseau (1991) e Karl Marx (1985).

Por outro lado, como todos os recursos são finitos, é necessário que essa produção ocorra em bases sustentáveis e busque, a um só tempo, elevar o padrão social e cultural dos trabalhadores e assegurar a reprodução do ciclo produtivo. Isso exige o desenvolvimento de técnicas e organização social que possibilitem formas de produção e apropriação socialmente justas, aumento de produção e produtividade e uso racional dos recursos naturais, como forma de evitar o colapso ambiental já advertido por Marx e Engels (1979).

Histórico da atividade produtiva na Amazônia

No início da colonização brasileira as etnias que viviam na Amazônia tinham uma atividade produtiva superior à das outras regiões, segundo o registro de Carvajal (1992), Príncipe Adalberto da Prússia (2002) e Wallace (2004), dentre outros. Hoje essa situação se inverteu. As regiões Centro-Oeste, Sudeste, Sul e parte do Nordeste se transformaram em grandes produtoras de alimentos, enquanto a Amazônia, com as exceções de praxe, pratica apenas agricultura de subsistência.

A Carta de Pero Vaz de Caminha, ao chegar à Bahia (Wehling, 1999)...

-Eles não lavram nem criam. Nem há aqui boi, nem vaca, nem cabra, nem ovelha, nem galinha, nem qualquer outra alimária, que costumada seja ao viver dos homens. Nem comem senão desse inhame, de que aqui há muito, e dessas sementes e frutos que a terra e as árvores de si lançam. E com isto andam tais e tão rijos e tão nédios que o não somos nós tanto, com quanto trigo e legumes comemos- (Pero Vaz de Caminha).

e o relatório de Frei Gaspar de Carvajal (1992), não deixam dúvidas quanto a essa assertiva:

-Algumas dessas aldeias se estendiam por mais de cinco léguas (25 km), sem separação entre uma casa e outra, e isso era coisa maravilhosa de se ver; e o chefe desta terra tem muitas ovelhas, com as do Peru, e é muito rico em prata, como todos os índios nos diziam. A terra é muito alegre, bonita e farta de comidas e frutas, tais como pinhas e peras, que na língua da Nova Espanha, se chamam abacates, ameixas, guanas e muitas outras frutas deliciosas; o cacique mandou que seus índios buscassem comida. Com muita presteza, trouxeram, em abundância, o que achavam ser suficiente de carnes, perdizes, perus e peixes de várias qualidades; provimo-nos de comida achando até galinhas... (Frei Gaspar de Carvajal)

Fica evidente, portanto, que a limitação produtiva da Amazônia não está relacionada a aspectos culturais no sentido definido por Tylor como sendo -aquele todo complexo que inclui conhecimento, crença, arte, moral, lei, costume e quaisquer outras capacidades e hábitos adquiridos pelo homem na condição de membro da sociedade- (MORGAN, TYLOR & FRASER, 2009), e sim a fatores externos, dentre os quais, a racionalidade econômica, o papel do Estado e, principalmente, a preponderância da concepção ambiental santuarista no manejo dos recursos naturais a partir dos anos 1980, como sugere Bezerra (2010, 2011) e Bezerra & Fraxe (2012).

Naturalmente, intérpretes distintos analisaram a Amazônia de forma distinta, cada um procurando destacar o que lhe parecia preponderante.

a) Do ponto de vista histórico, cultural

Frei Gaspar de Carvajal (1992), como já visto, registra uma densa população ao longo do rio Amazonas e fartura de comida, embora registre em alguns casos a dificuldade de acessá-la, o que se explica tanto pelo combate que lhe ofereciam os -invadidos-, como pelo pouco domínio que os membros da expedição Orelhana tinham do manejo das riquezas naturais da Amazônia.

O padre João Daniel (2004), por outro lado, que visitou a região entre 1741 e 1757, se espanta ao constatar que os índios tinham por hábito -comer outros índios-, sugerindo que eles -pouco se diferenciam dos bichos e feras do mato; exceto a nação inca do império do Peru, que já vivia com economia e governo debaixo de uma só cabeça que os regia como lei more monarchio-. E, sem entender a lógica produtiva dos nativos faz severas críticas ao fato de os índios não produzirem trigo e outros cereais no Amazonas, afirmando:

-Por terem na mandioca tão bom sustento, pouco caso fazem no estado do Amazonas das mais sementeiras usuais em todo o mundo, exceto no reino de Quito e Peru, e com muita especialidade na cidade de Lima, que por ser corte tão populosa há já mais curiosidade nos moradores, e mais uso da agricultura. Por isso, já beneficiam as terras ao modo da Europa, e fazem grandes lavouras e searas de trigo, e mais grão, e legumes, aproveitando-se da bondade da terra, para que ajudam muito os cotidianos e ordinários orvalhos da terra em lugar da chuva, que não têm- (padre João Daniel).

