Cultura
Edição 124 > A malandragem e o samba como resistência à opressão
A malandragem e o samba como resistência à opressão
A história de vida de dois importantes integrantes da música popular brasileira prova a capacidade do povo brasileiro em resistir à opressão para se afirmar enquanto povo. Com a Abolição da Escravatura e a Proclamação da República, o Brasil vivia em ebulição no início do século 20, com diversos acontecimentos que se refletiram na construção de um sentimento de nação. Wilson Batista e Jamelão, que completariam 100 anos, tiveram trajetória peculiar e marcaram a vida cultural do país

Muito decantada na MPB, a malandragem teve reflexos na vida carioca, e o tema esteve presente nos sambas produzidos em meados do século 20. A questão era tão forte que chegou a ser proibida por uma portaria governamental a “exaltação da malandragem” nas músicas de então. Muitos foram os compositores brasileiros que procuravam formas de resistir à perseguição que sofriam pelo poder estabelecido. A vida e obra do compositor Wilson Batista e as dificuldades enfrentadas pelo cantor Jamelão – ambos completariam 100 anos de vida neste ano – demonstram essa faceta da vida brasileira.
Considerado por Paulinho da Viola como o “maior sambista de todos os tempos”, Wilson Baptista de Oliveira (03/07/1913-07/07/1968) tem sido um tanto quanto relegado a segundo plano, talvez pela sua aproximação com notórios malandros da época e trajar-se como eles, inclusive carregando uma navalha no bolso, que dizem as más línguas nunca dali saiu para nada. O seu culto à malandragem lhe rendeu fãs famosos, como Madame Satã, que se tornou fã incondicional do compositor nascido em Campos, interior do Rio de Janeiro. Sempre trajado de terno azul-marinho ou branco, camisa de seda, sapatos cara de gato e cachecol branco, para Madame Satã, Wilson Batista “era o maior compositor do Brasil”.
Jamelão – José Bispo Clementino dos Santos (12/05/1913-14/06/2008) – também enfrentou adversidades e mesmo com seu reconhecido talento, teve dificuldade de se impor e ganhar a vida como cantor. Cedo conheceu a Estação Primeira de Mangueira e lá se engajou no samba e encontrou seu caminho, transformando-se para muitos no principal puxador de sambas-enredo do país. Jamelão reforça as adversidades que enfrentou com um depoimento sobre o racismo que atingia, e ainda atinge, os negros brasileiros. Ele relata que “o artista negro sempre encontra uma barra mais pesada”, e que “no meio musical todo mundo quer o crioulo, mas para fazer figuração, para tocar pandeiro e agogô e as mulatas para sambar”, já “para ser estrela não serve, tem de ser branco e de preferência boa pinta”. Mas, diz ele, “não grito contra isso porque sei que as pessoas que hoje me desprezam vão me amar”; porém, “já fui deixado de lado em função de outros caras só porque eram brancos”, acentua.
O Brasil vivia uma efervescência de acontecimentos no início do século passado. As lutas operárias que transformavam a vida do país, a Revolução Russa, em 1917, que influenciou a demanda revolucionária em todo o mundo. Mesmo ano em que foi gravado o primeiro samba no país, Pelo Telefone. A entrada em cena do Partido Comunista do Brasil em 1922 e a Semana de Arte Moderna também em 1922. A Revolução de 1930, que transformou a cena brasileira tirando as oligarquias paulista e mineira do centro do poder. O fortalecimento do rádio como principal órgão de comunicação na época e o forte sentimento de identidade nacional que se forjava para se erguer uma nação.
Esses fatos deram contorno ao samba e marcaram os sambistas do Rio de Janeiro. Traço que se fortalecia nos morros e começava a descer para o asfalto, urbanizando-se. Wilson Batista é um dos representantes dessa faceta ao lado de outros grandes, como Noel Rosa com quem travou profícuo embate musical.
Os dois jovens compositores transformam a mais famosa disputa musical da música popular brasileira em grandes pérolas da MPB. Porque tanto um quanto o outro conseguiram transpor as barreiras do circunstancial e temporal. As músicas de ambos no embate podem ser ouvidas e cantadas independentemente da peleja e permanecem atuais porque falam da alma humana. Tudo começou com Lenço no Pescoço, de Wilson Batista, para a qual Noel respondeu com a canção Rapaz Folgado, ainda em 1933, justamente porque entendeu o samba do compositor fluminense como apologia à malandragem. E para Noel essa visão prejudicava a figura do sambista, já tão malvisto pela sociedade.
