• Home
  • Nossa História
    • Nosso Time
  • Edições
    • Principios de 101 a atual
    • Coleção Principios - 1 a 100
  • Índice Remissivo
  • Contato

Revista Principios

  • Home
  • Nossa História
    • Nosso Time
  • Edições
    • Principios de 101 a atual
    • Coleção Principios - 1 a 100
  • Índice Remissivo
  • Contato

Capa

Edição 124 > Entrevista com Paulo Vannuchi: “A sociedade capitalista não é capaz de assegurar por completo os direitos humanos”

Entrevista com Paulo Vannuchi: “A sociedade capitalista não é capaz de assegurar por completo os direitos humanos”

Priscila Lobregatte*
Twitter
FaceBook

Ao fazer um balanço dos dez anos do governo Lula e Dilma na área dos direitos humanos, o ex-ministro Paulo Vannuchi aponta os avanços e recuos deste setor no Brasil e ressalta que somente outro modelo de sociedade seria capaz de assegurar direitos humanos plenos

O jornalista Paulo Vannuchi, graduado em jornalismo pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, com mestrado em ciência política também na USP, é referência na defesa dos direitos humanos. Ele teve participação efetiva nos movimentos de esquerda no período da ditadura e trabalhou na elaboração do livro Brasil Nunca Mais, coordenado por dom Paulo Evaristo Arns. Entre 2005 e 2010 ocupou o cargo de ministro da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República e protagonizou momentos importantes de avanços na área durante o governo Lula, mas admite que muita coisa ficou aquém do esperado.

Ao receber a revista Princípios no Instituto Lula, em São Paulo, onde atualmente ocupa cargo de direção, Vannuchi falou sobre o trabalho realizado nessa última década e destacou que o acontecimento mais importante foi a mudança de eixo na condução da política nacional, que passou a encarar a fome como um grave problema de direitos humanos que precisava ser seriamente enfrentado. Sobre a Comissão da Verdade, destacou que pela primeira vez -o Brasil está começando a fazer um exame oficial sobre sua própria história-. E disse também que a sociedade capitalista não é capaz de responder por completo às necessidades do ser humano.

Acompanhe a seguir os principais trechos da conversa.

Contexto histórico dos direitos humanos

Historicamente, os direitos humanos constituem a construção de um sistema de garantias do indivíduo frente ao Estado, ou seja, um Estado não poderia ter um ministério de direitos humanos. Instituí-lo, portanto, foi uma ruptura com essa tradição histórica.

A construção histórica dos direitos humanos tem séculos de debates, mas um marco importante central foi a Revolução Francesa, que pregou liberdade, igualdade e fraternidade. A burguesia revolucionária empalmou essa construção histórica e a utilizou para derrubar a nobreza. Naquele processo de transição, a nova classe dominante rapidamente negou à classe trabalhadora os mesmos direitos que ela tinha exigido da nobreza feudal apeada do poder.

O século 19 foi de revoluções nas quais se verificou um confronto repetido depois no século 20: a tríade de direitos pregados na Revolução Francesa se resumiu à luta por liberdade e igualdade. Nas revoluções do século 19, a burguesia ficou com os direitos liberais que ela associava ao capitalismo enquanto o nascente movimento operário, socialista, levantou a questão da igualdade.

No entanto, Hannah Arendt - que não era marxista - lembrou que a liberdade é o fundamento mais essencial de toda a teoria marxista. A teoria da revolução em Marx começa como uma teoria da liberdade. E a realização plena dos indivíduos, que é o que Marx quer, precisa de igualdade econômica e social.

Os horrores da guerra e a Declaração de 1948

A Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, começou a ser trabalhada para criar algo como uma convenção, mas se resolveu constituir um instrumento até mais forte: o pacto. Só que em 1966 a mesma Assembleia Geral da ONU aprovou dois pactos no mesmo dia porque o mundo não resolvia a disjuntiva entre capitalismo e socialismo, e a URSS havia se recusado a assinar a Declaração de 1948 colocando-se contra o artigo que garantia às pessoas o direito à propriedade, sozinha ou em parceria. Foi uma estupidez porque na história do socialismo e mesmo da constituição soviética sempre se assegurou a ideia de propriedade cooperativa. Nas experiências da China e de Cuba houve momentos em que se abriu a possibilidade de haver propriedade privada sobre o que não fosse considerado estratégico. O Vaticano também não assinou por considerar que a fundamentação teológica era a única capaz de assegurar os direitos humanos.

