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Edição 125 > A juventude quer viver em paz
A juventude quer viver em paz

Depois do assassinato ocorrido em um assalto em São Paulo, sendo o assaltante um jovem prestes a completar 18 anos, a mídia comercial passou a bater insistentemente na tecla da redução da maioridade penal, dando enorme visibilidade para crimes em que há envolvimento de jovens com menos de 18 anos. Na tentativa de defender sua tese, a mídia e os setores conservadores promovem um ataque irresponsável ao Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e difundem a ideia de vingança e mera punição como única forma de se combater o crime.
A mídia há algum tempo vem disseminando um clima de insegurança, noticiando e amplificando os crimes diariamente, e com muita ênfase nos crimes cometidos por jovens com menos de 18 anos. Só parou para tentar cooptar os protestos promovidos por parcela da juventude que tomou as ruas do país por transporte coletivo mais barato e com qualidade.
-Quem acompanha diariamente as notícias na mídia sobre atos de violência cometidos por adolescentes tem a sensação de que os jovens brasileiros são os autores da maioria dos crimes graves no país-, relata Celso Vicenzi, para quem -a mídia tem sido muito eficiente em provocar uma quase histeria na opinião pública, para tentar legitimar mudanças nas leis do país-, acentua. Até o poder midiático perceber uma chance de cooptar as manifestações que se espalharam pelo país contra as altas dos preços das passagens de ônibus, a principal tese para ganhar os setores médios e desinformados da população era a da redução da maioridade penal para 16 anos como a maneira que entendem para reduzir a criminalidade.
Com isso, os adolescentes, pessoas em processo peculiar de desenvolvimento, passariam a ser julgados pela justiça comum e cumpririam pena no sistema penitenciário como, e juntamente com, adultos, nos já superlotados presídios. Para isso, a mídia promove um verdadeiro massacre sobre a opinião pública com inserções de cenas de violência aos estertores. Como bem descreveu noutro dia o apresentador José Luiz Datena para tentar se defender da acusação de que programas do tipo que ele apresenta insuflam à violência, disse ele: -é só ligar a Globo e tá lá não sei quem matou alguém assalto não sei aonde e na Record-, insiste ele, -a mesma coisa-. Ele se esqueceu do SBT e da emissora em que ele trabalha, a Band. Enfim, em todas as emissoras comerciais abertas o maior foco das notícias são crimes, de preferência os mais violentos que envolvam menores de idade. E, com isso, parece que só acontecem crimes no Brasil, e nada além.
As emissoras têm o claro propósito de criminalizar a juventude e com isso reduzir a idade penal de 18 para 16 anos. O deputado Campos Machado (PTB-SP) colhe assinaturas para reduzi-la para 14 anos. Já o governador de São Paulo, Geraldo Alckmin (PSDB), procurou uma proposta para negociação, mas tão perniciosa quanto. O governador propõe aumentar o tempo de reclusão dos adolescentes - hoje 3 anos determinados pelo ECA para trabalhos sócio-educativos - para 8. Todas essas teses partem do princípio da vingança e da punição que vem desde a escravidão no Brasil, onde o negro fugido era cruelmente açoitado. Essa é uma das faces da luta de classes cada vez mais transparente no país.
Estão transformando o adolescente em bode expiatório responsável para resolver a insegurança de setores da elite, que vivem enclausurados em suas casas, confortavelmente. Assim, desviam a atenção das causas reais da violência, como a falta de atendimento por parte do Estado a questões sociais fundamentais para os mais carentes, deixando parcela considerável da população à margem e à mercê do crime organizado ou não.
Uma audiência pública realizada na Câmara dos Deputados, dia 23 de maio, para discutir uma Agenda Propositiva para Crianças e Adolescentes 2013, constatou que existem no Congresso 1.566 proposições legislativas sobre os direitos da infância e da juventude. Entre elas, 41 tratam da redução penal de 18 para 16 anos. Segundo os debatedores, nenhuma das propostas prevê medidas preventivas para não permitir aproximação do adolescente com a criminalidade. -A maioria dos projetos em tramitação prevê a retirada de direitos dos adolescentes, em geral criminalizando essa parcela da população. Não estamos só saindo da agenda da negação do direito, mas retrocedendo ao cair na lógica da criminalização, colocando crianças e adolescentes sob o olhar do Código Penal-, reclama Maira Izabel da Silva, presidenta do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda).
