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Edição 125 > A modernização agrícola no Brasil: conservadora e revolucionária
A modernização agrícola no Brasil: conservadora e revolucionária
A situação da agricultura brasileira hoje é paradoxal, pois mesmo com o fantástico desenvolvimento das forças produtivas no campo, persiste ainda o caráter conservador da apropriação da riqueza por poucos empresários agrícolas e multinacionais

Não raras vezes, assistimos a setores progressistas se pronunciarem avessos à modernização agrícola no Brasil, sobretudo contra o agronegócio e a agricultura em grande escala. O discurso é oposto ao de tempos atrás quando a -grande lavoura socialista- - cultivada em extensas áreas com o suporte de insumos químicos, técnica avançada e maquinário moderno - era proferida energicamente. Ou seja, eram exigidos do governo, além da coletivização da terra, a disponibilização de modernos recursos técnicos, infraestrutura, insumos e extensão rural capaz de orientar a gestão eficiente da atividade agrícola.
Atualmente, essa coletivização perdeu espaço e deu lugar à apologia da pequena propriedade privada, de cunho familiar, fragmentada e camponesa (não-proletarizada e sem carteira assinada). Também os insumos agrícolas, principalmente os defensivos agrícolas, passaram a ser associados ao vilanizado agronegócio e chamados pejorativamente de -agrotóxicos- (inseticidas, adubos etc.). Diante desse impasse, surge a pergunta: o mais correto seria nos opormos ao aumento da produtividade e ao uso sustentável da tecnologia avançada ou, pelo contrário, nos posicionarmos contrários à apropriação desses recursos apenas por uma pequena parte de grandes empresários agrícolas e ruralistas-
O presente texto objetiva mostrar, em suma, que o caráter revolucionário da modernização agrícola no país é justamente o desenvolvimento das forças produtivas no campo e seu lado conservador continua sendo a apropriação da riqueza por poucos empresários agrícolas e multinacionais.
Uma revolução verde (e amarela)
-Como seria imprudente confundir os latifúndios com a agricultura capitalista em grande escala-, V. I. Lênin.
Até o início da década de 1960, a produção agrícola nacional se concentrava sobremaneira na produção do café (uma pauta comercial agrícola monocultora), estabelecida majoritariamente no Centro-Sul do país. A ocupação das vastas áreas do Cerrado ainda era incipiente. Foi durante o governo militar que pela primeira vez se elaborou e implantou - embora de forma conservadora - um plano de expansão da agricultura no Centro-Oeste brasileiro. Tudo isso coincidiu com a transferência da capital federal para o Planalto Central.
Em cerca de 20 anos o governo militar distribuiu o equivalente a dois territórios da França em terras agricultáveis para grandes produtores e empresas agropecuárias. Grande parte dessas concessões se deu em áreas de Cerrado, mas também em áreas da região Amazônica, ou seja, em regiões que naquela época eram consideradas de fronteira agrícola.
Como de costume, e confirmando um processo histórico de exclusão social no campo, o governo militar alijou completamente o campesinato e demais trabalhadores rurais do acesso à terra em condições favoráveis, privando-os também de direitos básicos da legislação trabalhista já assegurados ao proletariado urbano desde a Era Vargas. A precária situação do homem simples do campo o transformou num migrante e reforçou o processo de urbanização acelerada e caótica, fazendo surgir no país megalópoles que já na década de 1970 se situavam entre as maiores do mundo.
Em paralelo à exclusão social e ao êxodo rural, se desenvolvia a modernização da agricultura pela via do grande capital e dos latifundiários. Esses fatores promoveram fortemente a mecanização agrícola.
Nessa nova fronteira agrícola, o que se destacou foi o desenvolvimento do grande e moderno empreendimento capitalista, defendido justamente pelos marxistas como um fator primordial para o desenvolvimento das forças produtivas e a elevação da luta de classes no campo. Entretanto, essa modernização foi marcada pela exclusão de milhões de camponeses que não foram contemplados com políticas de incentivos, principalmente ao crédito e à assistência técnica.
Mesmo nas regiões já tradicionais de produção agropecuária - como Sul, Sudeste e Nordeste do país -, o que ocorreu foi um processo de modernização da produção, do qual um dos principais objetivos foi a criação de uma classe média rural produtora e, não menos importante, consumidora dos modernos insumos, máquinas e equipamentos ofertados por um novo setor de produção industrial, o departamento de produção de bens de capital para a agropecuária, que foi se instalando no país a partir do governo de Juscelino Kubitschek.