Charles-Marie de La Condamine (2000) visitou a região em 1735. Foi ele quem descreveu a borracha que mais tarde faria a fortuna de alguns, a morte de muitos e a ilusão de fausto de que tantos falaram. Fez a descrição na região do alto Solimões, ressaltando sua abundância em toda a região: -a resina chamada -caucho- nos países da província de Quito vizinhos do mar é também comuníssima nas margens do Maranhão, e tem a mesma utilidade. Quando ela está fresca, dá-se lhe com moldes a forma que se quer; ela é impenetrável à chuva, mas o que a torna digna de nota é a sua grande elasticidade. Fazem-se com elas garrafas que não são friáveis, e botas, e bolas ocas, que se achatam quando se apertam, mas que retornam a sua primitiva forma desde que livres-.

O Príncipe Adalberto da Prússia (2002), que anotava cada detalhe de nossa capacidade de defesa, registrou, em 1842: -segundo os últimos dados, a ilha de Marajó possui cerca de 20.000 cabeças de gado, que ao lado do arroz cultivado em larga escala naquela ilha, em grande parte plana e pantanosa, constitui o seu primeiro artigo de comércio. O solo desta grande ilha tão favoravelmente situada para o comércio é, ademais, apropriado a qualquer outra cultura da zona quente-.

Alfred Russel Wallace (2004), quando de sua expedição em 1848, fez um retrato dos mais detalhados da região, com constante registro de atividade agrícola. Destaca que em toda a roda da povoação, por alguma milhas de extensão, nos terrenos altos e secos, há cafezais e matos de segundo crescimento. Num trecho registra a aflição de um nativo: -ele disse que já fazia três meses que ali não chovia, e que as roças estavam, em consequência disso, ficando muito prejudicadas- (1) (p.103).

Apesar de registrar que aqui, -prefere-se mais fazer borracha, colher cacau e apanhar castanhas, em vez do cultivo regular do solo- (p.118), e que o comércio local consiste principalmente na exportação de castanhas, salsaparrilha, farinha, peixe salgado, sendo alguns desses artigos obtidos dos índios mundurucu, industriosa tribo que habita o rio Tapajós (p.185), a agricultura está presente.

São povos que se dedicavam à agricultura, tendo residências fixas, e cultivavam vários produtos da lavoura, como: mandioca (Jatropha manihot), cana-de-açúcar (Saccharwn officinarum), batata-doce (convolvulus batata), cará, inhame (Dioscorea speciosa), palmeira pupunha (Gulielma speciosa), cocura (um fruto como uva), abacaxis (Ananas sativa), milho (Zea mays), urucu ou arnoto (Bixa orellana), bananas (Musa speciosa), abios (Lucuma caimito), cajueiro (Anacardium occidentale), ingá (Inga speciosa), pimenta (Capsicum speciosuum), tabaco (Nicotiana tabacum) e plantas para tintas e cordoalhas (WALLACE, p.581/582).

Mas, como a maioria dos europeus de sua época, Wallace estava carregado de preconceitos e, apesar de todos os seus próprios registros, não escapa a um juízo apressado ao afirmar: -a indolente disposição do povo e a falta de braços para a lavoura impedem o desenvolvimento e exploração de todas as possibilidades desta rica região, enquanto não se estabelecer colônias de norte-americanos e de europeus- (p.119) -, revelando o que talvez fosse seu objetivo maior: justificar a ocupação da Amazônia, desde sempre cobiçada, como se percebe.

E fez a descrição do cultivo da mandioca de então, tornando evidente que pouca coisa se alterou em termos tecnológicos desde então, o que certamente explica as limitações de nossa atividade.