-Há um debate muito equivocado em torno da redução da idade penal. A conta da violência não pode ser cobrada da juventude-, ressalta Caroline Amanda, gestora do Projeto Cidadania Ativa do PDA Sampa/SUL, que trabalha na região do bairro Capão Redondo e Jardim Ângela de São Paulo. Os organizadores do Movimento 18 Razões para a Não Redução da Maioridade Penal defendem que essa redução não resolve o problema da criminalidade ou, pior, coloca o adolescente em maior risco e a serviço do crime - justamente porque o sistema prisional brasileiro não recupera ninguém e tem um índice de reincidência de 70%. Além disso, as leis não se podem basear pela exceção e sim pela regra.
Mas o insuspeito Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) mostra que os adolescentes brasileiros são responsáveis por 3,8% dos homicídios. Fato que não justificaria tal medida repressiva. O diretor Mário Volpi, do Unicef, contraria a tese amplificada pela mídia, ao afirmar que -na última década enquanto 24 mil crianças brasileiras foram salvas com a redução da mortalidade infantil, 80 mil adolescentes morreram assassinados-.
-Recente pesquisa feita pelo Centro de Estudos Latino-Americanos desmente a mídia, ao traçar o perfil das vítimas de armas de fogo no país e mostra que 67,1% dos mortos estão entre 15 e 29 anos. O sociólogo Jacobo Waiselfisz, responsável pelo levantamento, denuncia: -temos uma epidemia de violência em todo o Brasil e sabemos o perfil de quem ela atinge mais: são jovens, negros e, geralmente, de baixa renda-.
A Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ) da Câmara também iniciou, no dia 3 de junho, uma série de audiências públicas sobre a redução da maioridade penal. De acordo com o autor dos requerimentos de debate, o presidente da CCJ, senador Vital do Rêgo (PMDB-PB), a intenção é criar um ambiente nacional de discussão sobre o assunto. Os eventos foram transmitidos ao vivo a todas as assembleias legislativas do país, mas a força da mídia ainda é muito maior que tudo isso. A diretora da ONG Turma Louca, Maria Lino, acredita que -em vez de diminuir a maioridade penal, precisamos, todos juntos, garantir um trabalho sócio-educativo e cultural digno e significativo para os jovens em situação de risco, envolvendo trabalhos culturais, lazer, esporte e cursos profissionalizantes com iniciação ao trabalho-.
Acompanhar todas essas discussões torna-se fundamental, porque a pressão midiática é cada vez mais atenuante com o objetivo claro de conquistar a redução da maioridade penal e assim, como diria um ex-general presidente na época da ditadura, prender e arrebentar os infratores, quase todos pobres, negros e moradores da periferia. Porque ninguém reclamou redução da maioridade penal quando cinco jovens de classe média alta de Brasília atearam fogo no índio Galdino em 1997, por pura diversão. Ao serem detidos argumentaram que pensaram tratar-se de um mendigo. Alguns dos rapazes tinham menos de 18 anos. Mas agora a reação conservadora está com a corda toda para cima da juventude com essa proposta para vingar-se e punir os infratores menores de 18 anos. Se conseguirem qual será o próximo passo-
-Não vejo através da mídia o mesmo empenho no questionamento da qualidade das escolas-, assinala Netinho de Paula, secretário de Promoção da Igualdade Racial, da prefeitura de São Paulo. Exatamente -porque os filhos daquelas pessoas que defendem a redução da idade penal estão em boas escolas e têm acesso aos bens culturais-, reforça Netinho ao criticar duramente a parcialidade da mídia na questão.
E como se trata de uma cláusula pétrea, ou seja, para alterar o ECA, o governador de São Paulo, Geraldo Alckmin, sob o argumento de que a -sociedade tem pressa-, elaborou um projeto, transformando em 8 anos o tempo de reclusão do adolescente infrator e não mais os 3 anos como determina o ECA - numa clara tentativa de entupir as cadeias com mais jovens ainda. Na eleição municipal do ano passado, em São Paulo, o então candidato do PSDB, José Serra, defendeu em rádio das organizações Globo, que se determinasse o -criminoso potencial- ainda na escola - uma emenda piorada do filme Minority Report.