Hannah Arendt fez um grande achado ao dizer que em nenhum lugar do planeta as pessoas nascem livres e iguais. Elas nascem presas e desiguais devido às estruturas, aos costumes. A Declaração foi um momento em que a humanidade resolveu fazer um programa político propondo que fôssemos livres e iguais em dignidade - foi, portanto, um notável avanço. Assim chegou-se aos dois pactos, um tratando dos direitos civis e políticos e o outro dos direitos econômicos, sociais e culturais. O Brasil é signatário de ambos.

 

A Declaração dos Direitos Humanos e a Comissão da Verdade

A Declaração Universal dos Direitos Humanos coloca em seu preâmbulo uma questão muito cara ao período Lula, ao seu mandato e ao Brasil de hoje e que dá sustentação à Comissão da Verdade. Referindo-se ao nazismo, o documento considera -essencial que os direitos humanos sejam protegidos pelo Estado de Direito, para que o homem não seja compelido, como último recurso, à rebelião contra a tirania e a opressão-.

Este é o nosso tema para a Comissão da Verdade: quem se levantou e resistiu não cometeu crime, não violou direitos humanos. Primeiro porque a violação dos direitos humanos não é a violência praticada entre pessoas. Tecnicamente, é sempre a violência do Estado contra as pessoas. Além disso, o direito à rebelião contra a tirania é algo que já estava colocado até mesmo em John Locke, em São Tomas de Aquino etc. Valorizamos muitos estes aspectos nas discussões com os Bolsonaro da vida e outros órfãos da tortura. Dizemos: -nós éramos resistentes, estávamos usando o direito de rebelião contra uma ditadura ilegítima que agia pela força, assim como o fizeram aqueles que lutaram contra o nazismo-.

 

As históricas violações no Brasil

Ao longo de mais de 500 anos, o Brasil foi um vasto cemitério dos direitos humanos. É a história do extermínio indígena de mais de cinco milhões de brasileiros que aqui estavam quando Cabral chegou; é a história de 330 anos de escravidão como um modo de produção do país. O país inteiro se formou, ao longo de três séculos, tendo a classe trabalhadora como escrava, uma mão de obra comprada às dúzias, como peças. E toda luta pela liberdade ou pela igualdade foi tratada no sabre: Cabanagem, Balaiada, Praieira, Confederação do Equador, Canudos, Chibata, Contestado etc.

No século 20, tivemos duas ditaduras: a de Getúlio Vargas e a de 1964. Como colocou Sérgio Buarque de Holanda em Raízes do Brasil, a democracia no Brasil nunca passou de um lamentável mal entendido porque ela saía da boca dessa aristocracia da terra. Então, em 31 de março de 1964 foi instalado um golpe militar -em nome da democracia-, tendo sido a democracia apropriada pela antidemocracia - o oligarca, o aristocrata, o latifundiário. A primeira página de O Globo daqueles dias colocava: -Fugiu Goulart e a democracia está sendo restabelecida. Empossado Mazzilli na Presidência-.

 

A Constituição de 1988

Considero 1988 o ano zero da construção da democracia institucional no Brasil porque a Constituição de 1946, embora tenha sido uma bela Carta, não conseguiu respirar. O Partido Comunista conseguiu 15% dos votos e um ano depois foi cassado pelo Supremo. A Constituição de 1988 foi absolutamente inédita; pela primeira vez o Brasil conviveu com uma coisa chamada democracia. Na esquerda existe a tradicional anteposição entre democracia substantiva e procedimental, como se aquela fosse a única que realmente importasse. Estamos aprendendo que não é assim. Temos de ter parlamento, temos de conviver mesmo quando há um Marco Feliciano. 

Depois, houve uma sucessão de governos nos quais alguns passos foram dados em relação aos direitos humanos. E reconhecemos com isenção o papel de Fernando Henrique Cardoso, que adotou vários instrumentos neste sentido, sobretudo no âmbito da Organização dos Estados Americanos (OEA), reconhecendo a importância do sistema interamericano, além de duas leis importantes de reparação. Uma delas foi a Lei 9.140/1995, que pela primeira vez reconhece a responsabilidade do Estado por 136 mortos, incluindo os guerrilheiros do Araguaia, e cria a Comissão de Mortos e Desaparecidos Políticos, que examinou mais de 300 outros casos e aprovou mais de 200. Depois, a Lei 10.559/2002 criou a Comissão de Anistia do Ministério da Justiça, que está trabalhando até hoje, fazendo as Caravanas da Anistia, construindo o Memorial da Anistia em Belo Horizonte, e com uma composição de gente séria vinculada à questão dos direitos humanos.