Para tanto, criou-se o Sistema Nacional de Crédito Rural (SNCR), que, longe de se constituir em política de favorecimento e criação das condições de permanência dos pequenos agricultores no campo, serviu muito mais para reforçar os privilégios e a exclusão social, pois tal sistema de créditos - altamente subsidiados e a juros negativos à custa da União - foi largamente concentrado em favor de categorias mais abastadas e direcionado para as regiões mais ricas, como o Sul e o Sudeste.
Uma agricultura gigante, do tamanho do Brasil
-Cometeríamos um erro se propuséssemos medidas capazes de frear o desenvolvimento social ou de preservar artificialmente o pequeno camponês do desenvolvimento do capitalismo, do desenvolvimento da grande produção-, V. I. Lênin.
O desenvolvimento da agricultura em larga escala foi fenomenal. Na passagem da década de 1960 para os anos 1970, o dinamismo da agricultura ainda não havia se consolidado, apesar do crescimento acelerado da safra e da produção pecuária. Naquele período, ainda não nos realçávamos mundialmente na produção de commodities agrícolas, destacando-nos apenas na produção de café e da cana. Mas na passagem da década de 1980 para os anos 1990 começamos a ocupar posições importantes na produção agrícola mundial, numa variedade maior de produtos, como no setor de carnes - avicultura, bovinocultura e suinocultura - soja, laranja, milho, entre outros. A pauta comercial agrícola deixou de ser monocultora. Chegamos ao início do século 21 ultrapassando a barreira das 100 milhões de toneladas de grãos e, neste ano de 2013, estamos para produzir 185 milhões de toneladas.
Há menos de cinco décadas o país produzia apenas 20 milhões de toneladas para uma população de 80 milhões de habitantes. Isso equivalia a uma proporção de apenas 250 quilos de grãos por habitante, ou seja, três quartos a menos do que hoje. Embora a produção total tenha crescido sete vezes, a área de plantio aumentou apenas duas vezes e meia. Em 1965, se cultivava uma área de 21 milhões de hectares e hoje temos uma área plantada de aproximadamente 50 milhões de hectares.
Os subsídios agrícolas cessaram a partir do início da década de 1980. Veio a crise mundial de 1981 a 1983 e, com ela, a falência do Estado brasileiro em honrar os compromissos assumidos referentes aos pesados serviços da dívida externa em virtude da alta dos juros dos EUA, a partir de 1979. Dessa forma, houve uma -privatização- do crédito rural. Apesar disso, esse setor agrícola modernizado já estava estruturado suficientemente para se ajustar a essa economia de mercado cada vez mais competitiva e internacionalizada.
Muito se desenvolveu também no setor do complexo agroindustrial que demanda matérias-primas da agropecuária, o processo à jusante como chamam alguns, ou de -porteira para fora-, como se referem outros. A agricultura brasileira passou a ser fornecedora de um setor industrial doméstico e processador de seus insumos. Deixou de ser simplesmente aquela agricultura agrária exportadora, como no passado, para passar a ser um importante componente de abastecimento interno de um determinado setor da indústria nacional.
O complexo agroindustrial brasileiro encontrou terreno fértil para se desenvolver autonomamente a partir da década de 1980, não mais beneficiário das concessões gratuitas ou não onerosas de terras e de crédito farto subsidiado pela União (pelo menos não na escala anterior). Nesse novo cenário, em que domina o capital financeiro e corporativo, o controle pelo grande capital dos fatores de produção chega a ser único no planeta. Não há limites para o controle das terras; o alto índice de mecanização garante alta produtividade e baixo custo de mão de obra e existe tecnologia disponível e de altíssimo nível e em desenvolvimento por instituições nacionais.
Por isso, não há mais sentido em se falar que o velho latifúndio domina, mas sim que a forma de dominação do campo hoje é predominantemente do capital financeiro associado ao grande e moderno empreendimento agropecuário.
Uma das poucas nações com um fundo de terras de grande extensão, o Brasil vê sua produção bater recordes e mais recordes. Não há país no mundo atualmente que reúna as condições que ele possui para alavancar sua produção agropecuária.