Mais educação, menos repressão
Como disse a deputada estadual Leci Brandão (PCdoB-SP), -a gente precisa menos de cadeia e muito mais de escola-, sinalizando a necessidade de se fazer investimentos nas áreas sociais como maneira de combater a violência. Porque a mídia amplifica os acontecimentos virulentos para pressionar a opinião pública e, com isso, o debate fica prejudicado, calcado somente no aspecto emocional. -Todo mundo concorda que a Fundação Casa não regenera ninguém. Então, será que a cadeia regenera- Um local em que homens de 40 anos de idade não sobrevivem ou, no mínimo, saem bem piores do que entraram. Imaginem colocar em um lugar assim meninos de 16 anos-, assusta-se o MC Renato de Souza, da Juventude de Diadema Unida pela Paz.
Para alertar as pessoas sobre o quão importante é defender os direitos conquistados de crianças e adolescentes, Maria Izabel lembra que -dos 9,8 mil adolescentes que cumprem medidas sócio-educativas em São Paulo, mais de 41% estão nessa condição por envolvimento com o tráfico de drogas e cerca de 30% em razão de roubo associado às drogas. Os latrocínios, roubos seguido de morte, correspondem a apenas 0,96% do total-. E complementa: -São Paulo concentra mais da metade dos adolescentes que cumprem essas medidas-.
Nota da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil mata a pau a pretensão reacionária de criminalizar a juventude brasileira: -Criminalizar o adolescente com penalidades no âmbito carcerário seria maquiar a verdadeira causa do problema, desviando a atenção com respostas simplórias, inconsequentes e desastrosas para a sociedade-, reforça. Contra a política do ódio, a juventude quer viver em paz, em condições de andar livre pelas ruas.
Para Denise Maria Cesario, gerente executiva da Fundação Abrinq, -tratar o adolescente como criminoso contribuirá ainda mais com o inchaço populacional das cadeias brasileiras, favorecendo o aumento da violência-. E acrescenta ainda: -a medida poderá fortalecer o crime organizado, possibilitando que adolescentes com idade entre 12 e 15 anos sejam aliciados para o cometimento de delitos-, com maior facilidade do que acontece atualmente. Denise assegura que o -sistema carcerário no Brasil tem uma infraestrutura extremamente precária- e que já conta com inchaço de presos e não tem trabalho eficiente de recuperação.
O professor da Escola Superior de Advocacia, Ricardo August Yamasaki, revela que -na medida em que- família, comunidade e o Estado -tomam consciência de sua responsabilidade frente às crianças e adolescentes, a gente consegue construir um debate mais viável e rico-, conforme as pessoas adquiram infração correta das coisas deixarão -de lado a discussão rasa que está em curso-, no Congresso e na mídia. Porque, acentua Yamasaki, -essa falta de informação- confiável -dificultará a geração de conhecimento- que possa elevar o nível do debate e fazer com que todos entendam que reduzir a maioridade penal não é solução para nada. Em uma nota rígida, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) defende a lei em vigor e mostra que -criminalizar o adolescente com penalidades no âmbito carcerário seria maquiar a verdadeira causa do problema, desviando a atenção com respostas simplórias, inconsequentes e desastrosas para a sociedade-.
O art. 227, §3º, inciso V, da Constituição Federal estabelece a -obediência aos princípios da brevidade, excepcionalidade e respeito à condição peculiar da pessoa em desenvolvimento, quando da aplicação de qualquer medida privativa de liberdade-, critérios regulados pelo ECA a partir de 1990. Mas a direita nunca engoliu as leis de defesa da infância e da juventude.
O Brasil também ratificou tratados internacionais, como a Convenção sobre os Direitos da Criança da Organização das Nações Unidas (ONU), e, por isso, as propostas de redução da idade penal baseiam-se na divulgação midiática de crimes violentos, exatamente para desinformar e com isso atingir sua meta de encarcerar os adolescentes pobres. -A porcentagem de menores de 18 anos de idade em conflito com a lei é menor que 0,2%; dentre estes, apenas 12% cometeram atos infracionais de natureza grave-, diz o Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente paulistano.
Rildo Marques, do Movimento Nacional de Direitos Humanos (MNDH), acredita que a -educação proposta- que -prevê a retirada da pessoa da sociedade, excluindo-a, como se a exclusão fosse meio eficaz de controlar a violência-, predomina hoje porque a mídia tem defendido essa tese com unhas e dentes afiadíssimos. Para ele, o importante é buscar alicerçar-se no -conhecimento científico, estudando as causas da violência- e, assim, propor -a restauração do sujeito- com -uma educação reflexiva que permita ao sujeito se refazer diante de seus próprios atos-. Para Marques, -há pelo menos 200 anos- esse sistema de repressão é usado como controle social da violência, -mas suas medidas ao longo dos anos se tornaram pouco eficazes com relação à diminuição da violência, acarretando uma conclusão de que a punição ao sujeito não é de fato o que faz diminuir a violência-. -Fica evidente que a violência está diretamente ligada aos reflexos da organização social-, garante.