Wilson Batista cantava: “Meu chapéu do lado/ Tamanco arrastando/ Lenço no pescoço/ Navalha no bolso/ Eu passo gingando/ Provoco e desafio/ Eu tenho orgulho/ Em ser tão vadio”. Samba ao qual Noel respondeu que “(...) Malandro é palavra derrotista/ Que só serve pra tirar/ Todo o valor do sambista/ Proponho ao povo civilizado/ Não te chamar de malandro/ E sim de rapaz folgado”. Batista retrucou com Mocinho da Vila: “Você que é mocinho da Vila/ Fala muito em violão, barracão e outros fricotes mais/ Se não quiser perder/ Cuide do seu microfone e deixe/ Quem é malandro em paz”. Noel não se fez de rogado, aceitou o desafio e respondeu com Feitiço da Vila, em parceria com Vadico, na qual afirmava: “Quem nasce lá na Vila/ Nem sequer vacila/ Ao abraçar o samba/ Que faz dançar os galhos,/ Do arvoredo e faz a lua,/ Nascer mais cedo./ Lá, em Vila Isabel,/ Quem é bacharel/ Não tem medo de bamba”.
Desse entrave ainda nasceram músicas antológicas como Conversa Fiada, de Wilson Batista, e Palpite Infeliz, de Noel. Depois dessa canção de Noel Rosa, Batista apelou e fez Frankenstein da Vila, em referência ao defeito de nascença que o Poeta da Vila tinha em seu queixo. Noel não respondeu. Pondo fim a celeuma, ele resolveu fazer a poesia para a música Terra de Cego, de Batista e eles rebatizaram a canção com o título de Deixa de Ser Convencida, e a parceria aproximou os compositores e a polêmica foi encerrada. Até hoje, porém, quando se fala em Wilson Batista a primeira questão que vem à mente é essa disputa com Noel Rosa.
A malandragem de Wilson Batista
Contrariando a trajetória que fatalmente o transformaria em operário, o sambista fluminense voltou-se cedo para a música sob a batuta do tio Ovídio Batista, maestro da banda Lira de Apolo, da cidade natal de Wilson Batista, na qual ele iniciou tocando triângulo. Mas ele marcou sua trajetória na então capital federal, final dos anos 1920, para onde se mudou com a família ainda garoto e se apaixonou pela boemia do bairro da Lapa. Iniciou carreira ainda muito jovem nos cabarés e bares e fazendo amizades com muitos músicos e malandros da cidade. A proximidade com malandros rendeu-lhe algumas prisões e um estilo inconfundível entre os compositores da época. Antes de definir-se pela música, chegou a trabalhar como eletricista e ajudante de contrarregra no Teatro Recreio, na Praça Tiradentes, reduto dos sambistas e boêmios de então. Compôs o seu primeiro samba em 1929, com apenas 16 anos, Na Estrada da Vida. Foi cantor e ritmista na Orquestra de Romeu Malagueta e no começo da década de 1930 teve o seu samba, Desacato (em parceria com Paulo Vieira e Murilo Caldas) gravado por três grandes intérpretes da época, Francisco Alves, Castro Barbosa e Murilo Caldas.
Wilson Batista compôs sambas que permanecem na história de nossa música, como Mania da Falecida e Oh, seu Oscar (ambos com Ataulfo Alves), o samba de breque em parceria com Geraldo Pereira e gravado por Moreira da Silva, Acertei no Milhar, com Haroldo Lobo fez Emília, Pedreiro Valdemar, com Roberto Martins, Balzaquiana, de parceria com Nássara. Em 1933, Almirante gravou sua batucada Barulho (com Osvaldo Silva). Acredita-se que sua primeira parceria tenha sido com Sinhô, outro sambista de respeito, com o qual fez o samba de breque Mil e Uma Trapalhadas, gravado somente nos anos 1960 por Moreira da Silva.
Com mais de 600 músicas em seu currículo e contratos assinados com as mais importantes rádios da época, o sambista fluminense teve pouco reconhecimento em vida, apesar de ter sido gravado por Aracy de Almeida e Francisco Alves, o principal intérprete daqueles memoráveis tempos. Conhecido por tocar somente a inseparável caixa de fósforos, foi apelidado por Custódio Mesquita como o “maestro caixa de fósforos”. Para o pesquisador Moisés Basílio, “Wilson na música se assemelhou muito ao Lima Barreto na literatura no que diz respeito a terem suas obras marginalizadas.”
