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Edição 122 > Entrevista com Wanderley Guilherme dos Santos
Entrevista com Wanderley Guilherme dos Santos
“Ministros do STF pensam da mesma forma que a mídia”
A análise é do cientista político Wanderley Guilherme dos Santos. Em entrevista para a Princípios, ele condena o ?discurso paralelo? eivado de preconceitos antipolíticos e antipetistas que se ouviu durante o julgamento do chamado "mensalão"

Em 1962, o jovem filósofo Wanderley Guilherme dos Santos escreveu o texto -Quem Vai Dar o Golpe no Brasil-, no qual prenunciava a derrubada do presidente João Goulart em 1964. O artigo tornou-se referência bibliográfica. Décadas depois, agora com pós-doutorado e uma extensa e importante carreira acadêmica que o coloca entre os principais nomes da ciência política no Brasil, Wanderley Guilherme continua com faro apurado para detectar golpes em marcha. Em 2005, escreveu em sua coluna no jornal Valor Econômico que a oposição de direita não vacilaria em dar um -golpe branco- e promover o impeachment de Lula se a oportunidade surgisse com a crise política deflagrada a partir das denúncias do chamado -escândalo do mensalão-. Na época, Wanderley foi um dos primeiros intelectuais independentes a emitir opinião que ia contra a corrente denuncista da mídia que tentava pintar o governo petista como o -mais corrupto da história-. Agora em 2012, com o julgamento da Ação Penal 470 em curso, o professor novamente não se furta a usar sua pena e suas palavras para condenar o que ele qualificou como um julgamento de exceção. Em entrevista para a Princípios, Wanderley Guilherme dos Santos reafirma o que já havia registrado em dois impactantes artigos (-Um tribunal opiniático- e -Divulguem a teoria política do Supremo-). Segundo ele, -fazer da ausência de provas uma -prova- de que houve crime é a evidência de que se trata de julgamento de exceção, vingativo-. E contra quem seria a vingança- Para Wanderley, nas entrelinhas dos discursos e justificativas de votos, os ministros do STF deixam transparente o desprezo a priori pela atividade política e particularmente pelo PT como partido político. -Nisso, eles (juízes do STF) e a mídia pensam da mesma forma-, afirma.
Atualmente no comando da Fundação Casa de Rui Barbosa, instituição tradicional e de grande relevância ligada ao Ministério da Cultura, Wanderley não se deixa deslumbrar. Continua preferindo jaquetas e camisetas sem aderir aos típicos ternos da função pública, e já avisou a ministra: fica no posto por pouco tempo. Quer retornar à vida acadêmica e, quem sabe, escrever novos e vibrantes artigos contra o golpismo da direita. Veja, abaixo, a íntegra da entrevista:
Princípios: Professor, o senhor tem uma produção acadêmica muito importante e reconhecida, mas quando fazemos uma busca na internet pelo seu nome, a maioria dos resultados referem-se às opiniões que o senhor emitiu de 2005 para cá a respeito do chamado -mensalão-. Isso te incomoda de alguma forma-
Wanderley Guilherme dos Santos: Na verdade, eu nem fico me vendo nestes mecanismos de busca. Mas isso não me incomoda. Acredito que opinar sobre a vida política nacional faz parte das -obrigações- de todo cientista político.
Toda essa repercussão gerada por seus artigos e entrevistas sobre o caso do mensalão talvez se explique pelo fato do senhor ser uma das poucas vozes nos meios intelectuais e acadêmicos dispostas a tocar neste assunto. O senhor concorda-
WGS: Concordo em parte. À época da crise política ocorrida com o chamado mensalão, em 2005, realmente víamos pouquíssimas manifestações de opiniões divergentes daquela que a mídia alimentava. Mas não acho que isso ocorre porque há poucas vozes dissonantes. Isso acontece também porque não é fácil encontrar canais de comunicação dispostos a dar espaço para quem tem uma opinião diferenciada. Eu mesmo conheço muita gente que pensa criticamente esta questão, mas não é fácil se manifestar.