 

O grande marco do governo Lula

Lula teve como grande marco na área dos direitos humanos em seus oito anos de governo o enfrentamento da fome, tema nunca tratado como sendo de direitos humanos. O Brasil tinha 50 milhões de pessoas sem comida e toda a democracia pós-1988, incluindo Fernando Henrique Cardoso, mal tratou disso, e quando tratou, o fez com ações como a Comunidade Solidária, que foi importante, meritória, mas a fome nunca foi um eixo. Com Lula, damos esse salto e o social passa a ser o eixo central das políticas públicas.

Muitos questionaram que, para isso, teve de haver muita concessão, aliança com a direita etc. Não importa. Historicamente foi um momento em que a democracia brasileira finalmente deu esse passo que significou deixar claro que democracia não é só os direitos civis e políticos, também são os direitos econômicos, sociais e culturais. Dez anos depois, dando continuidade, Dilma Rousseff fala que o fim da miséria é apenas o começo para dizer como essa construção tem de ser projetada.

Lula deu outro passo importante no âmbito institucional, respondendo a uma crítica tradicional antiesquerda na academia: a de que a esquerda só se preocupa com os temas econômicos e sociais e despreza a institucionalidade. Bobagem. Lula criou três ministérios de direitos humanos - Direitos Humanos, Mulher e Igualdade Racial -, orientou a interministerialidade, a horizontalidade nas políticas públicas e criou como rotina os processos de conferências e conselhos. Estes são passos quase irreversíveis, são conquistas civilizatórias. O governo que governa ouvindo a sociedade tem muito mais capacidade de acertar do que aquele que se fecha.

 

Avanços nos direitos humanos

Com essa institucionalidade, o país começou a ter avanços que mantiveram aquelas conquistas de FHC e começaram a potencializá-las. Nilmário Miranda, primeiro ministro dos direitos humanos do governo Lula, até meados de 2005 plantou sementes importantes que já vinham sendo trabalhadas antes e criou uma Comissão Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo, ou seja, passou a haver uma política nacional de enfrentamento a este problema. Dez anos antes sequer se falava nesse assunto.

Outro ponto importante foi a criação do Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (Sinase) - um novo caminho para se criar um novo ECA [Estatuto da Criança e do Adolescente] focado no adolescente infrator. Ele estabelece que este jovem não pode ser tratado como bandido, de maneira que não se fala em sentença, mas em medida socioeducativa que pode ser em regime de internação, semiaberto e aberto. Se os jogarmos em instituições como a antiga Febem ou os tratarmos no porrete e não pela reeducação, estaremos criando escolas do crime.

Também fizemos o Plano Nacional de Convivência Familiar e Comunitária, voltado para repensar todo o sistema de abrigos. Antes, quando se detectava um grave problema na criação de uma criança, ela era apartada de sua mãe ou família e colocada num abrigo para ser oferecida à adoção - o que também é um direito importantíssimo. Era um plano dificílimo de elaborar porque precisava ouvir o judiciário, ouvir gente de direita e de esquerda para fazer uma composição: -olha, tudo bem, vamos garantir a adoção, mas em primeiro lugar vamos fazer um esforço para que a criança viva com a sua família biológica-. O Estado tem de oferecer os suplementos de renda, a assistência social, psicológica e educacional para que aquela família consiga se manter. E claro, o ECA diz que em todo tratamento a prioridade é o interesse da criança. No limite, quando a convivência com a mãe ou um parente representar um risco de vida, aí sim essa criança deve ser afastada e cuidada.

A igualdade racial passou a ter um ministério próprio que trabalhou o seu Estatuto, a questão dos direitos, a população quilombola etc. Com a mulher foi a mesma coisa: avançamos, por exemplo, no combate à violência e aprovamos a Lei Maria da Penha.