Denise, da Fundação Abrinq, explica que o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (Sinase), determinado pelo ECA, -segundo dados de 2011 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ)-, é aplicado -em somente 5% das ações judiciais envolvendo adolescentes-, enquanto -81% dos adolescentes autores de ato infracional não receberam acompanhamento após o cumprimento de medida socioeducativa-, sinaliza ela, devido ao descumprimento da lei e o despreparo das instituições que deveriam aplicar essas medidas de recuperação dos adolescentes.
Netinho confirma que -menos de 1% dos homicídios praticados no país são praticados por menores-. Para ele, a juventude clama por atenção e -quer e deve ter espaço para expressar suas necessidades-. Infelizmente, os setores conservadores, através da mídia, julgam -mais fácil punir o jovem que não possui voz e representatividade-, defende. -A solução para os problemas do nosso país está em ouvir a sociedade, especialmente, a juventude. É chegada a hora de romper as barreiras, historicamente, construídas. É para isso que serve o Estado e por isso que devemos trabalhar. Não é com esse tipo de medida que resolveremos nossos problemas-, assegura Netinho, para quem -educação, cultura e informação real, são fatores fundamentais- no processo de construção do cidadão desde a mais tenra idade.
-Neste sentido o Estatuto da Criança e do Adolescente é diretriz para a questão do jovem infrator, e se seguida conforme seus preceitos dará conta de provocar no jovem reflexões quanto a sua atitude, para que ele se refaça no meio social, mas ao mesmo tempo propõe que as condições sociais ao qual o jovem está submetido no momento de seu ato, seja pelo Estado, encontrando formas de colocá-lo, assim como sua família em situação de segurança social-, propõe Rildo Marques. -Reduzir a maioridade penal é medida infrutífera para controle social da violência. Ao contrário, pode fazer com que haja mais crianças envolvidas em práticas de delitos-, finaliza.
Marques acrescenta: -as cadeias em São Paulo, por exemplo, são hoje dominadas pelo crime organizado-, para o qual o detento é um elemento a mais para aumentar o seu negócio. -O crime organizado possui pedagogia dentro das suas unidades recrutando e dando aporte social. Isto porque há anos o Estado, a pedido da sociedade, abandonou aquelas pessoas quanto ao ideal de reinserção social-. Em 1991 -a polícia paulista tinha em seus quadros 110 mil policiais e 350 mil seguranças privados. Hoje temos 120 mil policiais e mais de 3 milhões de seguranças privados formais e informais-, garante Marques. Para ele, tem gente ganhando com a violência -e não são os bandidos-. Para o adolescente Walisson Lopes de Souza, -o grande desafio é fazer com que cada um desses jovens reencontre um sentimento que foi atropelado pelas dificuldades e pelas barreiras enfrentadas no decorrer de uma vida dura e difícil: a esperança-.
O Fórum de Entidades da Psicologia Brasileira (FEPB) defende a não-redução da idade penal e baseia-se em que -a adolescência é uma das fases do desenvolvimento dos indivíduos e, por ser um período de grandes transformações, deve ser pensada pela perspectiva educativa. O desafio da sociedade é educar seus jovens, permitindo um desenvolvimento adequado tanto do ponto de vista emocional e social quanto físico-. Por isso, para o FEPB, é preciso -garantir o tempo social de infância e juventude, com escola de qualidade, visando a dar condições aos jovens para o exercício e vivência de cidadania, que permitirão a construção dos papéis sociais para a constituição da própria sociedade-.
Para os psicólogos, portanto, -a repressão não é uma forma adequada de conduta para a constituição de sujeitos sadios- e, dessa forma, -reduzir a idade penal reduz a igualdade social e não a violência - ameaça, não previne, e punição não corrige- ninguém, nem nunca corrigiu. -Reduzir a maioridade penal isenta o Estado do compromisso com a construção de políticas educativas e de atenção para com a juventude-, conclui o FEPB.
*Marcos Aurélio Ruy é jornalista.