No meu caso, em 2005 tive a facilidade de ter uma coluna regular no jornal Valor Econômico, onde eu podia colocar livremente minhas opiniões. Então esta oportunidade deve ter favorecido o fato de que, entre as publicações, a minha opinião deve ter sido uma das poucas na contracorrente.
Quando o julgamento do chamado -mensalão- estava no início, o senhor já apontava sinais de que ele poderia se transformar num julgamento de exceção. Agora que ele está prestes a ser concluído, o senhor reafirma esta impressão- Acredita que a conduta condenável do STF se manteve-
WGS: Não só se manteve como eu acho que se exacerbou, na medida em que não houve reações importantes que ocupassem o espaço público com outras opiniões. Quem acompanhou as sessões do julgamento ou for assistir aos vídeos destas sessões terá alguns assombros com a atitude de determinados magistrados que julgam ter o direito de falar impunemente o que bem entender.
No artigo -Divulguem a teoria política do Supremo- o senhor reclama disso...
WGS: Justamente, e citei casos concretos. Durante o processo foram ditas coisas absolutamente disparatadas. É preciso tomar algumas atitudes, no sentido de que há certas áreas em que mesmo os comentários que não sirvam de elemento ao julgamento não podem ser feitos, não podem. Nenhum ministro do Supremo Tribunal Federal pode se permitir fazer comentários, dentro do julgamento, que questionam o sistema político brasileiro, o presidencialismo, as coalizões partidárias, a própria atividade partidária, a forma como o governo conduz sua gestão. Isso não compete ao juiz, a Constituição não lhe dá respaldo para tanto.
Essa falta de compostura abre espaço para que um senador ou um deputado suba na tribuna do Congresso e diga o que bem entender do Supremo. Onde fica a desejável harmonia entre os poderes- Então eu acho que entre outras coisas esse processo teve uma crescente falta de compostura por parte de alguns magistrados.
Este comportamento foi incentivado, de certa forma, pela mídia. Como o senhor avalia o papel da mídia não só nesta questão do mensalão, mas no conjunto da postura que a grande imprensa vem adotando em relação aos governos Lula e agora ao governo Dilma-
WGS: Há sete anos a mídia vem construindo o enredo desta história do mensalão. Ela foi eficiente na construção de uma imagem, desde a tese não comprovada da compra de votos, até a definição dos personagens que seriam os vilões da trama. E forçando a percepção prévia, antes do julgamento, de que se tratava do maior escândalo de corrupção do país. Esse juízo negativo sobre a política em geral e em particular sobre a política do Partido dos Trabalhadores é uma opinião difundida em certos setores da sociedade. Eles sentem com absoluta convicção que o projeto do PT, Lula e Dirceu é um mal. Acham que é ruim mesmo, agem de -boa fé-.
A minha avaliação neste caso é que os juízes não foram influenciados pela mídia, eles compartilham a mesma opinião nesta questão da política. Eles abominam a política, em particular a política partidária, especialmente a popular. Eles são pré-democratas. A massa elegendo gente, a massa fazendo campanha é algo que eles rejeitam, então quando enxergam qualquer possibilidade de condenar a prática política, eles encontram guarida para isso, na visão de mundo que eles têm.
A grande imprensa clama unanimemente por isso, mas não penso que os juízes estejam necessariamente se submetendo a ela. Eles simplesmente raciocinam como a grande imprensa. Por isso não se sentem pressionados, exceto o Lewandowski, claro.
Em outros julgamentos envolvendo temas polêmicos, como a criminalização da homofobia ou o aborto de fetos anencéfalos, o STF adotou posições contrárias à maioria da dita -opinião pública- e não sofreu pressões por isso.