-Imaginei as árvores de uma floresta virgem, derrubadas todas, mas de maneira que os seus troncos caiam uns sobre os outros, em todas as direções concebíveis. Depois de ficarem assim a secar durante algum tempo, são em seguida queimadas. O fogo, contudo, por ocasião da queima, às vezes não é suficiente, e consome somente as folhas, os ramos e galhos. A parte restante permanece inteira, apenas enegrecida e carbonizada. Nessas condições, em seguida, planta-se a mandioca, sem qualquer outro preparo do solo- (WALLACE, p.278).

Louis Rodolph Agassiz & Elizabeth Cary Agassiz (2000) visitaram a região em 1865, registrando exemplos de atividade agrícola e de extrativismo - racionalidade econômica -, que na maioria das vezes foram vistos pelo -visitante- europeu como preguiça ou indolência. Por que produzir, se é possível simplesmente coletar-

A descrição da fabricação da farinha, segundo Agassiz:

-Pela manhã, as minhas amigas índias me mostraram como se prepara a mandioca. Essa planta é de inestimável valor para os pobres: ela lhes dá a farinha - espécie de fécula grosseira que lhes substitui o pão -, a tapioca e ainda uma espécie de bebida fermentada a que chamam tucupi, dádiva de valor duvidoso, pois que lhes fornece o veneno da embriaguez. Uma vez descascados os tubérculos da mandioca são ralados num ralador grosseiro. Obtém-se assim uma espécie de pasta úmida, com que se enchem tubos de palha, elásticos, feitos de fibras trançadas da palmeira Jacitará (Desmonchus). Quando esses tubos, tendo em cada ponta uma asa, estão cheios, a índia os suspende a um ramo de árvore; enfia em seguida uma vara resistente na asa inferior, fixando uma de suas pontas num buraco feito no tronco da árvore. Apoiando-se então na ponta livre da vara, ela o transforma numa espécie de alavanca primitiva sobre a qual exerce todo o peso de seu corpo, provocando assim o alongamento do cilindro elástico que se estica o mais que pode de uma extremidade para outra. A massa fica então fortemente comprimida e o suco que se escapa vem escorrer num vaso colocado embaixo. Este suco é no começo venenoso, mas, depois de fermentado, torna-se inofensivo e capaz de servir como bebida: é o tucupi. Para fazer a tapioca, mistura-se mandioca ralada com água e comprime-se numa peneira. O líquido que passa é deixado repousar; forma-se logo nele um depósito, semelhante ao amido, que se deixa endurecer e de que se faz em seguida uma espécie de sopa; é prato favorito dos índios- (AGASSIZ, p.185).

E diante da exuberância da região faz uma clara defesa de sua ocupação por estrangeiros, aliás, algo recorrente em todos os -visitantes-: -quando penso na facilidade com que tudo dá aqui, numa terra que nada custa, pergunto-me por que estranha fatalidade uma metade do mundo regurgita por tal forma de habitantes que o pão não chega para todos, enquanto que na outra metade a população é tão escassa que os braços não dão para a colheita-; e pondera se -não devia a emigração afluir em ondas para essa região tão favorecida pela natureza e tão vazia de homens-, revelando que foi Agassiz o precursor da teoria militar que deu base à construção da transamazônica, cuja lógica era -uma rodovia para levar homens sem terra a uma terra sem homens-, sugerindo uma nova diáspora de nordestinos (a primeira foi o soldado da borracha) para a selva amazônica.

b) A preponderância da racionalidade econômica

Djalma Batista (2005) anota que, ao se apossarem da terra brasileira, os colonizadores portugueses realizaram em princípio unicamente o extrativismo, fixando depois as atividades na plantação da cana, cuja exploração requeria grossos cabedais, só acessível, portanto, àqueles que se tornaram os potentados da Colônia - senhores dos latifúndios e dirigentes da monocultura que dominaria mais de dois séculos da nossa economia. Depois de alertar que a fome degenera física e mentalmente, comprometendo gerações futuras, ele questiona: -de que nos valem os nossos milhões de cacaueiros, cafeeiros e algodoeiros, as populações que os plantam e colhem, vivem famintas e em involução física, porque não podem comer cacau, nem café, nem algodão--

O caráter incipiente da agricultura na Amazônia e a preponderância do extrativismo também são registrados por Corrêa (1967); Salles (1985); Dean (1989); Benchimol (1992); Antonacio (2001); Mendes (2004); Ribeiro (2006); Fontana (2006); Loureiro (2007), dentre outros, sob os mais diversos aspectos econômicos, sociais e políticos.