Também tivemos avanços nos direitos das pessoas com deficiência: de uma política quase inexistente e inteiramente focada na saúde ou na assistência social, passamos a encarar esta questão como uma política de direitos humanos e, por isso, criamos a Secretaria da Pessoa com Deficiência.

No segmento LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Transgêneros), até o Supremo adotou uma jurisprudência reconhecendo os direitos constitucionais da união civil estável contra toda a pregação reacionária.

 

A realização das conferências

Outro marco do governo Lula, e que a presidenta Dilma prossegue, é o ciclo das conferências nacionais. Foram feitas 74 no período Lula. A primeira, de Segurança Pública, mobilizou 500 mil pessoas em ações à distância, em conferências temáticas, conferências livres, cursos, seminários etc. - culminando em Brasília com três dias de debates que reuniram duas mil pessoas.

A Conferência Nacional LGBT foi a única no mundo. O Diário Oficial publicou uma portaria do presidente da República convocando a primeira Conferência Nacional dos direitos do segmento, inclusive com conferências estaduais - todos os governadores convocaram em seus diários oficiais.

Os avanços nos direitos humanos nos governos Lula são notáveis em nível mundial porque pela primeira vez tais conquistas fundiram os temas dos dois pactos internacionais da Organização das Nações Unidas (ONU). Então, não somente o Fome Zero teve papel fundamental, mas também o ProUni, os programas que criaram mais alternativas de ensino público, o Minha Casa, Minha Vida, os programas de saúde etc.

 Os presídios e a segurança pública

O Comitê Nacional de Prevenção e Combate à Tortura ainda está para ser aprovado pois o governo federal não pode visitar nenhum presídio porque segurança pública é atribuição do Estado. Mas, vamos criar um mecanismo preventivo em nível nacional conforme a ONU exige de todos os países que aderiram à convenção contra a tortura, uma das primeiras que o Brasil assinou logo depois do regime militar.

Quando tivermos isso, a tortura despencará, porque ela é um crime de oportunidade, é algo que existe porque o torturador sabe que ninguém vai fiscalizar. E quando os interrogatórios forem gravados, a tendência também é de que a tortura diminua consideravelmente. Se formos cercando o problema, minimizando as brechas para que se torture, podemos tornar essa triste prática algo residual.

 

A Comissão da Verdade

Tudo somado, acredito que o marco mais nítido desses dez anos seja a conquista da Comissão Nacional da Verdade - hoje implantada e se multiplicando pelo país. Já temos dez estados com suas comissões e a sociedade civil também vai criando as suas. Isso significa que o Brasil desbloqueou esse tema. Se haverá punição ou não, é outra questão. Mas a certeza de impunidade já desapareceu.

A Comissão da Verdade tem justamente o objetivo de estabelecer um processo de justiça de transição. Fernando Henrique, com a Lei 9.140, já reconheceu a responsabilidade do Estado e já indenizou. A Comissão de Anistia também. As políticas de não repetição já existem: os direitos humanos são administrados rotineiramente nas academias de polícia etc., têm sido criadas ouvidorias, controladorias, entre outros órgãos dessa natureza. Agora, falta a investigação individualizada do que aconteceu e, sobretudo, a responsabilização.

Em agosto de 2007, lançamos o livro Direito à Memória e à Verdade, que valeu como abertura-chave para o desbloqueio de um tema que não nasceu ali. Vamos reconhecer que o assunto vem de muitos anos antes, mas que estava marcado, sobretudo, por uma ação perseverante de familiares, de movimentos, advogados e ex-presos que nunca cederam. Mas é preciso reconhecer que no âmbito do Estado democrático de direito houve passos importantes dados por FHC, Lula e Dilma.

A justiça de transição recomenda o reconhecimento da responsabilidade, a reparação administrativa, financeira e simbólica. Neste aspecto há as homenagens, a valorização, como estamos fazendo, transformando as vítimas em heróis.