Em entrevista recente, o senhor comparou o comportamento de alguns juízes ao do taxista, visto genericamente como o sujeito que alimenta posições conservadoras e de preconceito em relação à atividade política. É isso mesmo-
WGS: Nada contra os taxistas. Mas é sabidamente uma categoria conservadora, até porque estão cotidianamente expostos a violências urbanas, escorchados por máfias dos transportes, então eles costumam ter posições exacerbadas sobre qualquer ilícito. Não estou generalizando, sei que muitos não pensam assim, mas há estudos que mostram uma tendência desta categoria a ter posições extremadas. Defendem pena de morte, condenam o aborto, o união homoafetiva, enfim... Não acho que seja um problema eles pensarem assim, há liberdade de pensar, mesmo que sejam pensamentos baseados em informações equivocadas. Não vejo nisto nada de patológico. Mas onde eu quero chegar na comparação é que me preocupa quando vejo isso se manifestar em atores políticos como as empresas de comunicação - que são atores políticos, devido à capacidade de liderança - e quando vemos os próprios juízes com posições muito extremadas e eivadas de preconceitos. Neste caso preconceito contra a atividade política profissional, o preconceito contra os partidos políticos populares, o preconceito contra atividades cotidianas ou generalizadas da política, que eles preferem considerar como sendo gerada por uma conspiração maligna de certos tipos de pessoas, e não, muitas vezes, pelos posicionamentos legais que fazem com que as pessoas ajam de certa maneira.
Esta visão refratária à política, que levou o STF a promover um julgamento baseado no espetáculo da punição, fez o Brasil perder uma bela oportunidade de debater os verdadeiros problemas da disputa eleitoral, como o uso de caixa dois, financiamento privado de campanha e distorções da legislação eleitoral-
WGS: Certamente. O procedimento ilícito, na verdade de caixa dois, que todos os partidos fazem, é de qualquer sorte um ilícito. Alguns o veem como um crimezinho e julgam que apelar para isso é uma tentativa de absolver os réus do processo. Não. Caixa dois é um crime sério, uma contabilidade clandestina e, na sua execução, cria oportunidades para que se cometam ilícitos ainda mais graves. Acredito que o julgamento em curso no Supremo era uma oportunidade para se verificar por que surge esta necessidade de caixa dois, um problema que vem lá da legislação eleitoral. Então é um tema que precisa ser discutido. É preciso discutir a formação de coalizões, financiamento de campanha, o quanto se gasta em propaganda. É só ver o tipo de disputa eleitoral que temos. Criou-se um mercado milionário, são superproduções que os partidos médios não têm como arcar se não forem ajudados. Os partidos com maiores recursos costumam assumir compromissos de ajuda financeira às campanhas dos partidos modestos. Até o tempo de TV se transformou em ativo eleitoral negociável.
Só para citar um exemplo: caso seja verdade que R$ 50 milhões do Visanet foram desviados -e há controvérsias- 20% disso ficaram com o marqueteiro, que cobrou R$ 11 milhões pelo trabalho. Li em algum lugar que no mensalão tucano o marqueteiro ficou com R$ 6 milhões.
Tudo isso mostra que havia uma oportunidade de debater a questão do caixa dois, caracterizado em larga extensão, sabe-se que existe mas não se entrou na questão. Perdemos a oportunidade.
Poderia ter sido um momento para debater a reforma política-
WGS: Com isso eu não concordo muito. Porque acho que momentos assim de tensão, de altos debates e atritos partidários não são os mais adequados para discutir reformas deste tipo. Podem acabar prevalecendo os argumentos dos que querem criminalizar a atividade política. Há várias coisas que podem ser feitas sem precisar de uma reforma, a questão da suplência de senador, por exemplo, é algo que poderia ser resolvido.
Muitos juristas acharam exageradas as penas dadas aos réus do -núcleo político-. Isso abre precedente para que o STF se veja impelido a repetir este comportamento, dando penas mais altas do que seria justo em futuros processos-
WGS: A dosimetria é um dos aspectos deste julgamento que eu acho que virou um caso patético. A questão, dita abertamente, era encontrar penas que não dessem margem para prescrição, então a coisa toda, de mandar os réus para a prisão, estava decidida, o problema deles era só ajustar o cálculo à decisão.
Eu espero que isso não se repita. Vários analistas alarmados com este processo estão na expectativa de algo similar no caso do mensalão tucano. Eu, ao contrário, espero que não aconteça, espero que esse erro não se repita. Aliás, duvido que aconteça de novo.