Mas Salles (1985), para quem -o nosso caboclo, o homem que vive no interior do Estado, ainda não se dedicou, integralmente, ao cultivo racional da terra, boa e dadivosa, pois a ela somente emprega horas vagas, quando se afasta do extrativismo, que constitui sua máxima preocupação-, apresenta - a nosso modo de ver - uma razoável interpretação desse fenômeno:

-As atividades extrativas absorvem o esforço do homem amazônico. Seja na extração de madeiras, nos trabalhos dos seringais e castanhais, na pesca e na caça, o homem do interior não se dedica, exclusivamente, ao cultivo do solo. Cultivar a terra dá trabalho, é cansativo, exige sementes selecionadas, material agrário, limpa dos roçados, combate às formigas e às pragas, inseticidas e conhecimento de agricultura. E o ser humano, dentro do meio ambiente hostil, sem ajuda suficiente, sem orientação técnica, precisa, procura tirar da natureza o máximo, para poder subsistir. Não lhe interessa, em consequência, a agricultura, pois já conhece os inúmeros obstáculos que terá de enfrentar, no meio ambiente em que vive (SALLES, 1985).

Salles demonstra, portanto, que a incipiência da agricultura não está relacionada à -preguiça ou indolência-, e sim a aspectos culturais e à racionalidade produtiva.

Do ponto de vista econômico, é mais fácil coletar, extrair, do que produzir, ou seja, ganhava-se mais dinheiro vendendo borracha - apesar de sua extraordinária oscilação de preços - do que produzindo arroz ou feijão, como fica evidente ao se constatar que em 1910 uma tonelada de borracha era exportada do porto de Manaus a 655 libras esterlinas (BENCHIMOL, 1992), equivalente hoje a algo como 137 mil reais.

Apesar dessa forte tradição extrativa, há registros, especialmente em Reis (1998), de várias experiências exitosas na agricultura, inclusive de agroindústrias, colocadas em prática por religiosos carmelitas e governadores coloniais, com destaque para Lobo D-Almada.

Lamentavelmente, tais iniciativas não se consolidaram, fazendo com que, ao longo do tempo, fossem feitas experiências pontuais exitosas e longos períodos de absoluto declínio da atividade agrícola no estado do Amazonas, como registra a literatura contemporânea.

Fraxe (2000) constata que o nível da atividade agrícola do caboclo ribeirinho era tão incipiente que ele trabalhava apenas para sobreviver e que, mesmo recorrendo aos sistemas agroflorestais (SAFs), combinados com a criação de animais e o extrativismo animal (pesca e caça) e vegetal, ainda assim apenas lhe assegurava a subsistência.

c) O papel do Estado como condicionante

O papel do Estado enquanto indutor da economia sempre opôs distintas correntes de pensamento, seja de pesquisadores e/ou gestores públicos ao longo dos tempos. Arthur Cezar Ferreira Reis, prefaciando a obra de Cosme Ferreira Filho, Amazônia em novas Dimensões (1961), estabeleceu de pronto o seu antagonismo com o autor ao sustentar que -para Cosme Ferreira, o complexo amazônico deve ser decifrado pela ação da inciativa privada, comparecendo o Estado supletivamente ou solidariamente sem, todavia, o sentido de comando que vem assumindo-, sem levar em conta que esse comando decorria da própria incapacidade da iniciativa privada para realizar a integração da região - um fenômeno dos nossos dias -, pois só após a abertura de mercados mundiais para os produtos amazônicos, o que hoje está ocorrendo, os interesses da Amazônia passaram a entrosar-se nos interesses do país.

Não creio que Cosme Filho (1961) conheça a teoria neoliberal de Hayek (1977), cuja essência é a defesa do chamado -Estado mínimo-, ou seja, menos serviço público e mais serviços privados, mas ele sustentava os seus pressupostos.

No setor primário, cuja natureza econômica é de risco, as consequências dessa política foram particularmente danosas. A escassez de recursos, associada a uma taxa oficial de juros superior a 20% ao ano, limitava consideravelmente o financiamento da atividade produtiva. Tudo isso, agravado pela redução do serviço de assistência técnica e extensão rural - bem como dos meios para escoar, armazenar e beneficiar a produção rural - representou um duro golpe na economia do setor primário.