Pela primeira vez o Brasil começa a fazer um exame oficial sobre a sua própria história. Se tivesse feito isso com relação ao genocídio indígena ou à escravidão, estaríamos anos-luz à frente no respeito à diversidade racial. Ainda há um racismo forte no Brasil, porque tratamos a escravidão como um negócio e como se sua abolição tivesse sido apenas um ato da princesa Isabel que um dia assinou a Lei Áurea. Não se contam os horrores vividos pelos escravos, nem as lutas travadas pelos escravos por sua liberdade. O genocídio indígena e a ausência de uma discussão sobre isso deixaram que se desenvolvesse um forte sentimento anti-indígena no Brasil. Em cidadezinhas do Mato Grosso do Sul, por exemplo, percebemos o ódio que há com relação aos índios; dizem que eles são -bêbados, bandidos, vagabundos-. Imagina como seria dizer que eles são donos da terra-

 

A falta de um reconhecimento nas Forças Armadas

Pensar no balanço de dez anos de governo Lula não é só falar das vitórias. Há temas que estacionaram e outros que não avançaram mesmo no âmbito da Comissão da Verdade, que foi uma conquista. Ainda não houve, por exemplo, nenhum pronunciamento das Forças Armadas, o que é indispensável. O general Maynard Marques de Santa Rosa [chefe do Departamento Geral de Pessoal do Exército] foi exonerado por Nelson Jobim em 2010 porque disse que a Comissão da Verdade era uma -comissão da mentira-. Ele era chefe do departamento de ensino do Exército, ou seja, toda a formação passava por ele.

Conversei com Jobim o tempo todo sobre isso. Disse que se essa questão tivesse sido enfrentada em 1999, quando FHC criou o Ministério da Defesa, já estaríamos com uma nova safra de alto oficialato. Então, vamos fazer agora e daqui a dez ou vinte anos, teremos fruto. É preciso introduzir o Direito Constitucional e os Direitos Humanos em todas as etapas da formação militar das três armas. Mas não digo que os militares não fizeram uma transição. Eles fizeram. E no contato que mantive com os três chefes das Forças Armadas, confesso que fiquei com boa impressão. Eram pessoas com as quais eu conversava olhando nos olhos, não era gente com as mãos sujas de sangue. Mas, provavelmente eles tenham sido alunos ou subordinados de alguns daqueles que nós apontamos como mandantes da tortura, como responsáveis em última instância. Ou seja, criou-se toda uma corporação, uma disciplina militar em que há uma espécie de mutismo, que o Chile, por exemplo, quebrou, mas o Brasil não.

A Comissão da Verdade deve preparar um relatório no final dos seus trabalhos no qual haja um posicionamento do Exército, da Marinha e da Aeronáutica. Eu preferiria que houvesse um pronunciamento dos três. E mais do que isso: eles terão não apenas de reconhecer a tortura, mas de reconhecer o erro de terem derrubado João Goulart. Isso hoje é praticamente impensável porque eles foram formados com outra concepção. Então, temos de mexer na educação militar porque se for adotada uma solução verticalista, do tipo -demite todo mundo-, não vai haver quem nomear. As Agulhas Negras ainda têm Garrastazu Médici como patrono. Não pode. É preciso mostrar quem ele foi.

Minha impressão é de que algumas autoridades dos últimos governos não mudaram isso por temerem uma reação que, na realidade, não acredito que vá acontecer. Temos uma transição de quase 30 anos e as novas safras já são bem conscientes da disciplina constitucional. Então, se for tocado no tema da repressão política não haverá nenhum problema de insubordinação em relação à presidência da República. O problema ficou localizado nesse sagrado, falso, ideológico tabu que tem de ser quebrado. Por isso, acho muito importante que nosso discurso seja despido de qualquer matiz que possa parecer revanchista.

 Punição necessária

Vou ao limite de dizer que, para mim, a ideia de que tem de haver punição é inegociável. No entanto, punição não tem de ser cadeia. O que foi feito na África do Sul- Quem comparecesse à Comissão da Verdade e Reconciliação, reconhecesse os seus crimes, detalhasse de maneira convincente e se arrependesse, sairia dali anistiado. E mais de mil foram processados porque o depoimento não foi convincente.

No Brasil, acho preferível que o relator da Comissão da Verdade aponte na linha de que é preciso que o Judiciário examine, investigue e declare nominal e formalmente a responsabilidade daquelas pessoas pelas torturas e os desaparecimentos. Claro, aí envolve uma questão do Direito: se não houver evidências suficientes em relação a Fleury [Sérgio Paranhos Fleury] ou a Ustra [Carlos Alberto Brilhante Ustra], ainda assim não haverá dúvida sobre suas responsabilidades. Mas haverá aqueles que serão mencionados apenas duas e não 300 vezes. Então, seria necessária uma fórmula jurídica engenhosa que possibilitasse fazer uma grave e sistêmica condenação dizendo que, diante de evidências substantivas, esses torturadores devem ser declarados indignos do serviço militar, do serviço à pátria, por terem assassinado, torturado e violado os direitos humanos. Em seguida, viria uma lista com os nomes de todos eles.