A região do -Mapitoba- - acrônimo extraído das duas primeiras letras de Maranhão, Piauí, Tocantins e Bahia -, cuja área está estimada em 414 mil quilômetros quadrados, quase o dobro do estado de São Paulo, confirma o enorme potencial de crescimento da agricultura nacional. Trata-se de uma dessas novas áreas de fronteira agrícola e que está sendo ocupada segundo o modelo do grande capital produtivo no campo.
Mas, de longe, o maior gargalo da produção agropecuária doméstica é a precária infraestrutura nacional. O estado do Mato Grosso se tornou o maior produtor nacional e, mesmo muito deficiente em infraestrutura, logrou ultrapassar o Paraná, que conta com modernas rodovias, ferrovias e proximidade aos portos. Muitos investimentos públicos estão em execução e outros previstos para atacar as deficiências estruturais, como a construção de ferrovias, hidrovias, modernização e ampliação dos portos. A ferrovia Norte-Sul, a Transnordestina, a ferrovia de Integração Oeste-Leste são apenas alguns exemplos dos esforços governamentais.
O desenvolvimento da agricultura nacional, sem que houvesse significativas alterações na estrutura de dominação no campo, isto é, privilegiando alguns poucos em detrimento de amplos setores sociais, foi excludente e desigual, contribuindo para a concentração de renda e a desigualdade social. Esse tipo de desenvolvimento foi, contudo, uma grande obra da burguesia nacional, pois veio a criar as condições para que o campo viesse a se ajustar ao processo de desenvolvimento da economia nacional. À indústria ela abastece de matérias-primas, ao mesmo tempo em que também consome bens industrializados; ao capital financeiro ela serve para investimentos de fundos e ganhos especulativos; e ao proletariado urbano a agricultura, pelo grau de modernidade, eficiência e competitividade, oferta bens e gêneros alimentícios a preços relativamente baixos, já que alcançamos uma grande capacidade de produção e oferta, o que é fundamental para manter a inflação em baixa (houve uma queda de cerca de 50% no valor da cesta básica nos últimos 40 anos).
José Graziano da Silva, diretor geral da Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO), expõe a centralidade do grande negócio agrícola que, segundo ele, -veio para ficar, ocupa papel estratégico na geração de divisas de países em desenvolvimento e é imprescindível no abastecimento mundial-.
O caráter atrasado e reacionário que configura a grande propriedade agrícola no Brasil, seu aspecto burguês conservador e como ela se organiza política e economicamente dentro do país não podem ser confundidos com a técnica avançada usada na produção agrícola moderna.
Semear uma nova agropecuária: mais revolucionária; menos conservadora
O fortalecimento da nação exige uma agropecuária pujante, moderna e acessível a todos que queiram se dedicar a essa atividade produtiva. Não se pode prescindir da contribuição dos pequenos agricultores e tampouco dos grandes (agricultura empresarial). O desafio é fazer os pequenos produtores se tornarem grandes, sobretudo em produção. Para isso, são necessárias a garantia ao acesso a terra e a concessão de créditos capazes de incentivar a produção.
Urge consolidar os direitos trabalhistas no campo; respeitar a posse dos pequenos proprietários; realizar pesados investimentos na infraestrutura; promover a segurança alimentar dos vulneráveis; derrubar as barreiras de gênero; elevar o nível cultural e educacional da população rural; fomentar as cooperativas e aumentar cada vez mais a produtividade para gerar excedentes, renda e abastecimento do mercado interno. São essas as iniciativas imediatas destacadas no âmbito da FAO e que devem ser potencializadas pelos governos federais, estaduais e municipais.
As reivindicações do movimento dos trabalhadores rurais precisam ser atualizadas de tempo em tempo. É condição basilar acompanhar a evolução do pensamento agrário no país para compreender as transformações ocorridas no decorrer da história: as relações de produção (sociais e técnicas) e as forças produtivas dos modos de produção que imperaram em suas respectivas épocas, bem como o nível da luta de classes em cada tempo e lugar.
* Luciano Rezende Moreira é professor e pesquisador do Instituto Federal Fluminense (IFF), engenheiro agrônomo, mestre em Entomologia e doutor em Fitotecnia pela Universidade Federal de Viçosa (UFV).
**Murilo Ferreira da Silva é professor licenciado da Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG), campus Passos, engenheiro agrônomo, especialista e mestre em Administração Rural pela Universidade Federal de Lavras (UFLA).
Referências bibliográficas
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