Em minha opinião, foi um julgamento extremamente peculiar. Violou vários padrões de comportamento. Nunca vi um julgamento que inovasse em tantas coisas ao mesmo tempo. Na opinião de diversos juristas, violou entendimentos tradicionais, o que não quer dizer que o Supremo não tem direito de inovar. As inovações precisam ser avaliadas se são positivas ou não. O meu assombro maior é com a taxa de subjetividade no julgamento, introduzida neste colegiado, em relação a tipos penais como domínio funcional do fato.
O quanto de indícios - no meu ponto de vista insuficientes - o processo permitiu tomar como prova eles tomaram como prova. A taxa de subjetividade se aplicou, por exemplo, na avaliação sobre o que é lavagem de dinheiro, que é um crime muito sério. E isso feito diante de milhões de telespectadores. Imagine o que juízes pelo país afora farão a partir destes precedentes abertos pelo STF.
Agora, é preciso deixar terminar este processo. Ele vai ser histórico não no sentido do que a reação pensa. Ele vai ser histórico porque ele não vai terminar. É um processo em que a soberania do Supremo não vai funcionar. No dia em que eles disserem que terminou, aí que vai começar. Porque a partir daí os réus é que vão ser os juízes. Na opinião pública, no debate. Isso não vai terminar candidamente.
Professor, queria aproveitar este final de entrevista para saber um pouco sobre o seu trabalho aqui na Casa de Rui Barbosa. Como surgiu o convite para dirigir a instituição e como o senhor está avaliando esta experiência-
WGS: Em 2011, havia sido nomeado um presidente e antes dele tomar posse houve um desencontro de opiniões com a ministra. Acabou tornando-se inviável a posse dele. A partir deste episódio, a imprensa passou a atacar a instituição. Eu frequento a Casa de Rui Barbosa há muitos anos e esta pauta negativa que começou a ocupar as páginas dos jornais me incomodou. Nunca aceitei nenhum cargo de gestão pública, mas, naquele contexto, recebi o convite e avaliei que deveria aceitar a missão. A única coisa que eu queria era tirar a Fundação dos jornais. E isso foi feito.
Então fomos tomando pé da situação da Fundação. Tive apoio total da ministra e neste período de pouco mais de um ano em que estou aqui conseguimos algumas conquistas importantes.
A Fundação tem seu setor de memória, recebe acervos. Não recebe mais porque não temos espaço adequado para guardar e cuidar das doações. Estamos resolvendo isso com a aquisição de três imóveis vizinhos, cuja compra foi um processo demorado, mas está prestes a se solucionar.
Conseguimos implantar um projeto moderno de segurança, que não havia e era algo urgente.
Também conseguimos verba para revitalizar o jardim histórico, que é tombado.
Fizemos seminário sobre voto feminino. Fomos uma das poucas instituições que fizeram isso.
Nossa agenda de atividades e projetos é muito boa e está crescendo.
Um dos presidentes da Fundação, Américo Lacombe, ficou no posto por mais de 50 anos. O senhor também pretende ficar bastante tempo-
WGS: No meio do ano passado, eu comecei a conversar com a ministra Ana de Hollanda sobre a minha saída e a nova ministra, Marta Suplicy, está ciente da minha decisão. Avaliei que já tinha cumprido a missão de resgatar a credibilidade da Fundação. E sempre deixei claro que seria algo temporário. Eu não sou um gestor. Encaro as tarefas, faço o que tenho que fazer, mas não é minha praia, não é meu talento, não é meu prazer. Quero retomar a vida acadêmica. Estou com uma pesquisa sobre a Primeira República esperando para ser continuada. Achei que poderia fazer isso estando na presidência. Mas foi uma ilusão. Mal tenho tempo de frequentar a biblioteca da Fundação. Ao sair da presidência passarei a visitá-la com muito mais frequência.
*Cláudio Gonzalez, editor-executivo da Princípios, entrevistou o professor Wanderley Guilherme dos Santos na sede da Fundação Casa de Rui Barbosa, no Rio de Janeiro, em 14 de novembro de 2012.