 

A utopia dos direitos humanos

A minha formação é marxista-cristã, socialista, e para mim o socialismo sempre foi um objetivo muito mais distante do que os direitos humanos. Mas não é. Como utopia, os direitos humanos são muito mais ambiciosos porque haverá um mundo socialista em que ainda haverá preconceitos, violências entre pessoas.

É comum a ideia de que é preciso extinguir a burguesia, o inimigo de classe - mas a experiência socialista já provou a insuficiência dessa leitura. Na discussão com Jobim, eu tentava exercitar o mecanismo de imaginar que a pessoa que defende uma oposição ao que defendo pode estar movida pela mesma convicção de verdade que eu. Mas se Ustra chegar na minha frente e disser -não houve tortura no DOI-Codi-, como ele fala, sei que não se trata de alguém que tem uma convicção de verdade. Ele é um canalha. Ele sabe que houve, porque ele participou. Nesse caso, então, é diferente.

 

O polêmico PNDH-3

O Programa Nacional de Direitos Humanos 3 (PNDH-3) foi outra conquista importante do governo Lula. Nele, não havia nenhuma única palavra de conteúdo anticapitalista - cuidei disso pessoalmente porque sabia em qual governo eu estava. Mas havia, por exemplo, críticas ao agronegócio, às experiências que levaram às chacinas de Eldorado dos Carajás e Corumbiara, às mortes de Dorothy Stang e Chico Mendes. Foi uma proposta que gerou uma reação contaminada pela disputa eleitoral e que ocorreu pelo fato de Jobim ter aberto a dissidência oferecendo um prato cheio para essa discussão. Disseram então que havia ali -um ranço contra o agronegócio-. Ora, não tinha ranço nenhum.

Na ocasião, afirmei que o PNDH-3 era resultado de um amplo processo democrático, cujo conteúdo estava fundamentalmente em consonância com o que todo mundo defende. Mas na vida democrática temos de estar abertos a críticas e ajustes. Então, promovemos negociações e houve alguns recuos, que pessoalmente fiz a contragosto. Um exemplo: o direito à interrupção da gravidez. Havia uma frase genérica a respeito. Eu sabia que não havia correlação de forças que permitisse garantir esse direito da mulher, mas a redação dava a entender claramente isso.

Algo importante de se ressaltar no PNDH-3 é que ele, no fundo, é uma bela articulação do tema dos direitos humanos e que deixa ao leitor, de maneira implícita, com leveza, a pergunta: a sociedade capitalista é capaz de assegurar direitos humanos- Essa frase não está ali, mas como colocamos que direitos humanos são também ligados à taxa de juros, ao imposto sobre grandes fortunas, ao modelo de produção, seus impactos ambientais e o dia a dia das fábricas etc., houve uma reação do capitalismo forte porque ficou patente que aquela peça construiu uma consistente indagação sobre a sociedade capitalista.

Eu não podia escrever, mas, pela minha opinião, a sociedade capitalista não é capaz de assegurar os direitos humanos. A verdadeira sociedade dos direitos humanos será uma sociedade não-capitalista.

 

A questão da mídia

O ataque ao PNDH-3 ocorreu na virada de dezembro de 2009 para janeiro de 2010, e no dia 13 de maio publicamos a segunda edição. Das dez alterações feitas, as mais injustas foram as relacionadas à mídia. Na mesa com Lula e outros ministros para acertar como íamos fazer as alterações de mídia, Lula ficou indignado porque mostrei que o PNDH-2, de FHC, falava de controle social da mídia e controle democrático da mídia e eu retirei isso da nossa versão porque já havia tido todo um atrito relacionado à Ancinav [Agência Nacional do Cinema e do Audiovisual] etc.

A reação às propostas foi igual: disseram que era bolchevismo, chavismo etc., como eles [os representantes dos meios de comunicação] sempre fazem em relação a tudo que possa significar alguma regulação. Então, quase não conseguimos avançar. Chegamos a pensar em criar um ranking dos programas que defendem os direitos humanos e dos que promovem ou estimulam violações, mas nem isso foi possível. Avalio que os direitos humanos no âmbito da comunicação foram o território em que não avançamos em praticamente nada, um grande déficit ao avanço democrático. A Globo não pode ter o monopólio; o desenho democrático que está esboçado na Constituição é o dos três terços: 1/3 privado, 1/3 público e 1/3 social.