No Amazonas, em 1995, o então governador Amazonino Mendes - do Partido da Frente Liberal (PFL) e adepto dessa concepção - extinguiu, por lei, a Secretaria de Estado da Produção Rural (SEPROR), a Empresa Amazonense de Assistência Técnica (EMATER), a Companhia de Desenvolvimento Agropecuário (CODEAGRO) e todos os demais órgãos ligados ao setor primário (BEZERRA, 2010). Apenas três deputados (2) votaram contra essa pretensão do Executivo estadual.

d) Os limites da concepção santuarista

A saga da ocupação amazônica consumiu e continua consumindo milhares de vidas humanas, especialmente -índios- de diversas etnias. Também tombaram europeus, alguns fazendo guerra por convicção, outros obrigados a fazer guerra ou na busca de riquezas; os religiosos, que se entregaram, pela -fé-, à busca de -convertidos-; pesquisadores, em nome sincero da ciência (outros nem tanto); além dos -idealistas- que lutaram e lutam por um mundo de iguais. E há, naturalmente, o enorme contingente de migrantes nordestinos que, fugindo da seca ou transformados em -soldados da borracha-, foi mandado à Amazônia -para desaparecer e teimosamente não desapareceram-, como magistralmente resenha Euclides da Cunha (2006).

Essas dificuldades naturais foram especialmente agravadas a partir da predominância da concepção santuarista em torno da legislação que regula e disciplina o uso dos recursos naturais, com ênfase no uso da Amazônia - a partir dos pressupostos da teoria do -crescimento zero- (MEADOWS, Randers e Meadows, 2007) - que, embora nunca tenha sido recepcionada como política oficial no seio das nações unidas, na prática define a essência da politica de -comando e controle-.

Segundo Becker (2001), -em meio às políticas e posições conflitivas quanto à ocupação e ao desenvolvimento da Amazônia, o desafio maior que se coloca é o de definir e implementar um novo padrão de desenvolvimento capaz de melhorar as condições de vida da população, de estancar o desflorestamento e utilizar o seu patrimônio natural com formas conservacionistas-. E debita, na economia, a -opção- que as distintas sociedades amazônicas fizeram de seu processo produtivo, no que converge com Bezerra (2010), para quem a razão pela qual o Amazonas tem 98% de sua área preservada não é por consciência ambiental e sim por não ter necessidade imperiosa de explorar seus recursos naturais em decorrência da Zona Franca de Manaus, que lhe serve de base econômica.

A produção de alimentos no Amazonas não tem sido tarefa fácil, pelas razões já expostas. Assim, na busca da superação desse desafio, sem a pretensão de estabelecer modelo ou esquema, é preciso desenvolver modos de produção sustentável, onde o -seringueiro não seja o homem que trabalha para escravizar-se-, nem tampouco o -caboclo ribeirinho seja aquele que trabalha para sobreviver-.

O desafio contemporâneo das ciências e das decisões políticas é garantir, a um só tempo, a viabilidade econômica do sistema produtivo e o uso permanente dos recursos naturais que lhe dão sustentação. Isso é o que se pode definir como desenvolvimento sustentado.

Para viabilizar tal pressuposto é necessário desenvolver formas de produção nas quais se busque a racionalização de todo o nosso potencial econômico, com base no desenvolvimento permanente da ciência e da tecnologia. Formas de produção assentadas no policultivo; na definição de módulos mínimos de área produtiva, que sejam economicamente viáveis; na modernização das relações de produção; na agregação de valor e verticalização da cadeia produtiva e que valorizem os aspectos sociais e culturais das populações endógenas. Tudo isso tendo como premissa a elevação permanente do padrão social e econômico dos trabalhadores e trabalhadoras rurais.

*Eron Bezerra é engenheiro agrônomo, professor da Universidade Federal do Amazonas (UFAM), deputado federal licenciado, secretário de Estado da Produção Rural, autor do livro Amazônia esse mundo a parte, doutorando em Ciências do Ambiente e Sustentabilidade na Amazônia, secretário nacional para Questão Amazônica e Indígena do Comitê Central do PCdoB.

**Therezinha de Jesus Pinto Fraxe é engenheira agrônoma, professora da Universidade Federal do Amazonas (UFAM), doutora em Sociologia Rural, coordenadora do Centro de Unidades de Conservação do Amazonas (CEUC), autora do livro Homens anfíbios: etnografia de um campesinato das águas, coordenadora do Núcleo de Sócioeconomia da UFAM.

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