Jamelão vence adversidade
Trajetória muito parecida teve Jamelão. Ainda criança trabalhou como engraxate e vendedor de jornal na cidade maravilhosa, para mais tarde tornar-se tocador de tamborim e cavaquinho nos subúrbios cariocas. Com 15 anos conheceu o sambista Gradim, Lauro Santos, que o levou à Mangueira, de onde o cantor nunca mais saiu, tornando-se o seu principal puxador de samba-enredo por décadas.
Sua carreira foi iniciada em 1949, mas ganhou força a partir de 1952 quando ele passou a ser a voz principal em sucessão a Xandô da Mangueira. Encerrou carreira em 2006, dois anos antes de falecer. Começou como cantor sendo corista de Francisco Alves nas rádios cariocas e numa noite assumiu o lugar do famoso cantor para interpretar música de Herivelto Martins. Sua voz forte e marcante jamais foi esquecida desde então.
Há duas versões para o seu apelido. Uma afirma que um radialista lhe pôs pseudônimo, apresentando-lhe dessa forma. A segunda versão ele mesmo contou numa entrevista ao Jornal do Brasil, em 1998, na qual afirmou que o apelido “é coisa de garoto. Minha mãe era doméstica e trabalhava no Colégio Independência, na Rua Bela Vista, no Engenho Novo. A gente morava nos fundos do colégio, num barraco. Quando comecei a jogar futebol no Piedade Futebol Clube, a turma costumava sair e ir jantar num restaurante. Um dia me levaram para a gafieira e lá surgiu o nome Jamelão”. Acrescenta ainda que “o pessoal na brincadeira falou para o gerente que eu gostava de cantar”, e acentua: “não é que eu gostasse, eu sabia as músicas da época, a gente cantava junto”, e diz: “o cara não sabia meu nome e foi para o microfone e anunciou Jamelão”, desde então o apelido pegou. “Quando fui para a Rádio Tupi, nos anos 1940, o Almirante, que era diretor, não queria que eu cantasse com o apelido. Queria me tirar da programação”, relata Jamelão.
Além de ser o principal intérprete da Mangueira, ele passou a fazer parte da ala dos compositores da escola a partir de 1968. Quatro anos mais tarde gravaria um LP (Long Play) somente com músicas de Lupicínio Rodrigues e tempos depois seria reconhecido como o principal intérprete do compositor gaúcho. Em 1999 foi eleito por especialistas do Rio de Janeiro e de São Paulo como o “intérprete do século do carnaval carioca”.
A vida e obra desses dois artistas populares negros ressaltam a necessidade de se entender a formação da cultura e do povo brasileiro em todos os seus aspectos, sem preconceitos e com olhos no presente, voltados para o futuro. O Brasil, visto por dentro de suas entranhas. Ao lado de grandes nomes da música popular brasileira, tanto um quanto o outro se destacaram com seu canto de brasilidade e negritude. Como o tema estampado na canção Cabide de Molambo, de João da Baiana, de 1928, que ilustra com perfeição a vida do país no início do século 20: “(...) Meu Deus eu ando/ Com sapato furado/ Tenho a mania/ De andar engravatado/ A minha cama é um pedaço de esteira/ E uma lata velha, que me serve de cadeira/ E o meu chapéu/ Foi de um pobre surdo e mudo/ As botinas foi de um velho/ Da revolta de Canudos/ Quando eu saio a passeio/ As almas ficam falando/ Trabalhei tanto na vida/ Pro malandro estar gozando”.
* Marcos Aurélio Ruy é jornalista.
Referências bibliográficas
NAPOLITANO, Marcos. A síncope das ideias: a questão da tradição na música popular brasileira. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2007.
PIMENTEL, Luis & VIEIRA, Luis Fernando. Wilson Batista: na corda bamba do samba, Perfis do Rio. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1996.
TINHORÃO, José Ramos. Pequena história da música popular: da modinha ao tropicalismo. São Paulo: Vozes, 1974.
WILSON BATISTA. Fascículos da Nova história da música popular brasileira. São Paulo: Abril, 1977