Fui à instalação do Conselho da cidade de São Paulo, do qual sou membro, e falei para o prefeito Fernando Haddad: -olha, dentro dessas 100 metas estratégicas não tem nenhuma de comunicação de massas-. Não dá para fazer o governo que Haddad quer se não interviermos nesse tema. Inclusive pela nova lei da tevê digital, a prefeitura tem direito a um canal. Então, monta o canal. Não estamos fazendo essa disputa.

Existe receio dos governos de enfrentar a grande mídia, claro, afinal sem enfrentar já é esse linchamento. Temos de enfrentar isso não com o viés de controlar o noticiário. Deixe-os falar o que quiserem, mas com 1/3 aberto ao uso social, as centrais sindicais, o MST (Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra), movimentos comunitários, terão seu espaço e, então, teremos diversidade. Assim teremos democracia porque haverá várias opiniões e não uma opinião única, a tal -opinião pública- que não é pública, é publicada.

Decisão do STF sobre a Lei da Anistia

Quem acredita que a consolidação democrática passa pelas instituições tem que entender que se trata de trabalhar para que o Supremo corrija a decisão de 2010. Eu sustento que fatalmente vai corrigir. A dúvida é se corrige em um ou em dez anos.

Nós erramos ao não provocar o Supremo a fazer um ato de reconhecimento do seu erro na cassação do Partido Comunista em 1947 e na deportação de Olga Benário - dois episódios gravíssimos em que o Supremo foi consultado e convalidou. Joaquim Barbosa acaba de dar uma entrevista dizendo que se tivesse votado na questão da Lei de Anistia, ele teria votado diferente e admitiu que o Supremo pode rever essa decisão.

Outro ponto: discordei da apresentação da ADPF [Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental] pela OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) sobre a Lei da Anistia naquele momento. Devíamos ter feito um movimento primeiro. Estava errado provocar o Supremo como início de uma operação que tinha de começar com o Ministério Público, com as ações das famílias, com as caravanas, os monumentos sendo anunciados, com um livro sendo lançado etc. Se a ADPF fosse hoje, o clima seria outro, completamente diferente, afinal de lá para cá aconteceram dois fatos muito relevantes: a decisão da Corte da OEA sobre o Araguaia - que o Supremo não vai convalidar, mas dificilmente vai arrostar - e a extradição de dois torturadores argentinos, que passou por maioria dos votos com base na ideia de que a Lei da Anistia não cobre os casos de desaparecimento porque o desaparecimento é contínuo. Um dos ministros - não me recordo se Marco Aurélio ou Gilmar Mendes, que foi voto vencido - disse que com aquela decisão estava se abrindo um precedente para a Lei de Anistia no Brasil. Isso consta em ata. Então, o MP entrou com novas ações com essa fundamentação jurídica.

Sobre a Lei de Anistia de 1979, eu não proporia sua revogação porque isso permitiria a revisão de qualquer coisa. O que dá para fazer é derrubar a interpretação do Supremo de que aquela lei protege o torturador. Porque ela não protege. O problema é a palavra -conexo-. Quem colocou -crime conexo- foi ao Salão Azul e disse: -olha, esse conexo aqui quer dizer que os torturadores também serão anistiados-. Se fosse para proteger os torturadores, teriam que ter dito. Não disseram porque, segundo eles, não havia tortura, não havia nem preso político. Isso acabou: houve tortura, houve prisões e desaparecimentos. É preciso promover um reexame para reinterpretar a lei e afirmar que aqueles são crimes que não estão protegidos.

*Priscila Lobregatte entrevistou o ex-ministro Paulo Vannuchi na sede do Instituto Lula, em São Paulo, no dia 29 de março de 2013.

voltar

Editora e Livraria Anita Garibaldi - CNPJ 96.337.019/0001-05
Rua Rego Freitas 192 - República - Centro - São Paulo - SP - Cep: 01220-010
Telefone: (11) 3129-4586 - WhatsApp: (11) 9.3466.3212 - E-mail: livraria@anitagaribaldi.com.br